segunda-feira, 9 de abril de 2012

Não há justificação possível

Carta aberta aos que condenam as pilhagens VII

7. Não há justificação possível para isto. Isto é meramente destrutivo
E tanto mais que não há de facto justificação. Não há ordem ou estrutura que justifique aqueles que insistem na segunda opção. Pelo menos não em teoria ou conceptualmente (o que pode até ser fácil, pôr estas palavras nas nossas bocas e nas nossas mãos), mas apenas fazendo o que é preciso ser feito para se safar, sem aceitar meramente safar-se à conta e contentar-se com isso. Que eles podem querer, que eles vêm tudo o que há à disposição, tudo aquilo que não podem ter. Que eles estão fodidos com isto. E que já não estão para isso.
Não há justificação para isto, mas este é um tempo em que uma pessoa ou arranja justificações ou as aceita e as leva consigo.
Vocês arranjam-nas. Nós estamos do lado tanto daqueles que as levam como daqueles cujas vidas são perturbadas por uma situação em que esse levar é necessário. É errado falar aqui de vítimas. Podemos contudo afirmar que não é verdade que vocês estejam do lado daqueles que estão a perder os seus pequenos negócios. Isto porque foi a forma como vocês deixaram alguns para trás, entregues a si próprios, ao mesmo tempo que permitiam a outros esfalfar-se para continuar em frente, que conduziu a esta situação, em que alguns se atiram, bem como a qualquer destroço que apanhem do chão das ruas onde vivem, uns aos outros. E há muito que vocês deram a vossa bênção a este estado das coisas.

Era disto que Hegel nos falava quando escrevia sobre a astúcia, sobre a forma como a ideia geral – neste caso, a preservação incessante do capital e das suas relações – não paga pelos seus próprios erros. Para pegar nas suas palavras certeiras, "Não é a ideia geral que se vê envolvida no antagonismo e no combate, ou que está exposta ao perigo. Deixa-se antes ficar em segundo plano, intocada e intacta." E permite que o particular – as paixões, os desejos, as necessidades, os dias daqueles que vivem dentro dela e debaixo da sua alçada – se combatam uns aos outros, se lancem contra a propriedade e contra os corpos. Por vezes, embora raramente, as paixões excedem a ideia e ameaçam descarrilá-la, ainda que apenas por momentos. Talvez este seja um desses momentos raros, em toda a sua desordem e urgência ensanguentada, em que a astúcia fica atolada e escorrega.
Porque as pessoas vão ter aquilo que merecem, de uma maneira ou de outra. Se isto por acaso não vos cai bem, tanto pior. Tanto pior para todos nós que as coisas tenham chegado a este ponto, pois não restam dúvidas de que não irá chegar a lado nenhum, tanto quanto podemos imaginar chegar a algo como a construção de formas de acção colectiva, ao desenvolvimento de infra-estruturas, à capacidade de fazer as coisas de outra maneira. Isso não é claramente o que está aqui em jogo.
Mas aqui falamos entre nós, e não para vocês, porque apesar de toda a vossa cruel inanidade, nós não somos de todo inocentes no que toca aos fracassos do nosso pensamento. E nós – este nós amorfo, mas não “a esquerda”, seja como for que esta seja definida – escorregámos em pelo menos três frentes.

1. Não podemos permitir que a gravidade do que acontece ocasione ou desculpe um apelo à polícia para restabelecer a ordem. E isto não porque a desordem social seja boa ou má, essas palavras infantis que vemos atiradas a torto e a direito. É porque não nos cabe apelar. É o que vai acontecer, independentemente da nossa opinião. Como tal, o que tivermos a dizer sobre o assunto só pode tomar a forma de uma crítica a) ao modo como esse tipo de resposta é precisamente e desde logo o que provoca situações como esta e b) ao modo como esta situação será usada para justificar retroactivamente o tratamento continuado dos pobres como criminosos, o tratamento, precisamente, que engendra uma tal explosão.
Rejeitamos qualquer variante deste realismo auto-verificado, qualquer coisa que sirva para confirmar a vossa condenação. Não julgamos coerente pensar que a solução para este “problema” seja insistir em aplicar, quando muito de forma ainda mais implacável, o próprio problema: a criminalização dos pobres. Não pensamos que a confusão dos tempos justifique uma tal perversão da razão ou dos seus fins.

2. Não podemos deixar que a nossa crítica seja uma crítica à distância. Não podemos manter-nos arredados e avançar argumentos sobre o que "eles" devem ou não devem fazer, nem tão-pouco devemos apelar ao Estado para que faça aquilo que, como sabemos, ele fará ou não fará independentemente dos nossos apelos. Fazê-lo é recair na lógica da condenação, avaliar e julgar uma situação de que não fazemos parte. Se achamos que os amotinados devem atacar cadeias internacionais e não o comércio local, devemos encorajar esta última opção, activamente e no terreno, de tijolos na mão, e não denunciarmos a primeira. Se achamos que deve haver uma organização formal e uma estrutura que enquadre o que está decorrer, devemos começar a fazer isso mesmo, e não lamentar o facto de a realidade não encaixar em moldes políticos clássicos. Se achamos que o que importa é defender, pela força, as casas e as lojas, então devemos fazer isso mesmo, lado a lado com outros que pensam o mesmo, e não esperar pela polícia.
(Não quer isto dizer que a única coisa que haja a fazer seja atirarmo-nos para situações violentas em que podemos vir a ficar feridos ou mesmo morrer. Significa apenas que as condenações ou sugestões desta ordem são irrelevantes se não se converterem em prática material. Aqueles que, compreensivelmente, não querem tomar parte nisto não devem fazê-lo. Mas, do mesmo modo, não devem condená-lo ou outorgar-se a posição de conselheiros)
Porque se insistimos em pensar no aspecto insurreccional do que se tem passado – isto é, o que faz disto mais do que uma mera manifestação de “criminalidade” e consumismo destravado, como tem sido dito –, percebemos que tal não reside simplesmente na gravidade da violência ou no grau de desafio ou perturbação que traz ao funcionamento do Estado. Para além da evidência de que muitos dos que participaram nos motins estarem eles próprios a organizar-se de uma forma muito séria (mesmo que o resultado disso não se assemelhe ao que as pessoas reconhecem como uma organização política), a natureza insurreccional reside também, estranhamente, no facto de lojistas e outros estarem a cuidar de si próprios munidos de bastões de baseball, no facto de estarem a agir contra uma situação insurreccional. Pois é aqui que há um destroçar das linhas de solidariedade previamente assumidas, que há uma ruptura decisiva na consistência da vida quotidiana. Um levantamento não de todos contra o Estado, numa divisão nítida, mas um levantamento em muitas frentes. Um fervilhar de contradição que indicia a completa deslegitimação da capacidade do Estado para gerir a sua população, aos olhos dessa mesma população. Um agir que não espera pela mediação da polícia. É uma coisa bonita de se ver? Não. De modo nenhum. Mas é uma parte inextricável da negação do que temos.

3. Porque esta é talvez a distinção chave, ainda que à primeira vista pareça ser uma fuga para um terreno demasiado abstracto. Isto é, temos que insistir na diferença entre destruição e negação, porque é esta diferença que constitui a particularidade do pensamento comunista e porque a elisão dessa diferença é o ataque mais comum ao pensamento e prática daqueles cuja finalidade é alargá-lo: vocês só sabem negar e criticar, vocês querem apenas destruir, vocês não têm nada de construtivo para contribuir.
Aquilo que temos visto em Londres neste últimos tempos é destruição, e muita. Edifícios e carros espatifados e incendiados. Nada está a ser construído. Não há modelo, plano ou programa. Fala-se de uma negatividade social, que se evidencia na destruição de uma parte do que existe. Indicia um ódio: à polícia, a uma cidade que os mantém à margem, a janelas que protegem coisas que são demasiado caras para os seus bolsos, a ouvir dizer que devem encontrar o seu próprio caminho, a serem presos quanto tentam fazer precisamente isso, a todos os que olham para eles com suspeição quando eles passam porque usam capuzes e têm faces negras.
Mas isto não é propriamente negação – ainda que seja parte do processo da mesma. A negação é, isso sim, a remoção das relações que sustentam uma determinada ordem tal como ela existe. Relações como a propriedade, a lei e o valor. Não é obliteração, não é arrasar sem deixar rasto, mas antes colocar tudo sob a alçada da dúvida e da crítica, que frequentemente assumem contornos muito materiais (A propriedade mostra-se altamente resistente à argumentação, por mais eloquente que esta seja.) É um banho de ácido: que não privilegia nada, que remove a consistência que justifica a existência das coisas e as dá a ver tal como elas são. Para ver o que fica de pé, o que cai, o que há muito tem vindo a envenenar tantos.
É esta mesma diferença, esta ínfima diferença, entre destruição e negação que compõe o nós que este tempo todo tem vindo aqui a falar. A destruição acontece. Não sem que seja convocada, não automaticamente (há indivíduos que tomam decisões concretas para que ela aconteça), mas é um facto constante. O que é raro é agarrar – sim, “de forma oportunista” – as suas emergências visíveis como a ocasião necessária para ampliar essa raiva e perturbação para lá do momento da sua erupção, na direcção de uma ideia de negação real, vivida, sustentada. Uma negação que seja, de facto, feita, feita dos laços que de repente se formam quando as relações anteriores, que mantinham as coisas à tona – o comércio, o policiamento, os transportes, o trabalho – vacilam.
Neste caso particular, o que é necessário negar, o que requer análise e desenvolvimento para além do que emerge da mera desordem material, resume-se fundamentalmente a dois aspectos. Em primeiro lugar, o uso do termo político como forma de activamente ignorar o que acontece, classificando-o como apolítico e, por conseguinte, errado. Em segundo lugar, a nitidez de posições inteiramente opostas, mesmo que estas sejam por vezes necessárias (Isto é, a diferença entre nós e vocês, os que condenam, não se apagará nos tempos mais próximos). É verdade que reconhecemos separações reais, materiais, entre populações e o seu lugar nas divisões de classe (devemos ser o mais claros possíveis ao reconhecermos que não somos bem-vindos num determinado terreno de luta). No entanto, lutamos para abolir por completo essas separações. Isto é, para deixar de falar deles, os que pilham, como se pertencessem a uma outra espécie. Para deixar de imaginar que o que “lhes” acontece não ressoa, determina, e deforma profundamente e de fio a pavio a vida mesmo daqueles que porventura não se sentem parte do mesmo grupo. Fazê-lo equivale à forma mais grosseira de pensar a classe, ou seja, é defini-la como casta, é transformar as massas em sub-massas a que nós não pertencemos, reduzi-las a uma tendência e a uma direcção que não se excede a si mesma.
Mas apesar de todas estas críticas dirigidas a nós próprios, apesar de cairmos por vezes em formas distanciadas de condenação e fantasia idealista, apesar de tudo isto, as formas a que vocês recorrem são piores, muito piores.
Porque vocês não condenam aqueles que pilham pelo facto de eles pilharem. Já os condenaram muito antes disso, condenaram-nos à irrelevância e à morte. O facto de eles pilharem apenas vos dá alguma munição na vossa longa guerra de exclusão e calúnia.
É por essa razão que não queremos ter nada a ver com vocês.
Porque vocês, vocês que levantam a voz indignada contra qualquer programa que penda para o lado do trabalho, qualquer programa que pudesse operar como circuito alternativo através do qual habitação, comida, vestuário, medicamentos pudessem passar para as mãos daqueles que deles precisam, não deviam ter a audácia de deixar as vossas línguas pastosas cacarejar face ao que não é senão o resultado de tal renúncia a cuidar dos muitos.
Em vez disso, o que vocês querem é passar à fase de arrumação e limpeza. Numa paródia doentia à disseminação viral de informação sobre os motins através das tecnologias digitais, “multidões” organizam-se para varrer os cacos. Vêem-se posters que dizem “Mantenham-se Calmos e Limpem”1ah, que espertinhos que vocês nos saíram. Ordenam a todos que mantenham uma cara séria, unam esforços, se sintam “graciosamente britânicos” na esteira da derrota daqueles que vocês não tomam como britânicos, e continuem com as suas vidas.
Mas foram vocês que apelaram, de sorriso falso estampado no rosto, tanto à anarquia do mercado como à sua defesa marcial. Agora, quando as suas consequências reais estão à vista, poderiam ao menos ter a rara decência de se recordarem das vossas palavras e ficarem caladinhos.
Imploraram para que esta cama fosse feita. E agora choram quando se apercebem que é rija, quando percebem que há demasiado barulho lá fora para que consigam dormir em paz.
Que não tenham nem paz nem descanso até que os céus desabem,

ECW

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