quinta-feira, 5 de abril de 2012

Carta aberta aos que condenam as pilhagens III


(Parte I, Parte II)
3. Eles estão simplesmente a ser "materialistas," a roubar coisas que não conseguem comprar

Não me digam que estavam à espera que as pessoas se revoltassem imaterialmente? Estavam à espera que apenas pilhassem coisas que conseguem comprar?

Mas, tal como antes, concordamos com a letra da vossa condenação: as pessoas estão a tomar esta situação material como uma oportunidade para roubar coisas que não poderiam - ou que poderiam, mas com grande sacrifício – comprar. Isto é inteiramente verdade.
Mas, ao dizê-lo, há duas questões distintas, duas linhas entrançadas de trampa.
Em primeiro lugar, a acusação recorrente de “materialista” assinala uma recusa mais ampla não do consumismo – com o qual vocês são unha e carne e que celebram a plenos pulmões – mas do facto material da convulsão social. Falar com desdém da natureza materialista destes dias é falar, à boca fechada, da vossa vontade de que as pessoas voltem a “protestar” de formas que continuem a ser representativas: dar a cara, ser visto, ser ignorado e voltar aos lugares onde se vive, deixar-se estar por lá. Revela o vosso terror quando se vêm perante um “protesto” que se torna material e deixa, por isso mesmo, de ser protesto.
Reconhecer isto não é de todo desistir de avaliar a situação: podemos obviamente – e devemos – pensar seriamente acerca das inflexões desta mudança, sobre o que quer dizer o facto de esta crítica material da cidade bater indiscriminadamente, não diferenciar entre as cadeias e as “lojas de bairro”. E pensar seriamente nisto significa agir de forma a contribuir para esta inflexão, atirar-nos para o meio dela, ou bloquearmos o seu caminho, conforme a nossa inclinação. Mas soterrado sob o ataque ao “materialismo grosseiro” da pilhagem está uma minhoca bem mais perniciosa, a da distância e do verniz, que apoia a crítica e o confronto exactamente na medida em que permanece irrelevante e imaterial, visto e ouvido mas não sentido.



Contudo, em termos mais concretos ainda, esta condenação do “materialismo” assinala uma surpreendente ausência de auto-reflexividade, a par de uma insistência na patologização, racialização e des-historicização dos pobres e dos furiosos.
Sejamos pois completamente sinceros. Vocês que trabalham, que têm a oportunidade de o fazer, tanto aqueles a quem essa oportunidade foi dada de mão beijada como os que tiveram de lutar com unhas e dentes para a terem, vocês que têm o vosso “ganha-pão honesto”: será que trabalham mesmo para cobrir as necessidades básicas e nada mais? Trabalham apenas o suficiente para sacar a dosagem mínima recomendada de calorias, um cilício, um quartozinho vazio, uma merecida imperial quando chega o fim-de-semana, o passe para se deslocarem até ao trabalho? Será que desdenham verdadeiramente o desejo para lá disso?
Não. Não desdenham. Nós também não. Mesmo que estejam entre aqueles que raramente se podem dar a esses luxos, querem, esganam-se e esfalfam-se e enganam e pedem emprestado para terem uns ténis caros, uma televisão grande, um jipe, um carrinho de bebé que parece um jipe, vodca do caro, calças com o nome de uma certa marca no rabo e que vos faz o rabo jeitoso, brincos, água-de-colónia, cigarros que não sabem a cartão, jogos de computador, diamantes, bife da vazia (Ou, pior ainda, fazem de conta que estão acima dessas coisas. E portanto querem antes um novo carro híbrido, sabão feito de cânhamo, uns produtos de agricultores das redondezas, um apartamento com chão de bambu, as obras completas de Matthew Arnold1).

E portanto, mesmo antes de emergir a questão da criminalidade (a forma como esses bens foram obtidos), vocês condenam os saqueadores por outra coisa: por quererem os objectos que vocês querem. Estão a condená-los por partilharem o vosso desejo.
Estão a classificar o vosso desejo como algo de abjecto e inaceitável, assim que é desligado da legitimação do trabalho. A vossa ideia, portanto, é que eles devem desejar mas, ao mesmo tempo, verem-se privados da recompensa. Que essa é a condição fundamental do pobre: querer e continuar a querer. Que o querer deve equivaler apenas àquilo a que se pode aceder.

De tal modo que quando dobram o pau na direcção do contra-factual (como muitas das condenações vindas da esquerda encostada ao centro) e dizem, bem, a coisa seria diferente se eles estivessem a tirar comida, fraldas, remédio, estás a ver, as coisas de que precisamos para sobreviver, o que está a ser dito é que eles deviam roubar apenas bens de uma qualidade equivalente ao seu estatuto social. Os pobres, cujo nível de vida não é muito alto, deveriam ter bens de um nível não muito alto. Não deviam tirar cigarros pré-enrolados. Não deviam tirar champanhe, ou pelo menos não daquele bom que se guarda para ocasiões especiais. Não deviam estar a tirar televisões com uma data de polegadas. Porque eles não merecem estas coisas. Deviam olhar-se ao espelho e ter mais juizinho.
E para mais vocês estão fundamentalmente equivocados quando reduzem isto a um desejo de bens. O acto de tirar não é uma redistribuição neutra de bens de consumo no mercado.
O que é a pilhagem, afinal? Pilhar não é sacar umas coisas de uma loja à socapa. Não é roubar, que implica a coerência de uma relação entre potenciais proprietários, daqueles que possuem àqueles que tiram, de tal modo que os últimos passam a possuir esse bem, na forma de propriedade, independentemente de o terem obtido de forma “duvidosa”. Isso não é pilhagem. A pilhagem não é consumismo por outros meios. A pilhagem é um jogo de tudo ou nada, e nisto é uma quebra da consistência da propriedade enquanto título e enquanto transferência entre sujeitos particulares.
A pilhagem é necessariamente colectiva: pondo de lado as fantasias de um Rambo proletário, não é um esforço individual. É uma horda de pessoas que levam tudo, porque nela está implícita também a natureza total do roubo. Sem táctica, sem mil e um cuidados, sem dissimulação. É um momento de abandono total, que se define pelo facto de tratar tudo aquilo com que se entra em contacto como estando à mão de semear. Pilhar, ou saquear. O verbo saquear é apenas uma versão do substantivo saque, que significa “ganhos ilícitos”, isto é “propriedade roubada”. E isto aplica-se à relação que a pilhagem tem com as lojas, as ruas, a cidade e o mundo em que se desenrola: vê tudo isso já enquanto saque, a propriedade como roubo, guardada, protegida atrás de vidro e aço.
Trata-se, portanto, de um verdadeiro colapso dessa mesma lógica que vocês apregoam e a partir da qual lançam admoestações, de merecer, de viver consoante o dinheiro que se tem no bolso, de ser e querer nada mais do que se pode ser e querer, de ter o realismo da frustração a que se exige aos pobres e apenas aos pobres. É um ataque.

A vossa ansiedade e nervoso miudinho face a isto é inteiramente compreensível, dado que tem pouco a ver com “eles”. Regista antes a forma como entendem a vossa própria propriedade, a vossa lascívia, os vossos gostos. Mais especificamente, o facto de vocês não terem especial interesse por aquele belo par de ténis por ser confortável/bonito/vos ajudar a correr depressa. Esta parte é acessória. A especificidade do vosso desejo é negativa. Reside no facto de não quererem que outras pessoas os tenham. É que vocês não anseiam pela plenitude propriamente dita, sobretudo não para os muitos, mas pela condição de escassez generalizada sobre a qual as vossas posses se erguem como uma torre. E isto é tanto mais verdade quanto vocês o negam e denunciam, o relativizam (afinal de contas, exibir a riqueza às claras é suposto ser o terreno e a prática dos pobres e menos sofisticados). Não têm sequer a decência de o esfregar na nossa cara. Bem, estamos a atravessar tempos difíceis, mas lá me vou safando. Temos todos que apertar o cinto de vez em quando.
Vocês condenam, então, os que estão demasiado esfomeados, fodidos da vida, aborrecidos, fartos, e desesperados para praticar a auto-abnegação que vocês macaqueiam. Com uma excepção. Há uma coisa que é suposto eles quererem e fazerem tudo para conseguir: um emprego. E portanto...

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