quinta-feira, 16 de junho de 2011

Todos os usos


O sentimento da iminência do colapso está de tal modo vivo nos nossos dias que temos dificuldades em enumerar todas as experimentações em curso no que diz respeito à construção, à energia, aos material, à ilegalidade ou à agricultura. Há aí todo um conjunto de saberes e de técnicas que não aguardam senão a ocasião de serem pilhados e arrancados à sua embalagem moralista, mitra ou ecologista.  Mas esse conjunto não é ainda senão uma parte de todas as intuições, de  todos os saber-fazer, desse engenho próprio dos bairros de lata que nos conviria desenvolver se contamos repovoar o deserto metropolitano e assegurar a viabilidade, a médio prazo, de uma insurreição. 
Trata-se de saber combater, abrir fechaduras, tratar tanto das fracturas como das anginas, construir um emissor de rádio pirata, construir cantinas de rua, ter boa pontaria, mas também de reunir os saberes dispersos e constituir uma agronomia de guerra, compreender a biologia do plancton, a composição dos solos, estudar as associações de plantas e também descobrir as intuições perdidas, todos os usos, todas as ligações possíveis ao nosso meio circundante e os limites para lá dos quais o esgotamos; tudo isso desde já, para os dias em que for necessário obter mais do que uma parte simbólica da nossa alimentação e dos nossos confortos. 
O actual território é o produto de inúmeros séculos de operações policiais.  As pessoas foram conduzidas para fora dos seus campos, depois para fora das suas ruas, depois para fora dos seus bairros e finalmente para fora dos átrios do seu prédio, na esperança demente de conter toda a vida entre as quatro paredes viscosas do privado. A questão do território não se coloca para nós da mesma maneira que para o Estado. Não se trata de o possuir. Trata-se de densificar localmente as comunas, as circulações e as solidariedades, ao ponto de tornar o território ilegível e opaco para qualquer forma de autoridade. Não se trata de ocupar o território, mas de ser o território.
Toda a prática dá existência a um território – território do negócio ou da caça, território dos jogos infantis, dos apaixonados ou do motim, território do camponês, do ornitólogo ou do ocioso. A regra é simples: quanto maior for o número de territórios que se sobrepõe numa determinada zona, maior será  circulação entre eles, e menor o poder de os controlar. Bares, gráficas, ginásios, terrenos baldios, quiosques de livros antigos, terraços de edifícios, mercados improvisados, kebabs, garagens, podem facilmente escapar à sua vocação oficial caso aí se descubram cumplicidades suficientes. A auto-organização local, ao sobrepor a sua geografia própria à cartografia estatal, incendeia-a, anula-a; ela produz a sua própria secessão.
 Comité Invisível, A Insurreição que vem, Lisboa, Edições Antipáticas, 2008

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