Muito desejaria eu escrever sobre assuntos outros que não o aparelho
repressivo do Estado, mas os tempos afiguram-se pouco próprios para o
lirismo. Avisa-nos agora a PSP que duas pessoas juntas podem ser
consideradas uma “manifestação não autorizada”, para justificar a
acusação de “crime de desobediência” contra alguém que distribuía
panfletos do Movimento Sem Emprego à porta de um centro de emprego.
Enquanto me esforço para manter ao largo todo e qualquer transeunte
que tenha a nefasta ideia de se aproximar (os tempos são, recorde-se, de
“tolerância zero”) e vou redigindo os necessários avisos prévios de
todos os encontros planeados para a semana que começa (a dúvida
inquieta-me: receberemos um comprovativo para provar aos zelosos agentes
da autoridade que aquela troca de beijos no jardim seguiu os canais
apropriados ou importa fazê-lo apenas no tribunal?), consulto um dos
muitos textos subversivos que possuo na minha biblioteca.
Tem o inquietante título de “Constituição da República Portuguesa” e
o que nele se dispõe fala-nos de um tempo e lugar remotos: 1. Os
cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em
lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização. 2.
A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação. (Artº 45).
Chegará porventura o dia em que, como profetizou Auden, os jovens
poetas explodirão como bombas e percorreremos de noite os subúrbios em
corridas de bicicletas. Os encontros deixarão talvez de constituir um
acto subversivo. E os beijos serão, como devem ser, despreocupados e sem
aviso prévio. Mas amanhã não será esse dia.
Maus tempos para o lirismo, no I on-line
(Abaixo está uma tradução muito minha e muito desajeitada do poema de W.H. Auden a que o texto faz referência. Não sei se já estava publicado em português. Talvez o nosso poeta-tradutor Miguel Óscar Cardoso o queira retocar...).
Amanhã, talvez o futuro. A pesquisa da fadiga
e do movimento dos carregadores;
a exploração gradual
de todas as oitavas da radiação;
Amanhã o alargamento da consciência através
da dieta e da respiração.
Amanhã a redescoberta do amor
romântico, o fotografar dos corvos;
toda a diversão sob o manto soberano
da liberdade;
Amanhã a hora do músico e do mestre
de cerimónias,
O magnífico trovejar do côro sob a
cúpula;
Amanhã a troca de conselhos sobre a
criação de terriers,
A ansiosa eleição do dirigente
pela precipitada floresta de mãos.
Mas hoje, a luta.
Amanhã para os jovens poetas explodindo como bombas,
Os passeios junto ao lago, as
semanas de perfeita comunhão;
Amanhã as corridas de bicicletas
pelos subúrbios em noites de Verão. Mas
hoje, a luta.
Hoje o aumento deliberado das
probabilidades de morte,
A aceitação consciente da culpa no
assassínio necessário;
Hoje o esbanjar de forças
No efémero panfleto plano e na aborrecida
reunião.
Hoje os consolos de substituição: o cigarro partilhado,
Hoje os consolos de substituição: o cigarro partilhado,
O jogo de cartas no celeiro à luz da
vela e o concerto à desgarrada,
as piadas masculinas; Hoje
o desajeitado e insatisfatório
abraço antes de provocar a dor.
As estrelas estão mortas. Os animais não olharão.
Fomos deixados a sós com o nosso
dia, e o tempo é curto, e
a História aos derrotados
poderá oferecer lamentos mas nenhuma
ajuda ou perdão.
Espanha, 1937, W. H. Auden
Espanha, 1937, W. H. Auden
Se a luta é hoje, não há tempo para toques, quanto mais retoques. De qualquer maneira, temos tradutor! Não prometo perfeitas comunhões futuras, mas quando te vir dou-te o tal abraço devidamente desajeitado e insatisfatório.
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