Vou meter-me onde não fui chamado. O que até calha bem, pois (com a devida contextualização) não é uma má definição de política. Dizem-nos frequentemente para nos metermos mas é na nossa vidinha, de vez em quando na guerra e, mais recentemente, parece que é na agricultura. Na vidinha já estou até aos joelhos, muito obrigado, a guerra é uma canseira e morre-se muito, e a agricultura faz mal às costas (que me perdoem os amigos mais dados à horticultura). Em vez disso, vou dar umas achegas às trocas de impressões entre o Renato Teixeira, o Zé Neves e o Ricardo Noronha.
A minha incursão nesta longa discussão é feita no quentinho do meu laboratório de palavras, com bata, óculos e pinças de sofista. Vou deixar de lado considerações mais directas sobre a acampada do Rossio (partilho muito do que foi escrito aqui, tanto o entusiasmo como as reservas, das mais epidérmicas às de fundo). Acho que é importante escrafunchar um bocado nos termos da discussão e em algumas das oposições que rapidamente se cristalizaram: sobretudo a divisão entre organização e espontaneidade, ou a relação entre meios e fins. Por isso, vou cingir-me sobretudo a este post do Renato e às passagens de “Moral e Revolução” (Trotsky), que o Renato usou para atacar (questionar, se quisermos ser simpáticos) aqueles que, segundo ele, defendem o “movimento pelo movimento”. Acho que a sua linha de argumento assenta num conjunto de equívocos, a começar por esta caracterização (i.e., “movimento para o movimento, sem táctica nem projecto estratégico”), bem como na atribuição àqueles que a ele se têm contraposto de uma espécie de purismo dos “meios”, como se estes fossem coisas virginais que importaria defender da corrupção dos “fins”. Lá chegaremos. Leiam o post do Renato por inteiro, bem como as várias trocas que o precederam, mas vale a pena citar aqui uma parte do texto de Trostsky que ele lançou para a discussão:
“são admissíveis e obrigatórios apenas os meios que aumentam a coesão do proletariado, inflamam sua consciência com um ódio inextinguível para com toda forma de opressão, ensinam-lhe a desprezar a moral oficial e seus arautos democráticos, dão-lhe plena consciência de sua missão histórica e aumentam sua coragem e sua abnegação. Donde se conclui, afinal, que nem todos os meios são válidos.(...)Estes critérios, é óbvio, não definem o que é consentido ou não em cada situação determinada. Não existem respostas automáticas deste tipo. As questões da moral revolucionária confundem-se com as questões da estratégia e táctica revolucionárias. Somente a experiência viva do movimento, iluminada pela teoria, pode dar a resposta certa a esses problemas.O materialismo dialéctico não separa os fins dos meios. O fim é deduzido de maneira natural do dever histórico. Os meios estão organicamente subordinados ao fim. O fim imediato transforma-se no meio do fim ulterior.”
Não vou discutir a figura de Trotsky, nem situar as palavras em causa no seu contexto histórico. O Renato trouxe estas frases para a discussão, pelo que é no contexto dela vale a pena desenredá-las (tanto faz que tenha sido o Trostky ou a Dona Rosa, a Dona Jacinta ou o Sr. Ernesto). Sigam-me então até à mesa de desmontagem. Os tais apologistas do “movimento pelo movimento”, atarantados que andam com tanto mover, perderam de vista o horizonte final a que os meios devem ser submetidos, em nome da construção de uma sociedade mais justa. Esta é, claro, uma história com barbas, a critica ao «esquerdismo» como «doença infantil» do comunismo, que a astúcia da História e a manha da burguesia desviam facilmente dos seus propósitos desnorteados. Na melhor das hipóteses, os movimentistas ficam entretidos a ladrar e a fumar charros a um canto, enquanto a caravana passa. É um desbarato de potencialidades revolucionárias que, se fossem bem encaminhadas, podiam ter efeitos reais. Na pior das hipóteses, dão armas ao adversário (esta é normalmente a narrativa em relação ao Maio de 68). Seja como for, são ingénuos. E, sobretudo, esqueceram-se do proletariado, a quem seria necessário dar coesão, inflamar, ensinar, dar consciência. As principais linhas do argumento são suficientemente familiares para que passemos por elas em passo de corrida, sem prejuízo de voltarmos a elas noutra ocasião: que o marxismo assenta numa conhecimento e filosofia da história, que o proletariado é o motor dessa mesma história, mas está avariado e precisa de uns bons mecânicos para o porem em marcha. Aqui a porca começa a torcer o rabo, em vários sítios. Não será a forma de antagonismo de que necessitamos aquela que retira coesão a toda a estrutura que identifica trabalhadores enquanto trabalhadores? Não devemos repensar a estratégia de ir ensinar os trabalhadores a serem revolucionários, ou a chamá-los para um destino que não lhes coube decidir?
Sobretudo, mesmo aceitando (como eu aceito) que não só as classes existem como a ideia de classe é ainda útil para trazer à superfície as formas existentes de opressão económica e política, será que isto equivale a atribuir-lhe uma missão histórica? É que chegados a este ponto, temos que encontrar aqueles que vão de tocha na mão ensinar o bom caminho ao povo. Acho muito pertinente questionar a naturalidade com que a ideia de movimento muitas vezes se reveste, ou a interrogar o grau de espontaneidade das decisões colectivas. Mas eis senão quando o texto Trostsky vem falar de uma “maneira natural” de “deduzir” os fins. Tanto a naturalidade como a dedução têm muito que se lhe diga: habitualmente a segunda, que cabe a poucos, instaura a primeira. Sejamos justos: o termo naturalidade, tal como o Renato/Trostky o usa, não quer mascarar todo o trabalho e negociação que nele se incluem, bem pelo contrário. Mas deixa na sombra o processo de construção desse saber revolucionário, tendo decidido logo à partida um conjunto de coisas, que não estão em cima da mesa: a tal missão histórica do proletariado, para a qual é preciso transformar as suas consciências. Parece que assim se expulsou a pontapé a falsa “naturalidade” do movimento pelo movimento, cuja crítica me parece relevante, para trazer uma “segunda natureza” pelas portas das traseiras. E só alguns sabem onde fica a porta das traseiras, e quem deve por lá entrar, e que instrumentos teóricos deve trazer na sacola. O saber: tão natural como a sua sede de revolução.
E neste quadro presume-se igualmente, a falta de saber, a consciência adormecida dos trabalhadores realmente existentes (por oposição aos agentes futuros da revolução). Daí o discurso quase-antropológico (zoológico?) do “reino animal”. Façamos-lhe uma vez mais justiça: não deve ser tido como um insulto fácil. É testemunho de uma posição política, segundo a qual os interesses não iluminados pela consciência revolucionária, que não foram trabalhados até chegarem à coesão de uma classe são apenas isso, interesses: (vontades e gestos soltos, indireccionados). Isto resulta numa menorização não só dos movimentistas, mas de todos (trabalhadores incluídos) que não aceitam ou desconhecem a missão histórica que lhes foi atribuída. As pessoas estão revoltadas, é certo, mas cabe à Teoria iluminar o caminho e transformar os grunhidos da insatisfação nas palavras de ordem da revolução. Feitas as contas, talvez fosse preferível que fosse simplesmente um insulto. Julgo que a crítica à ideia de que a revolução se espalhará espontaneamente, dispensando o esforço de perceber as forças históricas etc, é justíssima, mas julgo também que devemos evitar algumas das certezas que subjazem ao modelo sugerido. Começar, precisamente, por fugir a sete pés da retórica da “missão histórica” ou do “destino” do proletariado. Temos que procurar outras maneiras de nos inflamarmos uns aos outros.
Voltemos ao princípio. Os tais movimentistas seriam metade anjo, metade besta. O lado angélico seria o de flutuarem acima dos constrangimentos reais, gritando horrorizados de cada vez que alguém procurava tomar uma decisão, elaborar um plano, apontar um caminho. O lado bestial (o tal reino animal) seria o de se deixarem ficar no plano dos gestos espontáneos e das vontades dispersas – de que resultaria uma impermeabilidade ao programa, ao cálculo estratégico, à inteligibilidade do mundo. Julgo que são tiros ao lado. Não há nenhum purismo dos meios, nem uma oposição de princípio à violência. Todos aceitamos que não existem respostas automáticas, como diz o texto do Trostky, e todos temos uma saudável distância (talvez não o suficiente) face à moral dominante, que esconde os mecanismo de opressão e mantém cada um no seu sítio. Também acho que a conclusão do texto do Ricardo, que nos diz para superar a “crise de representação” deixando de assistir ao jogo e começando a jogar deixa mais perguntas do que dá respostas. O que é certo é que andamos a improvisar os tais meios no meio de muita gente, gente que anda nas ruas e gente que trabalha, gente que se reúne nas praças para se manifestar e para jogar às cartas. E devemos começar com humildade, e admitir que não somos portadores da boa nova, que tanto os meios como os fins estão abertos a discussão. Que por enquanto não temos destino nem mapa para lá chegar. Misturemos os esforço de coesão com o trabalho de dispersão. Não sabemos ainda o que será o “nós” que pode mudar o “isto”. E sim, cá vou meter uma colherada de Rancière: ““Se a cidade começava com a clara distribuição dos trabalhadores úteis, a política começa com a multidão desconexa de inúteis que nela se vêm intrometer”. Peguemos nas nossas dúvidas e toca a intrometer-nos como se não houvesse amanhã.
Uma nota final: é conhecida a tendência, histórica e sempre renovada, de o pessoal à esquerda dedicar muito do seu tempo a marcar as suas diferenças face a outras facções que partilham o“mesmo” campo ideológico. Talvez fosse até melhor dizer que estão lado a lado, enterrados até aos joelhos na lama da mesma trincheira. Afixam-se as baionetas e é dentro da trincheira que se arreganham os dentes, se polarizam posições e se extremam argumentos. E nisto o terreno comum, já de si apertado, fica tal modo sulcado e sangrento que é difícil perceber o que nos une, quanto mais trabalhá-lo. Não se trata de nenhuma patologia: é o resultado de uma sucessão de impasses, ou mesmo derrotas, que estamos todos interessados em pesar devidamente. Não se trata de fabricar tempestades num copo de água, mas de levar estes impasses a sério, e tomá-los como ponto de partida. Nesta guerra, não tenho um bom mapa do caminho a seguir. Tenho sobretudo dúvidas, e pouco metódicas. Por isso não vale a pena perdermos muito tempo com palmadinhas mútuas nas costas, ou um lamber colectivo de feridas. Neste processo, haverá muito a fazer contra inimigos comuns, mas será entre amigos (metaforicamente falando, dado que não conheço o Renato de lado nenhum) que as trocas de palavras serão mais acesas. Esperemos também que mais produtivas.
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