Carta aberta aos que condenam as pilhagens VI
6. Isto é violência indiscriminada, que não escolhe os seus alvos
Chegados aqui, torna-se indispensável desenredar outro nó. Apesar do que possam pensar, a pertença a uma classe e a decência humana não têm uma correlação directa (Se excluirmos os ricos, que são quase universalmente montagens vorazes de matéria fecal e ego.) É uma pena, pois tornaria tão mais fácil a luta de classes, as divisões e alianças tão mais límpidas. Mas indo dos extremamente pobres até à classe média e dando meia volta até ao início, encontraremos alguns que são impecáveis, alguns que são medíocres e alguns que são vis.
A diferença está apenas na forma como essas tendências são expressas. Os humanos atrozes com dinheiro suficiente para permanecer do lado certo da lei expressam-no batendo nas suas mulheres em privado e despojando os seus trabalhadores de um salário justo. Alguns dos que não têm dinheiro para o fazer são aqueles que, nestes últimos dias, se têm comportado de maneira horrível, selvagem. Qualquer pessoa que justifique isso é um idiota, e temos tão pouco interesse em fetichizar a violência em si mesma como em condenar todos aqueles que se amotinam pelo facto de algumas pessoas serem execráveis e terem visto nisto uma boa oportunidade para agir como tal, sem entraves.
Mas é inteiramente inaceitável fazer generalizações a partir disto. Tal como o é imaginar que poderíamos isolar um punhado de pessoas detestáveis num contexto em que tanta gente passou por situações detestáveis e, para ser franco, não se rala minimamente por maltratar ou estragar a propriedade daqueles que têm sido mais afortunados. Gente que sabe muito bem o que faz.
Aqueles que falam dos saqueadores como sendo “pobres de espírito”estão a dizer, essencialmente, que não conseguem imaginar uma estado de espírito em que faria perfeito sentido pilhar. Em que tal fosse fruto de uma decisão mais do que consciente. Estão a dizer que não têm qualquer interesse em perceber porque é que algumas pessoas se podem estar nas tintas para essas distinções – entre o comércio local e as multinacionais, por exemplo.
Nós percebemos, contudo, a razão pela qual uma tal condenação é necessária, em jeito de último recurso. Porque o que está em causa não é tanto a expectativa de que as pessoas venham a apoiar o que acontece mas antes a evidência, muito concreta, de que o que está a acontecer constitui uma brecha nas vedações que cercam o rendimento, o privilégio e a raça, e cuja função é manter os pobres no seu lado da cidade, onde podem ser deixados à solta para se “atacarem” uns aos outros, em zonas onde todos os serviços sociais, à excepção da polícia, foram deixados ao abandono.
Daí o refrão comum que agora ressoa por todo o lado: nem acredito que isto esteja a acontecer em X. Tenho acompanhado as notícias e parecia estar tão longe. Não estava nada à espera que também acontecesse em X.
Nunca se pode estar à espera disto, a passagem de uma zona de pobreza contida para um empobrecimento parcialmente generalizado da cidade como um todo. Isto emerge necessariamente num momento de terror, mesmo que dispamos o termo de qualquer forma de condenação moral, pois é um estilhaçar de linhas de demarcação e contenção até então claras. É um despregar. Faz ossadas pretas de edifícios e carros, e não há um general debruçado sobre o mapa do campo de batalha. Espalha-se.
Mas diríamos que há uma imposição ética fundamental do presente que está intimamente ligada a isto. É a condição estruturante do movimento real daquilo a que há muito se chama comunismo.
Não é a redistribuição da riqueza. É a redistribuição da pobreza que se verifica no decurso de um processo no qual aqueles que nada têm começam finalmente a levantar-se e a tomar em mãos o que lhes pertence.
A partir disto, a única base de apoio ético que podemos ter, a única de que precisamos, é perceber que temos duas opções, mutuamente exclusivas.
Há aquilo que partilha de forma mais igual entre todos nós a violência e as contradições desconcertantes do nosso presente.
E há aquilo que continua a pedir aos mais violentados, que foram deixados por sua conta, que continuem a sofrer as consequências dessa calamidade a que gostamos de chamar a vida contemporânea.
Vocês insistem nesta última opção, e encontram muitas maneiras de justificá-lo e cimentá-lo. Nós insistimos na primeira. É confusa e desordenada. É mais penosa. Há muito tempo que o é. E continuará a sê-lo, mais e tanto mais quanto piores ficarem as coisas, quanto mais vocês continuarem a papaguear o vosso disco riscado de lugares comuns, enquanto atrás das vossas palavras se enchem prisões e se levantam exércitos.
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