(o meu artigo no i na última quinta-feira)
Há um tipo de pessoa que tem vindo a ganhar protagonismo no espaço mediático. É o especialista em portugueses. O especialista em portugueses tanto pode ser especialista em portugueses na variante corpo como na variante alma. O primeiro é generoso na hora de avolumar estatística e mais estatística sobre o chamado comportamento dos portugueses, lançando-se na grande aventura dos dados, dos números e das contas que lhe permitirão produzir largas séries que registam, por exemplo, a poupança e o consumo dos portugueses. O segundo, o especialista em portugueses na variante alma, dedica-se a trabalho mais minucioso, tricotando conceitos, ideias e teses, quando não parábolas, que lhe permitirão aceder de modo singular e único – assim julga… – ao famigerado enigma português.
Um e outro especialista têm um problema fundamental com a democracia. O especialista em portugueses na variante corpo tende a classificar qualquer alternativa ao que quer que seja como cientificamente inviável, independentemente do que sobre isso tem a dizer a vontade da maioria. Para ele não se trata de querer ou não consultar o povo, mas da irrelevância de tal exercício perante o que considera ser a força da realidade. Por isso ele diz-nos que não é contra a democracia mas que simplesmente não pode ser a seu favor. É a moral da breve história do actual governo: foi eleito com base num programa que já não é compatível com a realidade tal como esta passou a ser por ele entendida a partir do momento que tomou posse.
Já para o especialista em portugueses na variante alma, o problema da democracia é outro. Para este especialista o problema é que os portugueses não são susceptíveis de gerar vontades alternativas e ter uma voz crítica. (Com a excepção do próprio especialista, presume-se, pois de outro modo não seria ele mesmo susceptível de denunciar tão atávica situação…). É em muitos elogios e em algumas das críticas a Salazar que esta ideia de que a cultura política dos portugueses é incompatível com a democracia frequentemente se afirma. Entre os elogios, temos quem entenda não haver porque criticar um ditador que mais não terá sido do que a expressão das circunstâncias de um país e de um povo. E entre os críticos do salazarismo há quem, desolado com o que considera ser a actual passividade política do que apoda de povo, não hesite em concluir que tivemos o Salazar que merecíamos.
Assim, sendo, o triste cenário mediático que temos obriga-nos a escolher uma de duas: ou nos embrutecermos com os especialistas na variante corpo olhando para os gráficos que Medina Carreira vai esgrimindo com uma ética da rabugice que nenhum dono de mercearia saberia copiar; ou nos mitificamos a dar ouvidos aos diagnósticos mastigados de José Gil sobre a existência e a portugalidade.
Haverá alternativa a este dilema?
Creio que sim, que existem pelo menos duas alternativas.
A primeira alternativa é ainda mais medonha do que qualquer uma das opções antes colocada. Trata-se da emergência e triunfo de especialistas que versam tanto sobre o corpo como sobre a alma dos portugueses. Juntam-se assim dois males numa só pessoa. Desde que a crise começou, o caso mais revelador deste perigo talvez seja o sucesso mediático de uma figura como António Barreto. Por um lado temos o espectáculo da exibição por Barreto das tabelas, quadros e gráficos do seu Pordata, numa campanha mediática cuja adulação jornalística só fica a dever à bajulação de que em tempos foi alvo o acervo de imagens exposto por Berardo no CCB. Por outro lado temos o tipo de discursos do 10 de Junho a que Barreto se habituou e que parece não querer largar em todo e qualquer dia do ano, oferecendo-nos a enésima sondagem à alma e aos contornos da identidade nacional, sempre redundada por apelos ao brio patriótico dos portugueses.
A segunda alternativa é bem mais interessante. Passa por matar de vez os especialistas em portugueses, de recusar o palco aos especialistas de qualquer espécie, sejam de esquerda ou de direita, versados na variante corpo ou na variante alma, oriundos do mundo académico ou do campo empresarial. Medina Carreira, José Gil e António Barreto poderão continuar a subir ao palco, certamente que sim, mas devidamente desautorizados, destituídos das poses de peritos, pensadores e senadores que garbosamente procuram impingir-nos.
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