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terça-feira, 14 de junho de 2011

Anda cá, que é para eu te inflamar

Vou meter-me onde não fui chamado. O que até calha bem, pois (com a devida contextualização) não é uma má definição de política. Dizem-nos frequentemente para nos metermos mas é na nossa vidinha, de vez em quando na guerra e, mais recentemente, parece que é na agricultura. Na vidinha já estou até aos joelhos, muito obrigado, a guerra é uma canseira e morre-se muito, e a agricultura faz mal às costas (que me perdoem os amigos mais dados à horticultura). Em vez disso, vou dar umas achegas às trocas de impressões entre o Renato Teixeira, o Zé Neves e o Ricardo Noronha.
A minha incursão nesta longa discussão é feita no quentinho do meu laboratório de palavras, com bata, óculos e pinças de sofista. Vou deixar de lado considerações mais directas sobre a acampada do Rossio (partilho muito do que foi escrito aqui, tanto o entusiasmo como as reservas, das mais epidérmicas às de fundo). Acho que é importante escrafunchar um bocado nos termos da discussão e em algumas das oposições que rapidamente se cristalizaram: sobretudo a divisão entre organização e espontaneidade, ou a relação entre meios e fins. Por isso, vou cingir-me sobretudo a este post do Renato e às passagens de “Moral e Revolução” (Trotsky), que o Renato usou para atacar (questionar, se quisermos ser simpáticos) aqueles que, segundo ele, defendem o “movimento pelo movimento”. Acho que a sua linha de argumento assenta num conjunto de equívocos, a começar por esta caracterização (i.e., “movimento para o movimento, sem táctica nem projecto estratégico”), bem como na atribuição àqueles que a ele se têm contraposto de uma espécie de purismo dos “meios”, como se estes fossem coisas virginais que importaria defender da corrupção dos “fins”. Lá chegaremos. Leiam o post do Renato por inteiro, bem como as várias trocas que o precederam, mas vale a pena citar aqui uma parte do texto de Trostsky que ele lançou para a discussão:

terça-feira, 7 de junho de 2011

Impressões sobre a acampada de Lisboa


 [este texto também foi publicado no Passa Palavra]
Não foi seguramente uma revolução, como começou por ser anunciada, e a democracia (aquela realmente existente, ou seja, a representativa) também não ganhou ali o seu decisivo impulso de renovação. Como acampamento teve as suas limitações e conheceu uma existência acidentada. Como assembleia foi palco de discursos estereotipados, tiques parlamentares e mais do que um vício formal, como cumpre numa reunião pública de pessoas das mais diversas sensibilidades.

E contudo, quem tiver passado pelo Rossio durante os dez dias que durou a “acampada de Lisboa” dificilmente terá passado ao lado da dinâmica ali gerada. Centenas de pessoas a debater na praça mais movimentada da capital, grupos organizados de maneira informal, com composições oscilantes e empenhos variáveis, a experimentar os riscos e as potencialidades da decisão colectiva, um espantoso conjunto de problemas logísticos resolvidos quotidianamente por pessoas sem experiências prévias de militância, uma inesgotável sucessão de gestos inesperados e contributos modestos mas efectivos: desde a tela de cinema ao cartaz manuscrito à preciosa sombra de um pano estendido sobre as cabeças ao sol. Teve de tudo isso e muito mais aquela espécie de caos organizado, em que tudo foi fluído, incerto, precário e provisório, desde o primeiro ao último dia, apesar dos vários esforços para o converter numa outra coisa qualquer, funcional, ordenada, disciplinada, apresentável e respeitável.

Os mendigos, marginais, loucos e sonhadores que povoam as ruas de Lisboa encontraram ali repouso e refeições quentes. Alguns integraram-se e contribuíram à sua maneira, outros serviram-se do que lhes servia e observaram com atenção. Quem passava pelo Rossio parava para ver, quem gosta mais de falar recebeu o microfone e teve três minutos para desabafar, partilhar, reflectir em voz alta ou fazer às massas o seu discurso longamente ensaiado. Misto de cenário performativo e órgão de democracia directa, a assembleia tornou-se o pólo catalisador de tudo, mas nem por isso resumiu a totalidade da experiência possível naquela praça. O encontro e a partilha entre pessoas que não se conheciam ou que mal haviam trocado palavra, a possibilidade, que muitos nunca tinham imaginado, de produzir um discurso político próprio sobre o existente sem reproduzir o cânone político-mediático estabelecido, a descoberta da vida quotidiana e da história como um terreno de combate sujeito a inúmeras possibilidades – tudo isso fez dos acontecimentos do Rossio uma ilustração prática do que acontece quando centenas de sujeitos anónimos se juntam para fazer das suas fraquezas forças. Quão ridícula e grotesca pareceu a campanha eleitoral portuguesa para quem ali passou algumas horas a discutir política… Todas essas figurinhas deprimentes que se acotovelavam nos telejornais pareciam saídas de outro planeta, quando comparadas às intervenções ponderadas – fossem elas mais serenas ou mais turbulentas – ouvidas à sombra da estátua de D. Pedro IV.

A poesia voltou a estar nas ruas e o imprevisível tornou-se banal. Ao ponto de, durante as longas noites da praça, o grupo que debatia, com a maior gravidade e não menos solenidade, o conteúdo de um manifesto que deveria representar a assembleia popular ali realizada, poder ser facilmente confundido com aquele outro que, com muito menos solenidade e sem um pingo de gravidade, elaborava na forma de um cadáver esquisito a sua própria abordagem ao assunto. Foi (e ainda é cedo para saber o que virá a ser) sobretudo isso o Rossio: um poema escrito a várias mãos, musicado com uma melodia diferente todos os dias, mas que nunca deixou de soar familiar. Como um saxofone que do telhado de um prédio encontra o violino que toca noutro quarteirão e juntos se confundem com o ruído da cidade, assim também se lançou à solta pelas ruas aquela música, oferecendo-se a quem a quisesse ouvir. Porque não temiam nada, os que fizeram sua aquela praça foram capazes de dar a ouvir um ligeiro eco do futuro.

Nota: Quem assina este texto não tem a pretensão de representar e dar a conhecer tudo aquilo que passou pelo Rossio nas últimas semanas. Inicialmente céptico em relação ao que ali tomou forma, deixei-me arrastar pelos acontecimentos sem qualquer pretensão de os influenciar. É possível e até provável que muita coisa me tenha passado ao lado. Outras pessoas há que viveram com muito maior intensidade e disponibilidade quer o acampamento quer as assembleias quer os grupos de trabalho. Bom seria que as insuficiências destas impressões as levassem a partilhar o seu próprio ponto de vista sobre o assunto.