quinta-feira, 5 de abril de 2012

Carta aberta aos que condenam as pilhagens II









(Parte I aqui)


2. Isto não é justo

Esta é uma réplica comum e, uma vez mais, é inteiramente verdade. Atrelada a ela vem um reconhecimento inteiramente justo dos estragos em curso e do trauma que estes acarretam, que se traduz acima de tudo em perda de propriedade para muitos que claramente não são sequer remotamente ricos, aqueles que também se vêm à rasca para se desenrascarem, que vão construindo uma vida humilde ao longo de longos anos.

E para aqueles que nos perguntariam, com o intuito de nos pôr no nosso lugar: pois, mas e se fosse a vossa casa? O vosso carro? A vossa loja? Dizemos:


Ficaríamos furiosos. Ficaríamos desolados. Como não?


Porque a questão aqui nada tem a ver com “legitimar” a violência ou negar o choque e o terror sofrido por aqueles que foram apanhados pelo fogo cruzado. Trata-se antes do facto de, tal como os próprios padrões do político colapsam no que toca à sua capacidade básica de capturar e expressar adequadamente as contradições de uma massa gigantesca de vidas, o mesmo se aplicar aos seus padrões conceptuais básicos.



Acima de tudo, a própria noção de compromisso, fundamental para bloquear as tentativas reais de intervir em situações catastróficas. A própria ideia de uma análise de custo/benefício. E, unidas como estão pela anca aos conceitos económicos, as noções de equivalência e igualdade, que poderiam servir para encontrar um equilíbrio entre, de um lado da balança, o sofrimento e raiva do adolescente desesperadamente pobre que o país espezinha, caricaturando-o, abominando-o e criminalizando-o e, do outro lado, o pobre lojista cujo estabelecimento foi pilhado, cuja capacidade de fazer face às suas despesas já foi empurrada até aos limites pela contínua subida das rendas, à medida que os seus bairros se vão aburguesando, e pela recessão económica.
Para nós, pensar genuinamente para lá do impasse desastroso da política é rejeitar essas formas de avaliação e pesagem. Repudiar a justeza. E, ao invés, dizer:

É brutal que as pessoas estejam de tal modo arredadas do acesso aos bens básicos que tenham de vender drogas e sejam consequentemente presas o resto da vida por o fazerem.


É brutal que uma família veja a sua casa arder por causa de um motim.


É brutal que a polícia tenha disparado primeiro.


É brutal que as pessoas tenham que defender as suas lojas com bastões de baseball, com medo de as perderem.


É brutal que as pessoas tenham que passar uma vida a trabalhar nessas lojas, com medo de as perderem.


Nenhuma destas proposições é mutuamente exclusiva. São verdadeiras, todas elas. Mas é precisamente essa noção de restringir a dissidência e a luta à “política” que conduz à operação de as arrumar quer de um lado quer do outro, de modo a que se equilibrem e sirvam de contrapeso.

São incomensuráveis. São, para além disso, consequência do mesmo conjunto de relações que tornam extremamente difícil, para uma grande parte das pessoas, viver neste mundo.

E estamos num tempo em que essa dupla condição, daquilo que não pode ser medido e daquilo que não pode ser acidental, é lei. É a lei que dita a discriminação por partes, a métrica da justeza, o contexto em que explode tudo aquilo que pensávamos poder ser claramente dividido. É um abalo dos pólos de identidade. Não se defende um motim. Não é “bom” ou “mau”. Um motim é um abanão das posições de pertença e de juízo moral. É também, com muita frequência, um abalo interno aos contornos que pareciam desenhar linhas de classe comuns.

Implica situações de um género a que assistiremos seguramente mais, os desesperadamente pobres a virarem-se contra os pobres-mas-remediados, o confronto entre donos de loja e saqueadores, entre trabalhadores e amotinados, entre aqueles que partem as janelas e aqueles que as limpam, bem como dos indivíduos contra eles próprios, dado que nem sempre se arrumam facilmente neste ou naquele campo.


Este parece ser o caminho que as coisas tomam agora. E é um caminho que provavelmente se acentuará ainda mais na década que aí vem, à medida que o Estado recua e se reagrupa, intervindo brutalmente em momentos mais explosivos, mas deixando por norma ambas as facções dos pobres por sua conta e em guerra uns com os outros. Tanto o Estado como vocês chegarão apenas ao cair do pano para arrumar a casa, tirar umas fotografias de vassoura na mão, cerrar as mãos em punho, esperar que toda a gente tenha aprendido a lição e, finalmente, regressar ao ofício costumeiro de ignorar as preocupações legítimas daqueles que ainda ficam por lá.


É óbvio que aquilo que se passa é aterrador, arrebatador, idiota, triste, desconcertante e inevitável. Obviamente. Nunca esperámos que fosse de outro modo. Nem nós nem vocês.

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