o meu artigo no i de quinta-feira
A Escola da Fontinha não é simplesmente nome de um projecto
social, cultural ou educativo. Todos estes qualificativos são respeitáveis, sem
dúvida alguma, mas temo que falhem o que de substancial se joga na Fontinha. A
Escola da Fontinha é antes de mais, de onde eu a vejo, o nome de um projecto de
poder (ou de anti-poder, se preferirem) que se caracteriza por assumir uma
natureza económica e política radicalmente democrática (ou anarquista, se
preferirem). E é isto que a singulariza.
Do ponto de vista económico, a Fontinha não é enquadrável em
nenhuma das duas alternativas que tomaram conta do debate económico no espaço
mediático dominante. Essas duas alternativas rezam que ou as coisas pertencem à
ordem pública regida pelo Estado ou pertencem a uma esfera privada oleada pelos
mecanismos de mercado. Este é um esquema que facilmente reconhecemos nos
discursos partidários: mais à esquerda, falamos dos riscos da privatização das
funções económicas e sociais do Estado; mais à direita, reclama-se que o Estado
deixe a sociedade entregue à liberdade individual e mercantil.
O projecto Escola da Fontinha não pertence a este filme. O
projecto não é determinado por objectivos mercantilistas, como reza a apologia
das privatizações, segundo a qual a economia só pode funcionar se baseada num
regime de competição em que todos lutem contra todos. E também não entende que
o Estado seja a única alternativa a este regime liberal ou neoliberal. Na
verdade, é bom de ver que o projecto da Escola da Fontinha procura antes de
mais disputar o controlo de uma propriedade do Estado. Poder-se-ia também
dizer, assim sendo, que o projecto da Escola da Fontinha – continue na Fontinha
ou dissemine-se por outros pontos do país! – trava um combate contra o
monopólio estatal da propriedade pública e contra a ideia de que a única
alternativa ao Estado é a mercantilização da sociedade.
Dir-me-ão que este combate por um espaço autónomo tanto do
Estado como do mercado não tem no projecto da Escola da Fontinha o seu único
testemunho. É verdade. E basta ver que, na mesma semana em que o Estado
procurou destruir o projecto da Escola da Fontinha, fez furor mediático a
campanha “Zero Desperdício”. Esta campanha pretende que os restos alimentícios
dos mais abastados cheguem à mesa dos menos afortunados, montando-se uma cadeia
de distribuição de recursos que escapa tanto à esfera do mercado como ao
planeamento do Estado. A campanha rege-se pelo seguinte princípio económico, a
que deram voz alguns músicos portugueses: “O que eu não aproveito ao almoço e
ao jantar, a ti deve dar jeito, temos que nos encontrar”.
Campanhas como esta proliferarão nos próximos tempos à
medida que a crise se intensifica. E é também por isso que um projecto como o
da Escola da Fontinha é tão importante. Porque se a Escola da Fontinha partilha
com campanhas como o “Zero Desperdício” a ideia de que é necessário construir
territórios e redes sociais autónomas do Estado e do mercado, distingue-se
radicalmente pelo elemento político que a constitui: na Escola da Fontinha não
se trata de ajudar a população empobrecida do bairro, mas de construir um
projecto que se pretende baseado no exercício de uma democracia que determina o
que se faz, como se faz, quem faz, num plano de igualdade entre tudo e todos os
que participem no processo, sem hierarquias, sem líderes e sem cantautores que
por misericórdia deixam os restos da sua refeição para os pobres. Rita Blanco,
uma das poucas vozes do mundo do espectáculo que veio criticar o paternalismo
miserável da campanha “Zero Desperdício”, não podia ser mais justa nas suas palavras:
«Estamos a voltar ao antigamente, com coisas muito semelhantes. Ninguém pode
viver à mercê da boa vontade dos outros. Surpreende-me a capacidade de
movimentação para estes movimentos (de dito apoio social e solidário), mas não
para discutir as leis e lutar pelos direitos das pessoas. Esta caridadezinha
não é liberdade, isso é capitalismo selvagem».
Em suma, o projecto da Fontinha cria uma oportunidade para
uma prática absoluta da democracia, recusando que a nossa sorte seja abandonada
quer às mãos do patrão e do Estado quer aos apetites dos mais ricos.
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