quinta-feira, 12 de abril de 2012

«Fazer acontecer a revolução»: cinco notas sobre "Linha Vermelha"


1- Será possível pensar a ocupação da Torre Bela para lá do filme com o mesmo título? De tão familiares, as imagens captadas pela câmara de Russel Parker acabaram por se sobrepor à realidade mesma que se propunham dar a conhecer. Houve uma herdade ocupada e pessoas que a ocuparam, que ali viveram e enfrentaram os problemas de todos os dias, que se organizaram e discutiram e aprovaram o que fazer daquelas terras, daqueles edifícios e de si próprias. Há livros, textos e notícias de jornal que dão conta do alcance e profundidade do que ali se passou. Mas tudo o que nos vem à cabeça, quando nos ocorre pensar naquela ocupação, são as imagens filmadas nos seus primeiros quatro meses e acabadas de montar quando tudo era já quase uma recordação.

2- Um filme sobre um filme – ou, se quisermos, uma reflexão sobre o cinema em formato cinematográfico –, Linha Vermelha, de José Filipe Costa, interroga essa relação problemática entre a história vivida e a história filmada. Fá-lo, desde logo, dissolvendo a diferença entre as duas coisas, pelo menos no que à Torre Bela (filme e herdade ocupada) diz respeito. Por via das suas opções propriamente cinematográficas, Thomas Harlan filmou muito mais do que um testemunho. A sua câmara tornou-se um elemento essencial à construção das relações de poder no interior do colectivo de ocupantes, enfatizando as posições de uns sobre outros, amplificando vozes e iluminando rostos, segundo as avaliações e juízos do realizador. Com a evolução do processo cresceu também, entre vários protagonistas do filme, uma consciência cada vez mais aguda da respectiva imagem, capaz de influenciar os seus gestos e palavras, transformando-os, para parafrasear um deles, em «actores das suas próprias vidas».

3- E é nesse processo, em que o homem da máquina de filmar se tornou um elemento mais do processo de ocupação («como um tractor ou uma enxada», como o descreveu Camilo Mortágua numa entrevista a Costa [1]), que passa a ser difícil perceber se o filme segue os acontecimentos ou está, efectivamente, a dar-lhes forma. Ao ponto de o próprio José Filipe Costa hesitar na resposta a esta interrogação, devolvendo-a aos protagonistas, num trabalhoso processo de reconstituição de uma memória saturada pelas imagens, regressando tantas vezes quantas as necessárias ao local e ao tempo em causa. Alguns elementos da equipa de filmagem e de montagem não hesitam em considerar que o realizador manipulou os ocupantes e encenou vários episódios do filme. Mas a questão não parece colocar-se da mesma forma para os próprios e poucos são os que parecem sequer preocupados com um problema que é relevante, sobretudo, para os que integram o campo cinematográfico. A hipótese de os ocupantes se terem servido dos recursos postos à disposição de Harlan fica em suspenso, sugerida a espaços pela naturalidade com que estes falam do que fizeram e disseram naquele contexto.

4- Mais interessantes são os relatos de como a ocupação prosseguiu para lá do filme, resolvendo muitos dos problemas de organização que ali parecem inultrapassáveis (lidando com a hostilidade das autoridades na contra-revolução de veludo que se seguiu ao 25 de Novembro de 1975), mas também enfrentando (com resultados variáveis) todos os outros que diariamente se colocavam àquela comunidade de trabalhadores (das relações entre géneros ao consumo de álcool ou ao absentismo laboral). Como se a arqueologia da memória levada a cabo em Linha Vermelha revelasse novas camadas da realidade que não estão contidas em Torre Bela, apesar de terem sido uma parte importante daquela experiência, permitindo-nos relativizar a «verdade» de que aquele documentário se pretendia portador e devolvendo-nos a imanência dos acontecimentos, que a força das imagens quase conseguiu secundarizar.

5- Fazendo-o, José Filipe Costa permite multiplicar as interrogações em duas direcções: sobre a experiência de ocupação de uma propriedade do Duque de Lafões no contexto do PREC, em toda a sua densidade e alcance; sobre a difícil e complexa relação entre um cinema militante de «testemunho» e a realidade mesma que este se propõe testemunhar. A primeira continua em aberto e não parece que Linha Vermelha se propusesse encerrá-la. A segunda, que é, afinal, a linha vermelha desfiada por Harlan, foi sintetizada pelo próprio José Filipe Costa noutro contexto: «O objectivo seria o de fazer qualquer espectador rever-se nas acções revolucionárias dos ocupantes de Torre Bela, sem qualquer distância; fazê-lo mergulhar no sentimento de que a revolução estava a acontecer aqui e agora, num presente contínuo, para também ele agir. Um plano em que fazer acontecer a revolução não está longe da experiência de fabricar ou ver um filme. O cinema não é aqui um meio de entretenimento, mas um meio de incitamento e, sobretudo, de acção. Agir e filmar ou agir e ver um filme são duas faces da mesma moeda» [2].

Notas

[1] www.fcsh.unl.pt/revistas/arquivos-da-memoria/ArtPDF/JoseFCostaAM5.pdf, p.178.
[2] Ibid., p.190.

Este texto foi originalmente publicado na edição portuguesa de Le Monde diplomatique 

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