quarta-feira, 4 de abril de 2012

Carta aberta aos que condenam as pilhagens


Em antecipação da palestra A Recusa da Cidade, por Evan Calder Williams, no Maria Matos, vamos aqui publicar a tradução portuguesa da Carta Aberta aos Condenam as Pilhagens (Edições Antipáticas, 2011), uma reflexão a propósito dos motins e pilhagens de Londres. Tanto mais que o essencial deste texto ultrapassa o seu contexto original:

"quando os pobres ficam mais pobres, as suas necessidades – e desejos, essa coisa que as classes médias e altas tanto gostam de menosprezar, como se querer algo que não temos dinheiro para comprar significasse que somos tontinhos – não têm a gentileza e boa educação de desaparecer. Tornam-se, pelo contrário, mais desesperadas, as zonas da cidade divididas de forma mais vincada e a polícia mais bruta."
 Como esta foi originalmente publicada numa série de posts no Socialism and/or Barbarism, vamos também aqui dividi-la em partes.


Carta aberta aos que condenam as pilhagens

Evan Calder Williams


Caros todos,

Temo que nada tenhamos a dizer uns aos outros.

O que se segue pode por isso constituir uma das metades de um diálogo, da mesma forma que berrar em frente a uma jukebox feita de gelo o seria. É concebível que o próprio esforço de falar – uma certa quantidade de ar quente – amoleça um pouco a superfície, mas não deixa por esse facto de ser uma discussão unilateral. E não implica, igualmente, que vocês possam ou cheguem de facto a interromper a repetição dos discos que vos foram dados para tocar, essas vossas frases e evasões em circuito fechado e contínuo.


Afinal de contas, já ouvimos o que têm para nos dizer. Também nós conhecemos as letras de cor. Na melhor das hipóteses, achamo-las profundamente duvidosas e, na pior, uma papa biliosa, racista, banal e assassina, imprópria para as nossas bocas e ouvidos. E não é que haja por aí muita coisa melhorzinha, nos dias que correm.
Presumo que dirão o mesmo da nossa posição, embora usando diferentes adjectivos. Pueril, destrutiva, irrazoável, e ingénua são os primeiros que me ocorrem, isto se o vosso historial de acusações servir de indicador. Infelizmente, dada a estrutura dos media e dos fluxos de informação, não podemos deixar de ouvir o que vocês dizem, ao passo que vocês podem muito bem continuar a ignorar aquilo que nós fazemos. Pelo menos até que uma data de pessoas comece a incendiar a vossa cidade, altura em que porventura, num lapso de fraqueza, se dignem a ouvir aqueles que têm umas ideias sobre o assunto. Não que isso seja muito provável. Vivemos em tempos ruidosos.
É pena, porque na verdade até concordamos numa série de pontos. Isto porque vocês classificam estes motins, e estas pilhagens, como oportunistas. Como algo de irrazoável e estúpido. Que “isto não é um protesto, é um motim”. Que “não são políticos”. Que estamos perante “indivíduos que usam a desculpa do que aconteceu nas primeiras duas noites para garantir que a terceira seja ainda pior.” Que isto é “o caos”. Que isto é “criminalidade pura e simples”. Que eles “não têm o direito” de fazer isto. Que “benefício algum, a longo prazo” poderá resultar do acto de “pilhar uma loja de bairro”, “incendiar um autocarro” ou “gamar um telemóvel”. Acima de tudo, como vocês, Ministros da Administração Interna, gostam de colocar a questão: “Não há justificação possível para a violência. Não há qualquer justificação para a pilhagem.”

E nós concordamos.


Existem entre nós alguns pontos de divergência, é certo. Nós não vemos “esta gente” como “símios”, “ratazanas”, ou “cães”. Mas acreditamos que vocês os vêm assim mesmo e que as razões da vossa crença não são os acontecimentos recentes: estes são apenas uma confirmação daquilo que vocês sempre pensaram acerca dos que são definitivamente mais pobres e frequentemente mais escuros do que vocês. Quanto ao argumento de que o erro consistiu em não “termos ajudado a polícia a aproximar-se mais e mais cedo da família de Mark Duggan”, parece-me que já ajudaram a a polícia a chegar-se perto o suficiente da família dele e da pior maneira possível. Não se pode verdadeiramente dizer que é no atraso da abordagem da Polícia à família que reside o problema, não vos parece? Não será antes o facto de ele não ter disparado sobre os polícias que o assassinaram?



Por último, estamos em desacordo quanto à ideia de que “aquilo a que assistimos não tem absolutamente nada a ver” com esse homicídio a tiro. E aqui reside a diferença essencial, a pequena brecha entre nós. Uma brecha que se abre num vasto fosso, uma divisão que não pode ser colmatada.


Porque nós queremos entender o mundo na sua particularidade histórica, como e porque é que ele veio a ser aquilo que é, e as razões pelas quais isso é insuportável. Vocês, contudo, querem simplesmente assegurar que ele perdura por tanto tempo quanto possível. Independentemente da sua qualidade, independentemente das consequências, independentemente de tudo à excepção da vossa capacidade colectiva de declarar que o mundo é um sítio horrendo, sim senhor, mas ao menos mantemos a nossa decência. Ao menos estamos instalados suficientemente alto para podermos contemplar os campos de extermínio. Ao menos chegámos cá por meios legais. E como é que eles se atrevem? Como é que eles se atrevem?

Mas apesar disto, muito do que vocês disseram está inteiramente certo. Comecemos então por aquilo em que concordamos.

1. Isto não é político
"Político" aqui parece querer dizer "aquilo que tem a natureza da política" ou "aquilo que diz respeito a um conjunto de preocupações e questões abrangidas pela actividade e categoria designada por Política" Julgo que isto é suficientemente claro.
E o que significa ao certo a política, não em geral e sempre, mas quando falamos dela agora?
A política é a gestão do social (i.e. aquele reino confuso que reconhece que não há uma pessoa mas muitas) e das suas contradições. Fá-lo através da representação institucional de diversos graus de envolvimento, que vai desde a fantasia da democracia directa, olhos nos olhos, até às eleições de Presidentes por milhões de pessoas. A política corre de mão dada com a economia, que também influencia e determina a esfera da existência social, ao mesmo tempo que nela assenta. A ordem económica que temos – a reprodução do capital – dita um conjunto de relações sociais entre as pessoas e o seu mundo e entende essas pessoas, o seu tempo e os seus esforços, enquanto um recurso que é preciso gerir, extrair, cuidar e circular. A economia gere recursos através de um conjunto de relações dependentes da abstracção material que é o valor. A política gere sujeitos e as suas necessidades através de um conjunto de representações dependentes da abstracção material que é a cidadania. Não podemos pensar na política sem a economia, e vice-versa, ainda que haja períodos em que uma parece mais determinante, tanto em primeira como em última instância, do que a outra.
Dadas as políticas que vocês levam a cabo, é difícil imaginar que discordem disto, embora seja provável que a linguagem vos desagrade.

Posto isto, e para que se consiga entender alguma coisa acerca desta era em que vivemos, é necessário perceber a dificuldade rapidamente crescente que tanto a política como a economia enfrentam na tentativa de governar, gerir, ou estruturar o facto de haver massas, o facto de haver social. Esta história revela-se de forma particularmente nítida em duas frentes.
Em primeiro lugar, na total incapacidade de providenciar empregos adequados a um número adequado de pessoas, de tal modo que as hostes daqueles que não podem ter emprego vai crescendo. Este é um facto estrutural da forma como o capitalismo se desenvolve. Não se trata de um acidente, nem é fruto de má gestão, embora haja inaptos para dar e vender nas cadeiras da administração. Não é tão-pouco culpa de uma política de imigração “suave”, como se as taxas de crescimento tivessem de algum modo aguentado o colapso geral das margens de lucro no sector produtivo ao longo de quase quarenta anos, caso a Grã-Bretanha se tivesse mantido branca e o pós-colonialismo significasse que os habitantes das ex-colónias se deixariam lá ficar quando Império decidiu que eram demasiado difíceis de gerir.

Em segundo lugar, a lenta sangria do cadáver do Estado Providência, e, com uma ferocidade e rapidez sem precedentes, o seu estripamento recente através de ataques a programas sociais, à habitação e às pensões de reforma. De tal modo que as hostes daqueles que têm emprego mas não são ricos, bem como daqueles que estão de facto desempregados, são cada vez mais afastadas, ao empurrão, dos meios de reproduzirem adequadamente as suas vidas, bem como as das suas famílias e amigos. Esta incapacidade é acompanhada pela face nova e torpe de um facto antigo: quando os pobres ficam mais pobres, as suas necessidades – e desejos, essa coisa que as classes médias e altas tanto gostam de menosprezar, como se querer algo que não temos dinheiro para comprar significasse que somos tontinhos – não têm a gentileza e boa educação de desaparecer. Tornam-se, pelo contrário, mais desesperadas, as zonas da cidade divididas de forma mais vincada e a polícia torna-se mais bruta.
Estes são os eixos principais em torno dos quais giramos e que estão suspensos, funestamente, por cima das cabeças das massas. Em suma, as condições em que assentam a política e a economia – mais propriamente, a cidadania e o valor – e que criam o pressuposto de que ambas são naturais e perenes, estão em vias de ruir, para vosso terror e estremecimento, inteiramente justificados.



Dizer, portanto, que estes motins e pilhagens “não são políticos” é de facto discernir algo de essencial. É, nomeadamente, perceber que a política tal como foi entendida até hoje se revelou, ao longo de muitos anos e agora de forma mais clara do que nunca, profundamente inadequada no que toca a responder às preocupações e necessidades daqueles que, desde logo, mal se conseguem abrigar à sua sombra.
Lamentar este facto é meramente insistir, como vocês aliás fazem, que “esta gente” devia regressar às suas partes da cidade e usar os trâmites oficiais para fazer ouvir as suas queixas, usar as vias que são reconhecidas como sendo políticas, que se vê logo que são políticas (nas quais se incluem as manifestações pacíficas que sabem quando é altura de voltar para casa!). Que deviam regressar para procurar um abrigo impossível, sob uma relação que serve apenas de linha de demarcação para os colocar do lado de fora. Regressar a não serem considerados enquanto sujeitos políticos viáveis. Como tal, é apenas quando eles agem “não politicamente” (saltando por cima da mediação da cidadania e da representação para aparecerem em cena) que o termo emerge, enquanto definição negativa. Mas vocês nunca os entenderam “politicamente”. Olham para outro lado e esperam que eles façam o mesmo.
Mas os tempos em que vivemos estão sob o signo de Jano, o deus de duas caras, ainda que estas estejam agora ocupadas a arrancar as metades da sua cabeça retalhada para que possam cuspir uma na outra.
Os motins são a outra face da democracia, quando democracia quer dizer a capacidade e a legitimidade de aprovar medidas que ferem directamente a população que supostamente representam.
A pilhagem é a outra face do crédito, quando crédito implica o esbracejar desesperado de Estados e instituições na tentativa de manterem uma linha de financiamento, cagando de alto para os custos que isso poderá trazer para aqueles que possam precisar desse crédito.
(É seguramente uma coincidência que nestes dias tenhamos assistido, simultaneamente, aos motins, à descida da notação do crédito dos Estados Unidos, e à turbulência nos mercados financeiros. Mas a coincidência não é, em todo o caso, fortuita. Os motins e a pilhagem são tão antigos como a extracção económica e a gestão política das populações. Numa altura em que tal extracção e tal gestão começam a dar sinais de avaria, e em que o próprio trabalho é arrancado à força, não seria de esperar que bloquear e arrancar à força emergissem e vos dessem a ver a sua outra face?)

E quanto ao “caos” 1 que está a ser gerado? Um dos primeiros significados deste termo não era a destruição propriamente dita (a coisa destruída) mas o grito que era sinal e intimação para que o saque começasse. Vocês gritam caos.
Caos é a outra face da classe, sendo que ela própria significava – e significa – uma divisão das pessoas em classes com o duplo propósito de extrair riqueza (impostos) e de apelar às armas. O caos é mantido à distância pela classe e ameaça sobrepor-se a ela, é a viragem anárquica na direcção do roubo e da devastação que ilumina, negativamente, essa outra relação que é o roubo legal e a destruição autorizada de vidas e recursos.
O caos é o conteúdo criminal elementar da classe. Surpreende-vos que seja difícil contê-lo?
Não nos digam que o facto de ser difícil mantê-la na linha os surpreende?

1 N.do.T.: No original “havoc”: confusão, destruição, devastação
  

2 comentários:

  1. Percebo e partilho a parte analítica da carta, as motivações dos gestos como o seu sentido social. Mas recuso-me a ler na alternativa "Socialismo ou barbárie" algo como, "se não podemos ter socialismo, ao menos justifica-se a barbárie". O que compreendemos não é o que aceitamos ou justificamos. De outra forma, a tal alternativa não seria uma alternativa.

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  2. Acho que a posição das Cartas e do ECW é mais dialéctica que isso. Se há uma apologia, ou mesmo uma defesa da barbárie, pode ler-se 1( (face à civilização capitalista) como uma recusa de uma ideia de progresso que significa frequentemente não mais do que a extracção de valor, e a violência sistémica que a acompanha; 2) (Face à civilização socialista) uma vigilância face ao adiamento da emancipação e da construção de um colectivo em nome de um programa. E, sobretudo, uma insistência que não podemos procurar novas formas do colectivo “noutro lado”, no passado distante ou num futuro depois do Capital. E é por isso que faz sentido falar de barbáros (e não selvagens): os bárbaros existem no meio da civilização, como o nome que é dado a tudo o que não é compatível com os seus valores. E para isso não é preciso sequer andar a partir coisas: elas partem-se e dissolvem-se à nossa volta, de modo que a exclusão dos ganhos civilizacionais não é uma escolha. Habitamos – uns mais do que outros – as ruínas do modelo de desenvolvimento capitalista. E, tal como as coisas estão, a incerteza e as contradições da recusa, e mesmo o trabalho de construir formas de solidariedade, ainda sem um trilho definido, só pode ser lida como in-civilizada, ou bárbara. É bárbaro na medida em que procura arrancar os objectos e as pessoas às cadeias de circulação e grelhas de valor existentes sem ter uma “civilização” para pôr no seu lugar, sem ter ainda à sua disposição os lugares para pôr as coisas. A barbárie não é um objectivo. Marca o reconhecimento de um momento de confusão para o qual não há uma saída óbvia, e um momento de “falta de educação” do qual não queremos ser curados, pelo menos tendo em conta as curas disponíveis. Sem ceder nem à romantização da violência nem à chantagem das auto-estradas para o progresso da humanidade, capitalistas ou socialistas.

    Quanto aos motins, mais especificamente, o argumento é também bem mais complexo, como acho que se tornará evidente mais à frente. Uma pequena amostra:

    “Não se defende um motim. Não é “bom” ou “mau”. Um motim é um abanão das posições de pertença e de juízo moral. É também, com muita frequência, um abalo interno aos contornos que pareciam desenhar linhas de classe comuns.

    Implica situações de um género a que assistiremos seguramente mais, os desesperadamente pobres a virarem-se contra os pobres-mas-remediados, o confronto entre donos de loja e saqueadores, entre trabalhadores e amotinados, entre aqueles que partem as janelas e aqueles que as limpam, bem como dos indivíduos contra eles próprios, dado que nem sempre se arrumam facilmente neste ou naquele campo.”

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