“Dirt is matter out of place”
Mary Douglas
Tem-se falado muito de badalhoquices. Eu próprio abri a minha colaboração aqui em tom escatológico, e pouco depois meti-me a falar do discurso metaforicamente higiénico sobre a respeitabilidade, a casa bem governada e o raio que o parta. Também não por acaso, a revista da Unipop vai chamar-se Imprópria. Mas o mote para uma discussão mais séria sobre o assunto aqui no Unipoppers foi dado ontem pelo Ricardo. Os termos usados não vêm do nada, e remontam a discussões que têm circulado por aí: aqui há não muito tempo, a propósito dos efeitos secundários menos salubres da acampada no Rossio, o Zé Neves abordava o tópico, comentando uma imagem e algumas recações à mesma que enojam, seguramente, mas não pelas razões que os seus autores teriam em mente (dispenso-me de listar os outros e vários justíssimos ataques). E continuam na ordem do dia (ver o post logo abaixo). Na primeira discussão, o Zé referia a Mary Douglas, cuja definição clássica de sujidade aqui serve de epígrafe. Mesmo sem mais explicações, é um bom sítio para começar, porque abre logo para um conjunto de discussões sobre as classificações e as topografias, reais ou imaginadas, que atravessam o nosso espaço comum, e aquilo que ele poderia ser.

Em termos mais literais, e mesmo esquecendo os comentários sobre “piolhosos” e coisas assim, a sujidade é um daqueles tópicos que vem sempre à baila quando se fala de revoluções ou revoltas ou insurreições por vir: “isso é tudo muito bonito, mas quem é que limpa as ruas, trata dos esgotos?” etc etc. A questão vem normalmente bem polvilhada de má-fé, mas não é parva (ou não é sempre parva, desde que a discussão seja séria): serve pelo menos de ponto de partida para um conjunto de problemas reais. E lembra-nos que convém não romantizar nem as revoluções nem a porcaria. A maior parte de nós aprecia o autoclismo e a água canalizada e, mesmo fora da esfera da higiene, andamos cobertos com camadas e camadas de hábitos (os ditos “hábitos burgueses”) que nos acolchoam o dia e que não se interrompem sem desconforto - mesmo que estejamos disposto a dispensá-los em certas circunstâncias.
De qualquer modo, há toda uma economia política do lixo e da limpeza (para não dizer da merda), que toca em questões centrais e interligadas como a Classe, as políticas de urbanização, a divisão de trabalho e de género, para dar apenas exemplos óbvios. Para lembrar rapidamente o carácter eminentemente político da questão (se é que é preciso lembrá-lo) basta pensarmos nas transformações em Nova Iorque sob a batuta de Rudolph Giuliani, cuja gestão assentava na “limpeza” da cidade ou “remoção do lixo urbano” a todos os níveis, desde o lixo propriamente dito, passando pela perseguição agressiva de vagabundos, loucos, bag ladies e squeegee men (os tipos que, ironicamente, limpavam os pára-brisas nos semáforos), até ao ataque os cinemas onde passavam filmes “porcos”, que foram empurrados para fora do centro. Enfim, os exemplos são inúmeros: os discursos críticos sobre a imigração, em particular, acabam frequentemente por rondar o campo semântico da sujidade, atrás do qual vêm outros (infecção e contágio). Há livros e livros sobre o tema: Anatomias do Nojo, Teorias do Lixo, Ensaios sobre a Abjecção, até Histórias da Merda. O meu conhecimento da matéria é íntimo, mas apenas de uma perspectiva prática, caseira e amadora (não sendo o gajo mais aprumado, confesso que a minha abordagem quotidiana à questão, fora de acampamentos, tende para o conservador; por exemplo, o piaçaba é uma coisa que me faz espécie precisamente por causa da tal “matéria fora do seu sítio”). Enfim, as ramificações políticas do tema, tanto em termos literais como figurativos, davam para encher de delícias escatológicas uma centena de blogues, durante décadas de postagens frenéticas.