segunda-feira, 30 de abril de 2012

Explodirão como bombas



Muito desejaria eu escrever sobre assuntos outros que não o aparelho repressivo do Estado, mas os tempos afiguram-se pouco próprios para o lirismo. Avisa-nos agora a PSP que duas pessoas juntas podem ser consideradas uma “manifestação não autorizada”, para justificar a acusação de “crime de desobediência” contra alguém que distribuía panfletos do Movimento Sem Emprego à porta de um centro de emprego.
Enquanto me esforço para manter ao largo todo e qualquer transeunte que tenha a nefasta ideia de se aproximar (os tempos são, recorde-se, de “tolerância zero”) e vou redigindo os necessários avisos prévios de todos os encontros planeados para a semana que começa (a dúvida inquieta-me: receberemos um comprovativo para provar aos zelosos agentes da autoridade que aquela troca de beijos no jardim seguiu os canais apropriados ou importa fazê-lo apenas no tribunal?), consulto um dos muitos textos subversivos que possuo na minha biblioteca.
Tem o inquietante título de “Constituição da República Portuguesa” e o que nele se dispõe fala-nos de um tempo e lugar remotos: 1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização. 2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação. (Artº 45).
Chegará porventura o dia em que, como profetizou Auden, os jovens poetas explodirão como bombas e percorreremos de noite os subúrbios em corridas de bicicletas. Os encontros deixarão talvez de constituir um acto subversivo. E os beijos serão, como devem ser, despreocupados e sem aviso prévio. Mas amanhã não será esse dia.
Maus tempos para o lirismo, no I on-line

(Abaixo está uma tradução muito minha e muito desajeitada do poema de W.H. Auden a que o texto faz referência. Não sei se já estava publicado em português. Talvez o nosso poeta-tradutor Miguel Óscar Cardoso o queira retocar...).


sexta-feira, 27 de abril de 2012

O Poder da Fontinha


o meu artigo no i de quinta-feira



A Escola da Fontinha não é simplesmente nome de um projecto social, cultural ou educativo. Todos estes qualificativos são respeitáveis, sem dúvida alguma, mas temo que falhem o que de substancial se joga na Fontinha. A Escola da Fontinha é antes de mais, de onde eu a vejo, o nome de um projecto de poder (ou de anti-poder, se preferirem) que se caracteriza por assumir uma natureza económica e política radicalmente democrática (ou anarquista, se preferirem). E é isto que a singulariza.

Do ponto de vista económico, a Fontinha não é enquadrável em nenhuma das duas alternativas que tomaram conta do debate económico no espaço mediático dominante. Essas duas alternativas rezam que ou as coisas pertencem à ordem pública regida pelo Estado ou pertencem a uma esfera privada oleada pelos mecanismos de mercado. Este é um esquema que facilmente reconhecemos nos discursos partidários: mais à esquerda, falamos dos riscos da privatização das funções económicas e sociais do Estado; mais à direita, reclama-se que o Estado deixe a sociedade entregue à liberdade individual e mercantil.

O projecto Escola da Fontinha não pertence a este filme. O projecto não é determinado por objectivos mercantilistas, como reza a apologia das privatizações, segundo a qual a economia só pode funcionar se baseada num regime de competição em que todos lutem contra todos. E também não entende que o Estado seja a única alternativa a este regime liberal ou neoliberal. Na verdade, é bom de ver que o projecto da Escola da Fontinha procura antes de mais disputar o controlo de uma propriedade do Estado. Poder-se-ia também dizer, assim sendo, que o projecto da Escola da Fontinha – continue na Fontinha ou dissemine-se por outros pontos do país! – trava um combate contra o monopólio estatal da propriedade pública e contra a ideia de que a única alternativa ao Estado é a mercantilização da sociedade.

Dir-me-ão que este combate por um espaço autónomo tanto do Estado como do mercado não tem no projecto da Escola da Fontinha o seu único testemunho. É verdade. E basta ver que, na mesma semana em que o Estado procurou destruir o projecto da Escola da Fontinha, fez furor mediático a campanha “Zero Desperdício”. Esta campanha pretende que os restos alimentícios dos mais abastados cheguem à mesa dos menos afortunados, montando-se uma cadeia de distribuição de recursos que escapa tanto à esfera do mercado como ao planeamento do Estado. A campanha rege-se pelo seguinte princípio económico, a que deram voz alguns músicos portugueses: “O que eu não aproveito ao almoço e ao jantar, a ti deve dar jeito, temos que nos encontrar”.

Campanhas como esta proliferarão nos próximos tempos à medida que a crise se intensifica. E é também por isso que um projecto como o da Escola da Fontinha é tão importante. Porque se a Escola da Fontinha partilha com campanhas como o “Zero Desperdício” a ideia de que é necessário construir territórios e redes sociais autónomas do Estado e do mercado, distingue-se radicalmente pelo elemento político que a constitui: na Escola da Fontinha não se trata de ajudar a população empobrecida do bairro, mas de construir um projecto que se pretende baseado no exercício de uma democracia que determina o que se faz, como se faz, quem faz, num plano de igualdade entre tudo e todos os que participem no processo, sem hierarquias, sem líderes e sem cantautores que por misericórdia deixam os restos da sua refeição para os pobres. Rita Blanco, uma das poucas vozes do mundo do espectáculo que veio criticar o paternalismo miserável da campanha “Zero Desperdício”, não podia ser mais justa nas suas palavras: «Estamos a voltar ao antigamente, com coisas muito semelhantes. Ninguém pode viver à mercê da boa vontade dos outros. Surpreende-me a capacidade de movimentação para estes movimentos (de dito apoio social e solidário), mas não para discutir as leis e lutar pelos direitos das pessoas. Esta caridadezinha não é liberdade, isso é capitalismo selvagem». 

Em suma, o projecto da Fontinha cria uma oportunidade para uma prática absoluta da democracia, recusando que a nossa sorte seja abandonada quer às mãos do patrão e do Estado quer aos apetites dos mais ricos.   

terça-feira, 24 de abril de 2012

Política do cognitariado


As notas que se seguem prolongam um debate conjunto. Seguem algumas pistas deixadas em aberto na reunião/debate do passado domingo, organizada pela Unipop, em colaboração com o C.E.M., no Seu Vicente – Residências artísticas.
É claro – sendo esse um dos pontos de partida da discussão proposta – que só é possível pensar a precariedade do cognitariado e a possibilidade de combatê-la tendo em consideração as condições específicas a que estão hoje sujeitos os agentes da produção imaterial, investigadores, bolseiros ou não, professores, mais ou menos intermitentemente, artistas, etc. (flexibilidade, mobilidade, intermitência...).
Acrescentaria no entanto que se faz sentido pensar especificamente a política do cognitariado – nomeadamente, tendo em vista a criação de laços de entendimento, de solidariedade, de eventual acção conjunto (reivindicativa, mas não só) – faz talvez sentido alargar a compreensão desta especificidade, do reconhecimento daquilo que partilham os produtores imateriais no que toca às condições a que estão sujeitos, ao reconhecimento das forças que intervêm no seio da produção imaterial (que abrange, nomeadamente, as áreas da investigação e da produção artística).
Considerar estas duas vertentes dessa especificidade, o «quadro» e o «teor», se quisermos, da produção imaterial – sem complexos ou superstições na articulação de conceitos sociopolíticos e estéticos – seria talvez vantajoso para fazer face ao pressentimento desencorajante que poderá assaltar um investigador, um artista, de que o seu trabalho – enquanto investigador, enquanto artista – nada tem a ver com as preocupações que partilha com outros agentes de produção imaterial sujeitos a semelhantes condições de trabalho.  Creio que um tal pressentimento, e o desânimo que o acompanha, pode e deve ser desconstruído. Que, para tal, trabalho possa significar coisas distintas (ou que num dos casos se deva escolher outra palavra) não nos deve assustar.
Por outras palavras, diria que os laços que unem os produtores imateriais não concernem apenas àquilo que nos torna precários, mas também ao modo como o que já fazemos, cada um de nós, pode animar o que podemos fazer, em conjunto, contra essa precarização.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Abril de novo


As imagens e relatos que nos chegaram do Alto da Fontinha, na antiga, mui nobre, sempre leal e invicta cidade do Porto, reafirmam o estado de excepção em que vivemos.
A polícia voltou a espalhar democracia, desta vez com direito a livros e material diverso empilhado num pátio, à espera de um purificador auto de fé, juntamente com uma esclarecedora apreensão de câmaras de filmar e fotografar, para que a grotesca face da repressão não surgisse em toda a sua bestialidade. Parece não ser ainda oportuno autorizar a eliminação de testemunhas oculares, algo com que os fantásticos juristas pátrios se poderão entreter num futuro próximo. Aguardemos pelos próximos relatórios do SIS para descobrir que inconfessáveis crimes se preparavam para cometer os ocupantes.
Espaços como a Es.Col.A, subtraídos ao abandono e à voragem da especulação imobiliária, onde existe a possibilidade de organizar actividades gratuitas e desenvolver uma sociabilidade fora da esfera do mercado, são um alvo óbvio para quem odeia a perigosa combinação entre liberdade e auto-organização em meios populares. Esta gente pobre a quem se procura fazer engolir, com cassetetes e mentiras várias, o pão amargo da austeridade, poderia sentir-se contagiada por semelhante desaforo e lembrar-se de coisas tão simples como a Revolução que, ainda não há 38 anos, fez tremer os gordurosos senhores desta terra.  A resposta ao desalojo selvagem decretado por Rui Rio é simples e segue dentro de momentos. Ao fim e ao cabo, também foi para isso que se fez o 25 de Abril.

sábado, 21 de abril de 2012

Todos contra o despejo da Es.Col.A

As próximas concentrações em Lisboa, em solidariedade com a Es.Col.A da Fontinha e de repúdio pelo despejo.
Hoje, sexta-feira: 18h no Lag. de Camões
Amanhã, sábado: 19h no Lg. de Camões


Não se pode despejar uma ideia!
 
 

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Se ainda escutas a alegria de viver ouvirás o sinal para ficar


Declaração Conjunta de Apoio ao Es.Col.A do Alto da Fontinha, que partiu do Gato Vadio
Lá do Alto da Fontinha dá vontade de planar. Vê-se outra cidade a ser construída. Tijolo a tijolo, dia-a-dia, mão a mão, sorriso a sorriso. Aquilo que parecia um abismo – uma escola vazia, abandonada e arruinada – tornou-se o próprio espaço do sonho.
Com os pés assentes na terra, constrói-se a solidariedade, o espírito comunitário, uma ideia de utilidade pública alicerçada na ajuda mútua e na partilha livre do conhecimento. Ali faz-se ainda a democracia directa e participativa que falta. Ali aprende-se a estar vivo. Ali vê-se que a crise que nos quer amedrontados e pieguinhas, foge a sete pés. Não, nem a crise, nem um rio seco e sequioso, nem as cajadadas dos falsos democratas, vão estancar o fluxo desta Fontinha...
Neste momento decisivo, por uma exigência recíproca, cada um deve colocar ao outro as questões humanas e colectivas essenciais.
Esta declaração conjunta de apoio ao Es.Col.A já foi abraçada por vinte e dois colectivos e associações de vários pontos do país, e está aberta a mais adesões de quem quiser e quando quiser. Escreve-nos!
Lá do alto, diremos à cidade que rejeitamos o despejo decretado pela actual gestão do Município do Porto e estenderemos a mão a quem veio por bem e para ficar.

Assinam,

AIT/SP - Núcleo do Porto e Chaves
Assembleia Popular do Porto
Assembleia Popular de Coimbra
Associação Casa da Achada - Centro Mário Dionísio (Lisboa)
... Casa da Horta - associação cultural
Casaviva Projecto
Centro de Cultura Libertária (Almada)
Colectivo Hipátia
Gap - Grupo de Acção Palestina
Indignados Lisboa
AJA Norte - Associação José Afonso
Gato Vadio Livraria
Marcha Mundial das Mulheres
Partido Humanista
Revista Rubra
Associação SAPATO 43
Terra Viva
Traga Mundos
Tribuna Socialista
Uniao Operaria Nacional
UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta

sábado, 14 de abril de 2012

Resposta ao João Rodrigues

O João Rodrigues ficou chateado com o meu artigo. Mas eu acho que ele não tem razão. Que fazer? Comecemos pelo essencial e deixemos o acessório para o fim. O João Rodrigues acha que exagero na crítica ao seu patriotismo. A mim parece claro que a política defendida pelo João Rodrigues assume um pendor cada vez mais patriótico e cada vez menos internacionalista. Por que entendo as coisas assim? Porque vejo o João a propor uma desglobalização, quando eu sempre pensei que o problema era a globalização mercantil e não simplesmente a globalização. Desmercantilizar a globalização, claro que sim, mas desglobalizar é uma palavra de ordem muito diferente. E é uma palavra que se arrisca a por tudo no mesmo saco, o movimento de mercadorias e o de pessoas, o livre-cambismo e o cosmopolitismo, a globalização neoliberal e o internacionalismo de classe. Infelizmente o internacionalismo do João Rodrigues é cada vez mais uma forma de mediação entre sentimentos nacionais e não uma forma de ler e agir no mundo transversal a esses sentimentos. Ao internacionalismo do João poderíamos chamar um internacionalismo nacionalista. É pelo menos neste sentido que leio a sua proposta para que em vez de internacional passemos a escrever inter-nacional, isto dito entre vivas aos hinos nacionais e à soberania nacional, que me parecem querer continuar em França, via Mélenchon, o ido projecto alegrista que animou o João e os seus colegas de blogue. (Embora deva dizer que a candidatura de Mélenchon é evidentemente bem mais interessante do que a de Alegre, o que ainda assim deveria evitar histerismos personalistas que não têm cabimento em qualquer projecto de esquerda que se preze, ao contrário do que parece querer demonstrar o Nuno Teles).

Há uma outra questão importante no post do João Rodrigues que gostaria de comentar. O título do post é “Nem nada”, em referência ao título do meu artigo “Nem Crise Mundial, nem Solução Patriótica”. É um título, o do João, que é feliz enquanto sound-byte e os títulos também são isso, por certo que o são. Mas enquanto programa de argumento, é mau. É mau, em primeiro lugar, porque revela uma concepção enfraquecida do que possa ser criticar. O João Rodrigues parece exigir que eu, para criticar, tenha uma alternativa concreta a oferecer. Temo que o João esteja a aplicar a mim o tipo de argumento que os Camilos Lourenços tantas vezes aplicam ao próprio João Rodrigues e que no fundo reza assim: “falam mal do capitalismo mas não têm alternativa”. Ora, o que o João parece presumir, tal como o Camilo Lourenço e afins pressupõem em relação ao João, é que criticar é simplesmente dizer mal. Presumem que a crítica não é em si mesmo construtiva. Eu não vejo a crítica como uma simples denúncia e por isso não creio que ela seja menos construtiva do que as alternativas concretas que o João vai propondo. Depois, há aqui um segundo problema, tão grande, se não maior, do que o primeiro. É que o João Rodrigues só pode presumir que eu não procuro alternativas concretas porque ele entende que isso só se faz do modo como ele o faz. E que modo é esse? Intervindo num partido enquanto dirigente ou no espaço publicado enquanto intelectual. Eu também já fui um pouco assim e se calhar ainda sou. Mas já não acredito em alternativas concretas pré-fabricadas e creio que isso é coisa que devemos dispensar liminarmente, pelo menos no quadro de uma política democrática, defina-se como revolucionária ou como reformista. Prefiro mil vezes ouvir o João Rodrigues em detrimento do Camilo Lourenço, mas não reduzo a questão das alternativas concretas ao modo como o João entende o que possam ser lutas contra-hegemónicas.

Não vejo o meu próprio papel como o de alguém que por escrever num jornal ou ser especialista nisto ou naquilo tem mais responsabilidade em propor alternativas concretas do que os outros cidadãos. Esse papel “responsável” é o que o João Rodrigues vem assumindo, no quadro de uma sua leitura do que será um projecto contra-hegemónico. Que leitura é esta? O João dá grande importância ao confronto entre o que ele considera serem os intelectuais. A sua maneira de ver a ascensão do neoliberalismo é a esse respeito muito clara. Ele concede muita importância ao pensamento de alguns autores que há décadas terão começado a construir um programa ideológico que hoje é finalmente aplicável (a narrativa do João para a ascensão do neoliberalismo é mais complexa do que isto, claro, mas sublinha muito – em demasia, diria eu – este ponto). Eu acho que a história do neoliberalismo, não dispensando essa dimensão intelectual da história do pensamento económico e político, e devendo ser uma história das ideias, deverá sê-lo dirigindo a problemática das ideias não apenas (ou primeiro) aos intelectuais como Hayek e demais. Deverá ser também uma história social das ideias. E em consequência (ou como causa) acho que um projecto contra-hegemónico não passa tanto por criar os futuros Hayeks de esquerda mas por agir e pensar a acção política e o pensamento político aquém e além da “responsabilidade” de dirigentes e "pensadores" (e por isso não tenho simpatia nenhuma pela estratégia educação popular de Mélenchon, que o Nuno Teles tanto aprecia, mesmo se também eu votaria em Mélenchon caso pudesse votar nas eleições francesas).

Finalmente, a questão menor, que, porém, parece ser a única que verdadeiramente empertigou o João Rodrigues. Acha o João que eu deveria ter nomeado individualmente os economistas que dirigem a edição portuguesa do “Le monde diplomatique” e não simplesmente ter referido o grupo de economistas do “Le monde diplomatique”. Tudo bem. Se o João entende que isso é importante para tornar o debate mais interessante, passarei a fazer como ele manda. Seja como for, não creio que esta questão seja motivo para tanto azedume. Depois, bom, depois diz o João Rodrigues que engano os leitores ao afirmar que há uma linha dominante dessa publicação que é determinada por esses economistas quando na verdade existirá uma pluralidade de pontos de vista de esquerda expressos no jornal em questão. Sim, é claro que há outros economistas a escrever no jornal em questão (por regra o jornal tenta ter uma pessoa do PS, uma do PCP e outra do BE, parece-me), mas creio também (de facto, não fui contar) que o João Rodrigues e o Nuno Teles são os autores mais regulares do jornal e que em grande medida (foi a expressão que utilizei no artigo) marcam a linha política da publicação. Não há é qualquer problema nisto, pelo menos para quem não faz parte do jornal. Devo até dizer ao João Rodrigues e ao Nuno Teles que um dos motivos porque continuo a pensar comprar o jornal é justamente o facto de saber que aí encontro publicada, muito provavelmente, a opinião destes meus bons amigos economistas. Com os quais tantas vezes discordo mas que sempre tento acompanhar de perto.

Levanta-te e declara-te um internacionalista!



quinta-feira, 12 de abril de 2012

Nem Crise Mundial Nem Solução Patriótica

(o meu artigo no i desta quinta-feira)

Há um pequeno grupo de quatro ou cinco economistas de esquerda cujo trabalho é importante acompanharmos por estes dias de crise. A melhor forma de o fazermos é seguindo a edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, publicação que tem assumido uma linha política em grande medida determinada por aqueles economistas. Hoje em dia essa linha passa sobretudo pela defesa da seguinte ideia: uma saída pela esquerda da actual crise implica uma tomada de posição patriótica.

A hipótese desenvolve-se em cinco passos. 1) A globalização actual é uma máquina de produção de desigualdades nacionais à escala do mundo e de desigualdades sociais no interior de cada nação. 2) Deveremos por isso tomar distância em relação a essa máquina global, deixando o euro e adoptando uma moeda própria, com todas as possibilidades de política financeira e económica que daí resultam. 3) Estas possibilidades podem ser aproveitadas de modo a que, forçados pela privação resultante da desconexão parcial com o sistema mundial, desenvolvamos capacidades novas que julgávamos perdidas, para este efeito adoptando-se uma política industrial activa. 4) Ao mesmo tempo, acrescente-se, será possível irmos combatendo a desigualdade social no interior da nação, combate importante para elevarmos os níveis de confiança interpessoal da comunidade nacional e, também, para a própria regeneração da economia por via do consumo interno. 5) Finalmente, poderemos, atingido um certo nível de crescimento económico, regressar ao sistema mundial, talvez até tornando-o um pouco mais justo.

Esta é, creio, uma proposta interessante, desde logo porque tenta romper com a tendência em que boa parte da esquerda tem vindo a ser, nas actuais circunstâncias, aceleradamente atolada: a contínua defesa de direitos continuamente perdidos de luta em luta até à perdição final.

Mas é também, ainda assim, uma proposta que deve ser recusada sem qualquer hesitação.

Se me é permitido atalhar caminho, e correndo o risco de estabelecer uma comparação injusta para os nossos economistas de esquerda, diria que devemos recusar a proposta por motivos não muito diversos dos que nos levam a resistir ao argumento do governo de Passos Coelho segundo o qual as actuais políticas de austeridade são apenas medidas sacrificiais que, no futuro, e uma vez saldada a dívida, permitirão ao país recuperar a sua soberania e reactivar a democracia entretanto suspensa por ordens externas.

Em ambos os casos há uma desistência em relação à actualidade política europeia.

Passos Coelho desiste porque despolitiza a Europa obedecendo-lhe caninamente: para Passos Coelho, da Europa surgem apenas ordens que ele terá que cumprir, não se lhe ocorrendo participar politicamente no espaço europeu, por exemplo discordando do que diz ser-lhe imposto, por exemplo.

Já a proposta dos nossos economistas de esquerda acaba também por fazer acreditar que o espaço europeu não é mais susceptível de intervenção política, refugiando-se eles, por isso, no espaço nacional. Não se refugiam, note-se, por terem desistido da política em favor da economia, como Passos Coelho, mas porque querem – e bem – retomar a política como factor que determina a economia. O problema está em que desprezam a possibilidade de uma política económica europeia combater o desemprego, a desigualdade e a pobreza. Dirão os nossos amigos economistas que tal política europeia é uma utopia, mas não há nenhum motivo – pelo menos para quem não tenha uma crença nacionalista que o anime – para julgar que o tamanho dessa utopia seja menor porque a imaginamos apenas aplicável a Portugal. Se o ministro das Finanças de Portugal tem tantos laços de afinidade com o ministro das Finanças alemão, não há nenhum motivo para que os trabalhadores portugueses e as suas organizações não se irmanem com os seus congéneres da Alemanha.

«Fazer acontecer a revolução»: cinco notas sobre "Linha Vermelha"


1- Será possível pensar a ocupação da Torre Bela para lá do filme com o mesmo título? De tão familiares, as imagens captadas pela câmara de Russel Parker acabaram por se sobrepor à realidade mesma que se propunham dar a conhecer. Houve uma herdade ocupada e pessoas que a ocuparam, que ali viveram e enfrentaram os problemas de todos os dias, que se organizaram e discutiram e aprovaram o que fazer daquelas terras, daqueles edifícios e de si próprias. Há livros, textos e notícias de jornal que dão conta do alcance e profundidade do que ali se passou. Mas tudo o que nos vem à cabeça, quando nos ocorre pensar naquela ocupação, são as imagens filmadas nos seus primeiros quatro meses e acabadas de montar quando tudo era já quase uma recordação.

2- Um filme sobre um filme – ou, se quisermos, uma reflexão sobre o cinema em formato cinematográfico –, Linha Vermelha, de José Filipe Costa, interroga essa relação problemática entre a história vivida e a história filmada. Fá-lo, desde logo, dissolvendo a diferença entre as duas coisas, pelo menos no que à Torre Bela (filme e herdade ocupada) diz respeito. Por via das suas opções propriamente cinematográficas, Thomas Harlan filmou muito mais do que um testemunho. A sua câmara tornou-se um elemento essencial à construção das relações de poder no interior do colectivo de ocupantes, enfatizando as posições de uns sobre outros, amplificando vozes e iluminando rostos, segundo as avaliações e juízos do realizador. Com a evolução do processo cresceu também, entre vários protagonistas do filme, uma consciência cada vez mais aguda da respectiva imagem, capaz de influenciar os seus gestos e palavras, transformando-os, para parafrasear um deles, em «actores das suas próprias vidas».

3- E é nesse processo, em que o homem da máquina de filmar se tornou um elemento mais do processo de ocupação («como um tractor ou uma enxada», como o descreveu Camilo Mortágua numa entrevista a Costa [1]), que passa a ser difícil perceber se o filme segue os acontecimentos ou está, efectivamente, a dar-lhes forma. Ao ponto de o próprio José Filipe Costa hesitar na resposta a esta interrogação, devolvendo-a aos protagonistas, num trabalhoso processo de reconstituição de uma memória saturada pelas imagens, regressando tantas vezes quantas as necessárias ao local e ao tempo em causa. Alguns elementos da equipa de filmagem e de montagem não hesitam em considerar que o realizador manipulou os ocupantes e encenou vários episódios do filme. Mas a questão não parece colocar-se da mesma forma para os próprios e poucos são os que parecem sequer preocupados com um problema que é relevante, sobretudo, para os que integram o campo cinematográfico. A hipótese de os ocupantes se terem servido dos recursos postos à disposição de Harlan fica em suspenso, sugerida a espaços pela naturalidade com que estes falam do que fizeram e disseram naquele contexto.

4- Mais interessantes são os relatos de como a ocupação prosseguiu para lá do filme, resolvendo muitos dos problemas de organização que ali parecem inultrapassáveis (lidando com a hostilidade das autoridades na contra-revolução de veludo que se seguiu ao 25 de Novembro de 1975), mas também enfrentando (com resultados variáveis) todos os outros que diariamente se colocavam àquela comunidade de trabalhadores (das relações entre géneros ao consumo de álcool ou ao absentismo laboral). Como se a arqueologia da memória levada a cabo em Linha Vermelha revelasse novas camadas da realidade que não estão contidas em Torre Bela, apesar de terem sido uma parte importante daquela experiência, permitindo-nos relativizar a «verdade» de que aquele documentário se pretendia portador e devolvendo-nos a imanência dos acontecimentos, que a força das imagens quase conseguiu secundarizar.

5- Fazendo-o, José Filipe Costa permite multiplicar as interrogações em duas direcções: sobre a experiência de ocupação de uma propriedade do Duque de Lafões no contexto do PREC, em toda a sua densidade e alcance; sobre a difícil e complexa relação entre um cinema militante de «testemunho» e a realidade mesma que este se propõe testemunhar. A primeira continua em aberto e não parece que Linha Vermelha se propusesse encerrá-la. A segunda, que é, afinal, a linha vermelha desfiada por Harlan, foi sintetizada pelo próprio José Filipe Costa noutro contexto: «O objectivo seria o de fazer qualquer espectador rever-se nas acções revolucionárias dos ocupantes de Torre Bela, sem qualquer distância; fazê-lo mergulhar no sentimento de que a revolução estava a acontecer aqui e agora, num presente contínuo, para também ele agir. Um plano em que fazer acontecer a revolução não está longe da experiência de fabricar ou ver um filme. O cinema não é aqui um meio de entretenimento, mas um meio de incitamento e, sobretudo, de acção. Agir e filmar ou agir e ver um filme são duas faces da mesma moeda» [2].

Notas

[1] www.fcsh.unl.pt/revistas/arquivos-da-memoria/ArtPDF/JoseFCostaAM5.pdf, p.178.
[2] Ibid., p.190.

Este texto foi originalmente publicado na edição portuguesa de Le Monde diplomatique 

Shit is going down - a barricada como sabotagem da cidade


Um excerto da palestra de Evan Calder Williams, "A Recusa da Cidade", no Maria Matos, esta terça feira.    

"As for the barricade, we should start by noting that like sabotage, it's an interestingly neutral figure, despite its more obviousy revolutionary pedigree. Rhetorically, it appears in writing as that which the forces of reaction employ: “ But the first immediate barricade or the most advanced trench of the capitalist state is that of the apparatus and the leading organs of the major trade unions in nearly all the leading capitalist countries.” (Trotsky) The same, of course, is true of its material mobilizations: cops, armies, and all that falls between them barricade the city far more than we ever do.
Sabotage, in the tradition I stressed, seems rather opposed to the barricade: after all, the specificity of the sabotage noted in the syndicalist tradition was that which would allow you to keep up the illusion of things going fine, at most a sly smile, and then everything goes to shit. While, on the other hand, the barricade announces itself, not to mention standing – in the street, as well as the “radical imagination” - as the most explicit sign that shit is going down.
But the barricade and the blockade are not identical, however much they share a common function of interfering with circulation. For the specificity of the barricade is not that it blocks but that it is a sabotage of the city.
In the city, contrary to the wishes of those who live there, the primary concern is that of circulation itself: the city is a density of living and dead labor which must forever interpenetrate, transform, consume, and expel. It's on those grounds that it makes sense to see the metropolis as a form, rather than a bounded zone: massive as its towers of glass, steel, brick, and flesh may be, they are merely a built index of a juncture, a point through which the unlike gets itself commensurable.
That's why burning tires, the degree zero of the barricade, are so powerful: literally burning rubber, not to peel out, but to stop movement, such that the objects that ensure that food gets carried, work gets gone to, cement gets poured, and beers get drank, become the very objects that spew out their embedded toxicity and make other tires, and other possible passages in, out of, and through the city impossible. The barricade, then, is a sabotage of the city in a particular way: it ruins the city by using its materials against its function as a conduit of circulation, it wrecks the city in order to drive a wedge between what it is and what it is supposed to be, in the name of what it might be otherwise. In other words, it turns the materials of the space designated city against the figures of the polis and the attached forms of citizen, politics and civil society."

terça-feira, 10 de abril de 2012

Adenda a uma Carta Aberta

Adenda a uma carta aberta
Três notas adicionais sobre os motins de Londres, em parte desenvolvidas a partir de comentários perspicazes de amigos e desconhecidos.


Ele mostrava-se igualmente indiferente no que toca às pilhagens: “O que é que eu sinto em relação a isso? Sinceramente, nada. Faz parte de um motim. Não sinto nada.”1


Um.

Algo que devia ter sido mais sublinhado e que quase passou despercebido é que, apesar de toda mistura de choque e espanto face ao caos espontâneo, quer alegado quer real, muito mais impressionante é tudo o que não pode ser arrumado nessa categoria. Tudo o que, pelo contrário, só pode ser entendido como tendo emergido de formas de organização concretas e zelosas. Não, não se assemelha a um partido, a uma coligação ou a uma associação. Não, não é um fruto do Facebook ou do BB Messenger, embora estes tenham certamente ajudado, tal como não estamos aqui perante um qualquer outro novo “sujeito em rede”, excepto no que toca à velocidade de transmissão. E não, Cameron e companhia, por mais conveniente que seja importar para Londres práticas ao bom velho estilo da Polícia de Los Angeles, isto não se assemelha a um gang, embora contasse com a presença de gangs.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

De olhos bem abertos

 
Encontrava-se o país posto em sossego, desfrutando a Páscoa sob o olhar severo dos “mercados”, quando Passos deixou escapar mais um coelho da cartola, admitindo, numa entrevista a um jornal alemão, a possibilidade de adiar o regresso ao mercado da dívida soberana para além do prazo acordado com a troika.
A oposição fez questão de reagir enquanto tal (na defraudada expectativa, porventura, de se encontrar perante um governo e não uma administração de condomínio com problemas de tesouraria), lembrando que o primeiro-ministro não tem o hábito de abrir desta forma o coração no parlamento, onde ainda recentemente garantiu que tudo corria pelo melhor.
A gestão do incidente ficou a cargo do ubíquo Miguel Relvas, que se veio queixar do “ruído” produzido pela ala esquerda do hemiciclo. Trata-se de uma ponderada escolha de palavras. Podem-se debater argumentos diferentes e porventura até opostos, mas o ruído limita-se a perturbar a tranquilidade pública, impedindo-nos de escutar as gloriosas sinfonias da competitividade. Bem pode a oposição multiplicar--se em estupefacta indignação, que Relvas não está nem aí.
A divisão do trabalho dentro do governo é apesar de tudo simples: Gaspar pede dinheiro em Bruxelas (fazendo o mínimo ruído possível), Passos Coelho diz “lá fora” aquilo que nós nunca conseguiremos entender, Assunção Cristas invoca a chuva com sortilégios democrato-cristãos e Miguel Relvas ocupa-se do ruído.
Quando o volume deste aumenta ao ponto de se tornar visível, entra em cena Miguel Macedo. O ministro da Administração Interna tem andado, como é sabido, de olhos bem abertos.

Não há justificação possível

Carta aberta aos que condenam as pilhagens VII

7. Não há justificação possível para isto. Isto é meramente destrutivo
E tanto mais que não há de facto justificação. Não há ordem ou estrutura que justifique aqueles que insistem na segunda opção. Pelo menos não em teoria ou conceptualmente (o que pode até ser fácil, pôr estas palavras nas nossas bocas e nas nossas mãos), mas apenas fazendo o que é preciso ser feito para se safar, sem aceitar meramente safar-se à conta e contentar-se com isso. Que eles podem querer, que eles vêm tudo o que há à disposição, tudo aquilo que não podem ter. Que eles estão fodidos com isto. E que já não estão para isso.
Não há justificação para isto, mas este é um tempo em que uma pessoa ou arranja justificações ou as aceita e as leva consigo.
Vocês arranjam-nas. Nós estamos do lado tanto daqueles que as levam como daqueles cujas vidas são perturbadas por uma situação em que esse levar é necessário. É errado falar aqui de vítimas. Podemos contudo afirmar que não é verdade que vocês estejam do lado daqueles que estão a perder os seus pequenos negócios. Isto porque foi a forma como vocês deixaram alguns para trás, entregues a si próprios, ao mesmo tempo que permitiam a outros esfalfar-se para continuar em frente, que conduziu a esta situação, em que alguns se atiram, bem como a qualquer destroço que apanhem do chão das ruas onde vivem, uns aos outros. E há muito que vocês deram a vossa bênção a este estado das coisas.

domingo, 8 de abril de 2012

Isto é violência indiscriminada

Carta aberta aos que condenam as pilhagens VI

6. Isto é violência indiscriminada, que não escolhe os seus alvos

Chegados aqui, torna-se indispensável desenredar outro nó. Apesar do que possam pensar, a pertença a uma classe e a decência humana não têm uma correlação directa (Se excluirmos os ricos, que são quase universalmente montagens vorazes de matéria fecal e ego.) É uma pena, pois tornaria tão mais fácil a luta de classes, as divisões e alianças tão mais límpidas. Mas indo dos extremamente pobres até à classe média e dando meia volta até ao início, encontraremos alguns que são impecáveis, alguns que são medíocres e alguns que são vis.
A diferença está apenas na forma como essas tendências são expressas. Os humanos atrozes com dinheiro suficiente para permanecer do lado certo da lei expressam-no batendo nas suas mulheres em privado e despojando os seus trabalhadores de um salário justo. Alguns dos que não têm dinheiro para o fazer são aqueles que, nestes últimos dias, se têm comportado de maneira horrível, selvagem. Qualquer pessoa que justifique isso é um idiota, e temos tão pouco interesse em fetichizar a violência em si mesma como em condenar todos aqueles que se amotinam pelo facto de algumas pessoas serem execráveis e terem visto nisto uma boa oportunidade para agir como tal, sem entraves.
Mas é inteiramente inaceitável fazer generalizações a partir disto. Tal como o é imaginar que poderíamos isolar um punhado de pessoas detestáveis num contexto em que tanta gente passou por situações detestáveis e, para ser franco, não se rala minimamente por maltratar ou estragar a propriedade daqueles que têm sido mais afortunados. Gente que sabe muito bem o que faz.

Não é assim que se protesta


Carta aberta aos que condenam as pilhagens V


5. Não têm o direito de fazer isto. Não é assim que se protesta.

É claro que não têm o direito de fazer isto. É por essa mesma razão que isto não é um protesto.

Um protesto é aquilo que se tem o direito de fazer. É aquilo que se reconhece mal se vê e se esquece mal desaparece do nosso campo de visão imediato.
Porventura o pior artigo da vossa fé, a bílis mais densa na vossa língua, é terem agora a lata de sugerir 1) que há algumas preocupações legítimas por detrás disto 2) que, nas palavras de Tim Godwin (Comissário Interino da Polícia Metropolitana), "estas são conversas que nós precisamos de encetar, mas não servem de desculpa para o que está a decorrer", 3) que os motins não vão fazer com que essas conversas ocorram e 4) que as pessoas deviam regressar a casa para que essas conversas comecem, com a garantia (e a reprimenda) de que se tivessem seguido os trâmites previstos para dar voz à sua opinião – o voto, as assembleias comunitárias, as marchas autorizadas, as campanhas por carta – então aqueles que detêm o poder para melhorar materialmente essas situações teriam todo o gosto em fazer o possível para que isso acontecesse.
Afirmar simultaneamente que este tumulto não é a via certa para que as pessoas sejam ouvidas e encorajar as pessoas a voltar às maneiras de dar voz à raiva que vocês demonstraram, na prática e ao longo das últimas décadas, não estar minimamente interessados em ouvir, é dizer-lhes directa e inequivocamente que eles eram mudos até ao momento. Que não há qualquer forma de articularem uma posição de modo a que seja reconhecida ou levada em conta.

(Dizer, como alguns de vocês dizem, que estes incidentes infelizes mostram que todos nós devemos ouvir com mais atenção é admitir - aaah! - que a desordem violenta chama de facto a atenção. Mas seguramente que é não isso que vocês estão a dizer, ou a pensar...)

Contudo, e infelizmente para vocês, um motim não é uma forma de linguagem. Não é, em particular, uma forma muito persuasiva. Não está a tentar provar um argumento ou conquistar a vossa aprovação.  Sai da frustração de bocas que, tendo em conta o quanto são ouvidos, poderiam bem ter arrancado a língua. Mas não é um discurso. Está perfeitamente farto de saber aonde é que isso leva.

sábado, 7 de abril de 2012

"Eles não trabalham. São criminosos"


Carta aberta aos que condenam as pilhagens IV


4. Eles não trabalham, são criminosos

Sim. Não trabalhar sob o capital é criminoso. É-o estruturalmente: uma falha, uma transgressão, aquilo que pede castigo – fome, prisão, coerção. Agora que deixámos para trás a era das guerras generalizadas, da habitação própria e da produção interclassista de crianças, o emprego a tempo inteiro é a garantia do estatuto de adulto, da cidadania, de se ser um sujeito de pleno direito. A ausência de trabalho – ou melhor, de trabalho reconhecido enquanto tal – equivale a uma criminalização generalizada das populações, mesmo antes de qualquer transgressão legal ocorrer de facto.
É-o também localmente, isto porque, na medida em que o trabalho significa trabalho sancionado, não trabalhar implica que uma pessoa trabalhe em moldes que são tecnicamente criminosos: roubar, vender bens roubados, vender drogas, vender o corpo, burlar, pedir, ocupar, pilhar.
E num tempo como o nosso, em que não há empregos suficientes à disposição, ou, cruzes credo, em que as pessoas não querem trabalhar, não querem mergulhar as suas vidas em horas de suor e tédio das quais tanto elas como as suas famílias ou a sua vizinhança apenas colherão uma ínfima porção da recompensa, num tempo como este, continuar a dizer às pessoas que esta não é a maneira certa de fazer as coisas é, literalmente e sem tirar nem pôr, dizer-lhes: vocês não poderão trabalhar e vocês não poderão não trabalhar. Têm que se desenrascar e devem fazê-lo sem grande escarcéu.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Carta aberta aos que condenam as pilhagens III


(Parte I, Parte II)
3. Eles estão simplesmente a ser "materialistas," a roubar coisas que não conseguem comprar

Não me digam que estavam à espera que as pessoas se revoltassem imaterialmente? Estavam à espera que apenas pilhassem coisas que conseguem comprar?

Mas, tal como antes, concordamos com a letra da vossa condenação: as pessoas estão a tomar esta situação material como uma oportunidade para roubar coisas que não poderiam - ou que poderiam, mas com grande sacrifício – comprar. Isto é inteiramente verdade.
Mas, ao dizê-lo, há duas questões distintas, duas linhas entrançadas de trampa.
Em primeiro lugar, a acusação recorrente de “materialista” assinala uma recusa mais ampla não do consumismo – com o qual vocês são unha e carne e que celebram a plenos pulmões – mas do facto material da convulsão social. Falar com desdém da natureza materialista destes dias é falar, à boca fechada, da vossa vontade de que as pessoas voltem a “protestar” de formas que continuem a ser representativas: dar a cara, ser visto, ser ignorado e voltar aos lugares onde se vive, deixar-se estar por lá. Revela o vosso terror quando se vêm perante um “protesto” que se torna material e deixa, por isso mesmo, de ser protesto.
Reconhecer isto não é de todo desistir de avaliar a situação: podemos obviamente – e devemos – pensar seriamente acerca das inflexões desta mudança, sobre o que quer dizer o facto de esta crítica material da cidade bater indiscriminadamente, não diferenciar entre as cadeias e as “lojas de bairro”. E pensar seriamente nisto significa agir de forma a contribuir para esta inflexão, atirar-nos para o meio dela, ou bloquearmos o seu caminho, conforme a nossa inclinação. Mas soterrado sob o ataque ao “materialismo grosseiro” da pilhagem está uma minhoca bem mais perniciosa, a da distância e do verniz, que apoia a crítica e o confronto exactamente na medida em que permanece irrelevante e imaterial, visto e ouvido mas não sentido.


Carta aberta aos que condenam as pilhagens II









(Parte I aqui)


2. Isto não é justo

Esta é uma réplica comum e, uma vez mais, é inteiramente verdade. Atrelada a ela vem um reconhecimento inteiramente justo dos estragos em curso e do trauma que estes acarretam, que se traduz acima de tudo em perda de propriedade para muitos que claramente não são sequer remotamente ricos, aqueles que também se vêm à rasca para se desenrascarem, que vão construindo uma vida humilde ao longo de longos anos.

E para aqueles que nos perguntariam, com o intuito de nos pôr no nosso lugar: pois, mas e se fosse a vossa casa? O vosso carro? A vossa loja? Dizemos:


Ficaríamos furiosos. Ficaríamos desolados. Como não?


Porque a questão aqui nada tem a ver com “legitimar” a violência ou negar o choque e o terror sofrido por aqueles que foram apanhados pelo fogo cruzado. Trata-se antes do facto de, tal como os próprios padrões do político colapsam no que toca à sua capacidade básica de capturar e expressar adequadamente as contradições de uma massa gigantesca de vidas, o mesmo se aplicar aos seus padrões conceptuais básicos.


«Let's clean this city with burning flames of fire»



quarta-feira, 4 de abril de 2012

Carta aberta aos que condenam as pilhagens


Em antecipação da palestra A Recusa da Cidade, por Evan Calder Williams, no Maria Matos, vamos aqui publicar a tradução portuguesa da Carta Aberta aos Condenam as Pilhagens (Edições Antipáticas, 2011), uma reflexão a propósito dos motins e pilhagens de Londres. Tanto mais que o essencial deste texto ultrapassa o seu contexto original:

"quando os pobres ficam mais pobres, as suas necessidades – e desejos, essa coisa que as classes médias e altas tanto gostam de menosprezar, como se querer algo que não temos dinheiro para comprar significasse que somos tontinhos – não têm a gentileza e boa educação de desaparecer. Tornam-se, pelo contrário, mais desesperadas, as zonas da cidade divididas de forma mais vincada e a polícia mais bruta."
 Como esta foi originalmente publicada numa série de posts no Socialism and/or Barbarism, vamos também aqui dividi-la em partes.


Carta aberta aos que condenam as pilhagens

Evan Calder Williams


Caros todos,

Temo que nada tenhamos a dizer uns aos outros.

O que se segue pode por isso constituir uma das metades de um diálogo, da mesma forma que berrar em frente a uma jukebox feita de gelo o seria. É concebível que o próprio esforço de falar – uma certa quantidade de ar quente – amoleça um pouco a superfície, mas não deixa por esse facto de ser uma discussão unilateral. E não implica, igualmente, que vocês possam ou cheguem de facto a interromper a repetição dos discos que vos foram dados para tocar, essas vossas frases e evasões em circuito fechado e contínuo.

A Recusa da Cidade


Daqui a uma semana, No dia 10 de Abril, terça-feira (18h30), tem lugar a primeira das Palestras para o dia de amanhã, co-organizadas pela Unipop e o Teatro Maria Matos. A primeira tem como título A Recusa da Cidade, por Evan Calder Williams, nome que já foi surgindo neste blogue de vez em quando. Eis um resumo alternativo ao que surge no site oficial:


A Recusa da Cidade
A presente conjuntura tem agudizado uma lógica estrutural do Capitalismo: certas partes do globo, certas zonas das cidades e uma parte crescente das populações são empurradas para as margens. Foi a partir deste ângulo cego do sistema, e fora da esfera estrita do que é tido como político, que se foram alastrando motins e pilhagens, confrontos e ocupações. A lógica a que obedecem, para lá do protesto (pois o sistema não está aberto à negociação do seu fim) tem na cidade o seu terreno de intervenção e campo de batalha priveligiados. Como recusar a cidade enquanto palco para a circulação de Capital, como ocupar não só os lugares mas uma história alternativa? Calder Williams, que escreveu uma extensa «Carta aberta a todos os que condenam os motins», procura aqui ensaiar uma resposta: interromper as linhas de circulação, apanhar o que estiver à mão e arrancar os objectos aos seus usos presentes, mobilizar os escombros para construir barricadas e outros modos de existir colectivamente. Um manifesto para cortar o nó com o presente e reatar o nó entre antagonismo e solidariedade.


Evan Calder Williams foi autor do blogue Socialism and/or Barbarism , que entretanto  deixou pelo post contínuo The Noonday Shadow e tem ainda no currículo dois livros, Combined and Uneven Apocalypse (Zero Books, 2010) e Roman Letters (Oslo editions, 2011). Particularmente cara à Unipop e pertinente para os tempos que correm é a sua Carta Aberta aos que condenam as pilhagens, traduzida para português e editada pelas Edições Antipáticas em 2011. Integra o corpo editorial da revista Historical Materialism e escreve regularmente para publicações como Film Quarterly, Radical Philosophy e Mute.


segunda-feira, 2 de abril de 2012


Ao sexto dia, a PSP veio finalmente esclarecer o que se passou afinal na esquina da Rua Garrett com a Serpa Pinto, ao Chiado, no dia da greve geral, pela mui solícita pena de Valentina Marcelina, jornalista do “Diário de Notícias” nas horas vagas e escritora de policiais negros por profissão. Espécie de porta-voz oficiosa da PSP, Valentina há já alguns anos vem relatando aos seus leitores o heroísmo com que a polícia combate sucessivas conspirações anarquistas contra a ordem estabelecida.
Foi ela que relatou, em vésperas da Cimeira da NATO, a detenção na fronteira de um casal espanhol “suspeito de pertencer ao black block”. O casal terá negado tudo, mas viu-se incapaz de desmentir o que as provas materiais evidenciavam: traziam na mala roupas pretas, um indesmentível sinal dos seus tenebrosos intentos.
É agora a vez do SIS (“a inteligência”) pagar a fava, por ter apresentado à PSP um relatório “alarmista” que previa diversas catástrofes para o dia da greve, entre as quais uma manifestação de ciclistas e paletes de perigosos subversivos armados, garante Valentina, com tampas de panelas e sprays de tinta (há limites para o que se pode fazer apenas com roupas pretas). Sendo o texto “confidencial”, ficámos a saber apenas o que era conveniente que ficássemos a saber, ou seja, que a PSP terá espancado quem encontrou pela frente por causa da secreta. Foram as más companhias…
Ainda viremos a ter saudades do tempo em que nos garantiam que a culpa era toda dos anarquistas. Sendo igualmente delirante, era menos insultuoso para a nossa inteligência.

domingo, 1 de abril de 2012

Especialistas em Portugueses

(o meu artigo no i na última quinta-feira)

Há um tipo de pessoa que tem vindo a ganhar protagonismo no espaço mediático. É o especialista em portugueses. O especialista em portugueses tanto pode ser especialista em portugueses na variante corpo como na variante alma. O primeiro é generoso na hora de avolumar estatística e mais estatística sobre o chamado comportamento dos portugueses, lançando-se na grande aventura dos dados, dos números e das contas que lhe permitirão produzir largas séries que registam, por exemplo, a poupança e o consumo dos portugueses. O segundo, o especialista em portugueses na variante alma, dedica-se a trabalho mais minucioso, tricotando conceitos, ideias e teses, quando não parábolas, que lhe permitirão aceder de modo singular e único – assim julga… – ao famigerado enigma português.

Um e outro especialista têm um problema fundamental com a democracia. O especialista em portugueses na variante corpo tende a classificar qualquer alternativa ao que quer que seja como cientificamente inviável, independentemente do que sobre isso tem a dizer a vontade da maioria. Para ele não se trata de querer ou não consultar o povo, mas da irrelevância de tal exercício perante o que considera ser a força da realidade. Por isso ele diz-nos que não é contra a democracia mas que simplesmente não pode ser a seu favor. É a moral da breve história do actual governo: foi eleito com base num programa que já não é compatível com a realidade tal como esta passou a ser por ele entendida a partir do momento que tomou posse.

Já para o especialista em portugueses na variante alma, o problema da democracia é outro. Para este especialista o problema é que os portugueses não são susceptíveis de gerar vontades alternativas e ter uma voz crítica. (Com a excepção do próprio especialista, presume-se, pois de outro modo não seria ele mesmo susceptível de denunciar tão atávica situação…). É em muitos elogios e em algumas das críticas a Salazar que esta ideia de que a cultura política dos portugueses é incompatível com a democracia frequentemente se afirma. Entre os elogios, temos quem entenda não haver porque criticar um ditador que mais não terá sido do que a expressão das circunstâncias de um país e de um povo. E entre os críticos do salazarismo há quem, desolado com o que considera ser a actual passividade política do que apoda de povo, não hesite em concluir que tivemos o Salazar que merecíamos.

Assim, sendo, o triste cenário mediático que temos obriga-nos a escolher uma de duas: ou nos embrutecermos com os especialistas na variante corpo olhando para os gráficos que Medina Carreira vai esgrimindo com uma ética da rabugice que nenhum dono de mercearia saberia copiar; ou nos mitificamos a dar ouvidos aos diagnósticos mastigados de José Gil sobre a existência e a portugalidade.

Haverá alternativa a este dilema?

Creio que sim, que existem pelo menos duas alternativas.

A primeira alternativa é ainda mais medonha do que qualquer uma das opções antes colocada. Trata-se da emergência e triunfo de especialistas que versam tanto sobre o corpo como sobre a alma dos portugueses. Juntam-se assim dois males numa só pessoa. Desde que a crise começou, o caso mais revelador deste perigo talvez seja o sucesso mediático de uma figura como António Barreto. Por um lado temos o espectáculo da exibição por Barreto das tabelas, quadros e gráficos do seu Pordata, numa campanha mediática cuja adulação jornalística só fica a dever à bajulação de que em tempos foi alvo o acervo de imagens exposto por Berardo no CCB. Por outro lado temos o tipo de discursos do 10 de Junho a que Barreto se habituou e que parece não querer largar em todo e qualquer dia do ano, oferecendo-nos a enésima sondagem à alma e aos contornos da identidade nacional, sempre redundada por apelos ao brio patriótico dos portugueses.

A segunda alternativa é bem mais interessante. Passa por matar de vez os especialistas em portugueses, de recusar o palco aos especialistas de qualquer espécie, sejam de esquerda ou de direita, versados na variante corpo ou na variante alma, oriundos do mundo académico ou do campo empresarial. Medina Carreira, José Gil e António Barreto poderão continuar a subir ao palco, certamente que sim, mas devidamente desautorizados, destituídos das poses de peritos, pensadores e senadores que garbosamente procuram impingir-nos.

Agente é da polícia

O talentoso Smiley Culture morreu há um ano em circunstâncias ainda por apurar. Esta é a página de uma campanha em nome de todos aqueles que morreram sob custódia da polícia no Reino Unido, como Smiley Culture. Qualquer semelhança com a realidade lusitana não é mera coincidência.