terça-feira, 21 de junho de 2011

Sai uma bruta dose de Ingenuidade para a mesa do canto

 (Dois breves excertos de um texto longo sobre Jacques Rancière, com o título provisório "A improvisação dos incompetentes", que em breve verá a luz do dia)


A improvisação dos incompetentes

a sociedade tolera mal que se junte à liberdade que ela dá uma liberdade que se toma”
R. Barthes

 
Um dos truques da filosofia, porventura o truque da filosofia, é precisamente o de fabricar ingenuidades. Quando elas não existem, é preciso inventá-las, para que se passe então à verdadeira vocação filosófica: diagnosticar os ingénuos e desmascarar as suas ilusões. Neste processo, cura e doença andam de mãos dadas, pois sem a ingenuidade o saber arrisca-se ao pecado capital da redundância: precisa de ingénuos como a boca do pão, o professor de alunos ou o padre de prevaricadores. Seria no entanto um equívoco confinar esta questão ao saber académico e às suas formas de legitimação: ela atravessa e estria todo o nosso campo social e político. Desfiemos um pouco esta ideia: o ingénuo é o inocente, o idealista, o insensato; a ele se opõe o esclarecido, o realista, o razoável. Assim se reparte um mundo. Gostaria de sugerir que esta divisão, muitas vezes subtil, é mais importante – ou seja, mais eficaz – do que os grandes fossos civilizacionais que estamos habituados a reconhecer: entre a razão e a loucura, a verdade e o erro, ou o bem e o mal. E é mais eficaz porque o ingénuo – que tem muitos graus, do pobre tolo, passando pelo jovem impetuoso, até ao fanático irredutível – é apenas ainda ingénuo. Ou seja, não é cego, apenas não está bem a ver. Basta portanto que ouça os que já sabem, que aceite fazer o caminho que os levou até lá, que se disponha a ver aquilo que os outros já viram e que, está bem de ver, está lá para ser visto. Esta lógica aplica-se não só a indivíduos, mas a colectivos: as democracias jovens são ingénuas, como o eram – ou são - os povos ditos “primitivos”. A ingenuidade é assim, por outras palavras, uma forma de atraso. Daí o leve sorriso, a piscadela de olho cúmplice, paternalista, e os ares de simpatia que parecem recobrir o termo, mesmo quando aplicado aos elementos tidos como perigosos, como o sejam os militantes cujas causas e ideiais, dizem-nos os esclarecidos, os impedem de ver o mundo tal como ele é. São por isso mesmo moeda corrente entre os fazedores de opinião histórias instrutivas acerca de como se deixaram para trás as doces, mas nem por isso menos nefastas, ilusões de juventude.



A ideia de senso comum ocupa neste contexto uma posição contraditória. É, por um lado, o terreno onde se movem os ingénuos, presos à superfície das coisas e às evidências inquestionadas, sem se aperceberem dos processos que os circundam e sem alcancarem verdadeiramente as consequências dos seus actos. Por outro e ao invés, o senso comum é um mapa do razoável, da teia de evidências que une todos aqueles que se desenganaram. Seja como fôr, em todas as permutações deste esquema o que importa é que haja ingénuos e esclarecidos, ignorantes e sabedores, enganados e desenganados. Isto para não falar da variante porventura mais enraizada deste esquema, de que diariamente somos lembrados: a divisão entre leigos e especialistas.
Serve todo este preâmbulo para chegar a uma das facetas do projecto teórico e político de Rancière, presente explícita ou implictamente nos três livros de que aqui se tratará, e que poderia ser glosada da seguinte forma: o que aconteceria se nos livrássemos desta oposição, entre o ingénuo e o esclarecido? Dito de outra forma, ao mesmo tempo mais peremptória e mais contextualizada: e se, numa altura em que nos dizem para atentarmos aos constragimentos da crise, em que nos avisam que tal coisa não é realista e que aqueloutra não é possível, fôssemos militantemente ingénuos? E se, quando nos dizem que não estamos bem a ver, que não percebemos todas as implicações, subtilezas e complexidades do sistema, fôssemos decididamente ingénuos? E se, mais genericamente, quando nos demonstram por A mais B que a igualdade é uma ilusão e a desigualdade a ordem natural das coisas, fôssemos irredutivelmente, litigiosamente ingénuos? Não existe democracia, dir-nos-ia Rancière, para quem esta palavra deve ser reclamada como um suplemento escandaloso face à casa arrumada do consenso democrático, sem que uma certa ingenuidade seja levada a sério: a que pressupõe a contingência da dominação, a igualdade de todos e de qualquer um e, consequentemente, a capacidade desta gente qualquer, a qualquer momento e qualquer que seja o lugar ou a parte do comum que supostamente lhes cabe, se ocupar do todo.

(…)

Pensemos brevemente nestes pontos face à crise que atravessamos. Neste contexto, exacerba-se rapidamente aquilo que por vezes é designado com uma “batalha pelo senso comum”, e que se poderia traduzir como uma batalha pela definição do possível. Parafraseando um banqueiro inglês, poucos tempo depois do deflagrar da crise financeira, estamos a operar em condições de visibilidade reduzida. O que impõe as perguntas: o que é que é preciso ver bem? E a quem cabe ver? Assentado o pó inicial, é forçoso concluirmos que se a crise trouxe a incerteza, não trouxe a dúvida. Ao mesmo tempo que nos avisam que “nada será como dantes”, há um investimento histriónico na manutenção de certas evidências, acima de todas a manutenção do sistema que nos governa e da linha que divide quem governa e quem é governado. Os comentadores cedo se instalaram no papel dos que vêm mais longe e mais fundo, enquanto os políticos vão sublinhando a marcador a linha que separa o possível do impossível. Contra as vontades irrazoáveis, multiplicam-se os ventríloquos de factos, que os fazem “falar por si”. O realismo não esconde a sua violência, mas preocupa-se em manter as mãos firmes na definição do que conta como realidade. Tudo o resto, bem o sabemos, é literatura.
Hoje em dia, o perigo não é tanto que nos andem a enganar, mas que nos queiram desenganar. Isto é, chamar-nos à terra – a nós, a esta gente qualquer – fazer-nos aceitar as evidências, os constrangimentos da economia, as complexidades em causa. Que é uma loucura sonhar com a justiça, quanto mais com a igualdade. Parece-me que neste contexto ser louco será porventura o mais razoável. Sejamos portanto loucos. Estejamos disponíveis, desajustados, desprendidos. Sejamos ingénuos.

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