(Parte I, Parte II)
3. Eles estão simplesmente a ser "materialistas," a roubar coisas que não conseguem comprar
Não me digam que estavam à espera que as pessoas se revoltassem imaterialmente? Estavam à espera que apenas pilhassem coisas que conseguem comprar?
Não me digam que estavam à espera que as pessoas se revoltassem imaterialmente? Estavam à espera que apenas pilhassem coisas que conseguem comprar?
Mas, tal como antes, concordamos com a letra da vossa condenação: as pessoas estão a tomar esta situação material como uma oportunidade para roubar coisas que não poderiam - ou que poderiam, mas com grande sacrifício – comprar. Isto é inteiramente verdade.
Mas, ao dizê-lo, há duas questões distintas, duas linhas entrançadas de trampa.
Em primeiro lugar, a acusação recorrente de “materialista” assinala uma recusa mais ampla não do consumismo – com o qual vocês são unha e carne e que celebram a plenos pulmões – mas do facto material da convulsão social. Falar com desdém da natureza materialista destes dias é falar, à boca fechada, da vossa vontade de que as pessoas voltem a “protestar” de formas que continuem a ser representativas: dar a cara, ser visto, ser ignorado e voltar aos lugares onde se vive, deixar-se estar por lá. Revela o vosso terror quando se vêm perante um “protesto” que se torna material e deixa, por isso mesmo, de ser protesto.
Reconhecer isto não é de todo desistir de avaliar a situação: podemos obviamente – e devemos – pensar seriamente acerca das inflexões desta mudança, sobre o que quer dizer o facto de esta crítica material da cidade bater indiscriminadamente, não diferenciar entre as cadeias e as “lojas de bairro”. E pensar seriamente nisto significa agir de forma a contribuir para esta inflexão, atirar-nos para o meio dela, ou bloquearmos o seu caminho, conforme a nossa inclinação. Mas soterrado sob o ataque ao “materialismo grosseiro” da pilhagem está uma minhoca bem mais perniciosa, a da distância e do verniz, que apoia a crítica e o confronto exactamente na medida em que permanece irrelevante e imaterial, visto e ouvido mas não sentido.
Contudo, em termos mais concretos ainda, esta condenação do “materialismo” assinala uma surpreendente ausência de auto-reflexividade, a par de uma insistência na patologização, racialização e des-historicização dos pobres e dos furiosos.
Sejamos pois completamente sinceros. Vocês que trabalham, que têm a oportunidade de o fazer, tanto aqueles a quem essa oportunidade foi dada de mão beijada como os que tiveram de lutar com unhas e dentes para a terem, vocês que têm o vosso “ganha-pão honesto”: será que trabalham mesmo para cobrir as necessidades básicas e nada mais? Trabalham apenas o suficiente para sacar a dosagem mínima recomendada de calorias, um cilício, um quartozinho vazio, uma merecida imperial quando chega o fim-de-semana, o passe para se deslocarem até ao trabalho? Será que desdenham verdadeiramente o desejo para lá disso?
Não. Não desdenham. Nós também não. Mesmo que estejam entre aqueles que raramente se podem dar a esses luxos, querem, esganam-se e esfalfam-se e enganam e pedem emprestado para terem uns ténis caros, uma televisão grande, um jipe, um carrinho de bebé que parece um jipe, vodca do caro, calças com o nome de uma certa marca no rabo e que vos faz o rabo jeitoso, brincos, água-de-colónia, cigarros que não sabem a cartão, jogos de computador, diamantes, bife da vazia (Ou, pior ainda, fazem de conta que estão acima dessas coisas. E portanto querem antes um novo carro híbrido, sabão feito de cânhamo, uns produtos de agricultores das redondezas, um apartamento com chão de bambu, as obras completas de Matthew Arnold1).
Não. Não desdenham. Nós também não. Mesmo que estejam entre aqueles que raramente se podem dar a esses luxos, querem, esganam-se e esfalfam-se e enganam e pedem emprestado para terem uns ténis caros, uma televisão grande, um jipe, um carrinho de bebé que parece um jipe, vodca do caro, calças com o nome de uma certa marca no rabo e que vos faz o rabo jeitoso, brincos, água-de-colónia, cigarros que não sabem a cartão, jogos de computador, diamantes, bife da vazia (Ou, pior ainda, fazem de conta que estão acima dessas coisas. E portanto querem antes um novo carro híbrido, sabão feito de cânhamo, uns produtos de agricultores das redondezas, um apartamento com chão de bambu, as obras completas de Matthew Arnold1).
E portanto, mesmo antes de emergir a questão da criminalidade (a forma como esses bens foram obtidos), vocês condenam os saqueadores por outra coisa: por quererem os objectos que vocês querem. Estão a condená-los por partilharem o vosso desejo.
Estão a classificar o vosso desejo como algo de abjecto e inaceitável, assim que é desligado da legitimação do trabalho. A vossa ideia, portanto, é que eles devem desejar mas, ao mesmo tempo, verem-se privados da recompensa. Que essa é a condição fundamental do pobre: querer e continuar a querer. Que o querer deve equivaler apenas àquilo a que se pode aceder.
Estão a classificar o vosso desejo como algo de abjecto e inaceitável, assim que é desligado da legitimação do trabalho. A vossa ideia, portanto, é que eles devem desejar mas, ao mesmo tempo, verem-se privados da recompensa. Que essa é a condição fundamental do pobre: querer e continuar a querer. Que o querer deve equivaler apenas àquilo a que se pode aceder.
De tal modo que quando dobram o pau na direcção do contra-factual (como muitas das condenações vindas da esquerda encostada ao centro) e dizem, bem, a coisa seria diferente se eles estivessem a tirar comida, fraldas, remédio, estás a ver, as coisas de que precisamos para sobreviver, o que está a ser dito é que eles deviam roubar apenas bens de uma qualidade equivalente ao seu estatuto social. Os pobres, cujo nível de vida não é muito alto, deveriam ter bens de um nível não muito alto. Não deviam tirar cigarros pré-enrolados. Não deviam tirar champanhe, ou pelo menos não daquele bom que se guarda para ocasiões especiais. Não deviam estar a tirar televisões com uma data de polegadas. Porque eles não merecem estas coisas. Deviam olhar-se ao espelho e ter mais juizinho.
E para mais vocês estão fundamentalmente equivocados quando reduzem isto a um desejo de bens. O acto de tirar não é uma redistribuição neutra de bens de consumo no mercado.
O que é a pilhagem, afinal? Pilhar não é sacar umas coisas de uma loja à socapa. Não é roubar, que implica a coerência de uma relação entre potenciais proprietários, daqueles que possuem àqueles que tiram, de tal modo que os últimos passam a possuir esse bem, na forma de propriedade, independentemente de o terem obtido de forma “duvidosa”. Isso não é pilhagem. A pilhagem não é consumismo por outros meios. A pilhagem é um jogo de tudo ou nada, e nisto é uma quebra da consistência da propriedade enquanto título e enquanto transferência entre sujeitos particulares.
A pilhagem é necessariamente colectiva: pondo de lado as fantasias de um Rambo proletário, não é um esforço individual. É uma horda de pessoas que levam tudo, porque nela está implícita também a natureza total do roubo. Sem táctica, sem mil e um cuidados, sem dissimulação. É um momento de abandono total, que se define pelo facto de tratar tudo aquilo com que se entra em contacto como estando à mão de semear. Pilhar, ou saquear. O verbo saquear é apenas uma versão do substantivo saque, que significa “ganhos ilícitos”, isto é “propriedade roubada”. E isto aplica-se à relação que a pilhagem tem com as lojas, as ruas, a cidade e o mundo em que se desenrola: vê tudo isso já enquanto saque, a propriedade como roubo, guardada, protegida atrás de vidro e aço.
Trata-se, portanto, de um verdadeiro colapso dessa mesma lógica que vocês apregoam e a partir da qual lançam admoestações, de merecer, de viver consoante o dinheiro que se tem no bolso, de ser e querer nada mais do que se pode ser e querer, de ter o realismo da frustração a que se exige aos pobres e apenas aos pobres. É um ataque.
A vossa ansiedade e nervoso miudinho face a isto é inteiramente compreensível, dado que tem pouco a ver com “eles”. Regista antes a forma como entendem a vossa própria propriedade, a vossa lascívia, os vossos gostos. Mais especificamente, o facto de vocês não terem especial interesse por aquele belo par de ténis por ser confortável/bonito/vos ajudar a correr depressa. Esta parte é acessória. A especificidade do vosso desejo é negativa. Reside no facto de não quererem que outras pessoas os tenham. É que vocês não anseiam pela plenitude propriamente dita, sobretudo não para os muitos, mas pela condição de escassez generalizada sobre a qual as vossas posses se erguem como uma torre. E isto é tanto mais verdade quanto vocês o negam e denunciam, o relativizam (afinal de contas, exibir a riqueza às claras é suposto ser o terreno e a prática dos pobres e menos sofisticados). Não têm sequer a decência de o esfregar na nossa cara. Bem, estamos a atravessar tempos difíceis, mas lá me vou safando. Temos todos que apertar o cinto de vez em quando.
Vocês condenam, então, os que estão demasiado esfomeados, fodidos da vida, aborrecidos, fartos, e desesperados para praticar a auto-abnegação que vocês macaqueiam. Com uma excepção. Há uma coisa que é suposto eles quererem e fazerem tudo para conseguir: um emprego. E portanto...
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