quinta-feira, 31 de maio de 2012

A pedra de roseta





Durante milhares de anos a escrita dos antigos egípcios permaneceu indecifrável para os seus estudiosos. «Hieróglifo» era um sinónimo de gatafunho ilegível. Até que um soldado de Napoleão encontrou, nas imediações da cidade de Roseta (Rashid), no delta do Nilo, uma estela de pedra trilingue com o mesmo texto escrito em grego antigo (que era bem conhecido), demótico (uma variante escrita mais recente do egípcio) e com hieroglifos. Passou a ser possível a partir daí decifrar os textos deixados por uma das mais antigas civilizações do mundo.
Helena Roseta acaba de nos presentear, por um desses acasos em que a história é fértil, com algo semelhante. Durante os últimos anos pareceu ser-lhe possível conjugar tudo e um par de botas:  discursos de apelo à cidadania e à participação cidadã com a mais pragmática e cínica participação nos mecanismos de governação; apologias da rua e do espaço público com programas de reabilitação urbana que expulsam imigantes dos espaços que estes utilizam há décadas; retóricas da esquerda florida e colorida com indisponibilidade para debater o que ponha em causa alguns dos mais óbvios mecanismos de poder que estruturam a vida social. E eis que agora tudo se decifra e se torna claro, clarinho, claríssimo, clarão. Os hieróglifos tornaram-se legíveis. Roseta gosta de fazer poesia com floreados de esquerda e política autárquica com bastões de polícia. A sua política de habitação tem como base o desalojo e a existência de edifícios limpos e devolutos.
É dar uma vista de olhos a este despacho serôdio e fica-se com uma ideia do que vai naquela cabecinha. Um prédio vazio desde 2005. Que foi ocupado em 2010 e, uma vez desalojado, permaneceu vazio com a fechadura lá deixada pelos ocupantes. Que tinha as janelas abertas, o interior cheio de lixo, entulho e merda de pombo, a deteriorar-se. E eis que afinal há mil e um planos para ele, estava tudo pronto a arrancar e só estes malvados ocupantes o vieram impedir. Helena Roseta tem o supremo cinismo de anexar ao seu despacho fotografias tiradas pelos próprios ocupantes para mostrar o estado de deterioração em que se encontrava o edifício... à data da ocupação. Mas afinal, com tantos e tão bons projectos, os serviços da CML não dispunham das suas próprias imagens do interior, planos detalhados, um inventário, nada? Devemos realmente concluir que só a ocupação do imóvel gerou interesse por esse imóvel? Que pretende agora a CML  «garantir o direito à habitação a famílias carenciadas» - 2150 a aguardar desde Setembro de 2011(!)- após deixar o edifício ao abandono durante anos e anos? Que estava já agendada uma vistoria para Maio de 2012 e que só a ocupação o impediu? A desonestidade é tanta que Roseta se dá ao luxo de invocar o problema com a canalização que motivou infiltrações no espaço da ILGA quando esse problema foi resolvido por iniciativa dos ocupantes no espaço de dois dias.
Finalmente, vale a pena dar uma vista de olhos ao despacho de resposta do juiz à providência cautelar interposta pelos ocupantes. Traduzindo do juridiquês: Helena Roseta, muito preocupada com os fogos devolutos da CML ocupados por lisboetas, alterou o Regulamento de desocupações de fogos municipais, reduzindo de 90 para 10 dias úteis o prazo de abandono dos mesmos após notificação camarária. Simplesmente, a competência para o fazer não pertence ao executivo camarário mas à assembleia municipal, que redigiu e aprovou o regulamento anteriormente em vigor. Sendo a alínea do regulamento invocada na notificação camarária inaplicável, porque sem qualquer validade jurídica, não poderia aquela notificação ser outra coisa que não nula.
Ora o juiz que olhou para o caso entendeu que não era necessário deferir o decretamento provisório da suspensão dos actos administrativos por ser aquela figura jurídica aplicável apenas no caso de existir uma situação urgente de ameaça irreversível aos direitos do requerente, o que não lhe pareceu ser o caso, uma vez que o desalojo pode ser revertido e a casa devolvida aos ocupantes. Resolveu então admitir a providência cautelar, suspendendo assim o acto administrativo em causa (ou seja, a notificação de despejo assinada por Roseta) e intimando as duas partes a apresentar provas das suas alegações. Entende Roseta no seu despacho que as suas próprias convicções, argumentos e alegações são prova bastante de que é do interesse público o desalojo de S. Lázaro, mesmo sem respeitar o Regulamento de desocupações de fogos municipais em vigor, que não é aquele que ela pretenderia, mas aquele que efectivamente seguiu as vias legais. E ordena por isso um despejo absolutamente ilegal, que não o é menos por ser aplicado por agentes da Polícia Municipal e pela PSP, fardados, equipados e armados, cheios de vontade de bater, como se pode ver pelos vídeos acima expostos. 
Helena Roseta está disposta a tudo para garantir que as ocupações selvagens de fogos devolutos municipais não passam por cima dos seus desígnios de caridadezinha para com as «famílias carenciadas». Daqui a pouco há eleições e não há nada como umas imagens de distribuição de casas a gente humilde para lhe dar aquele pedigree de «esquerda moderna e democrática com preocupações sociais» que é o alfa e o ómega da sua carreira política. Helena Roseta enganou-se e o seu engano vai-lhe custar caro. A sua carreira política acabou aqui, numa manhã quente de Maio, em que às suas ordens um bando de gente fardada despejou o número 94 da Rua de S. Lázaro, agredindo e detendo quem se opôs a uma medida ilegal. A vida, essa, vai continuar. Se pensam que é assim que nos vencem  pensem novamente. Isto ainda é só o início. 

Helena Roseta


Deixemos em paz, por um momento, os polícias que estão a conduzir a desocupação de São Lázaro. 

O centro da questão é Helena Roseta, primeiro, e António Costa, depois. 

Não esperava que Roseta promovesse ocupações. Ou sequer que fizesse alguma coisa de esquerda. Em relação aos eleitos, eu sou assim, espero pouco das pessoas, que é para depois não me desiludir à grande. 

Mas esperava que Roseta não fosse mais zelosa do que os tribunais e que não ultrapassasse a lei pela direita. 

Roseta não precisava de ter feito nada de esquerda, nada de democrático, nada de cidadão. Bastava-lhe ter cumprido a lei como qualquer outro animal. 

E também ajudava ter vergonha na fronha. Que lhe dêem a escutar as críticas que fez a Rui Rio pela desocupação da Fontinha. Que lhe mostrem imagens da senhora vereadora que procurou assumir protagonismo na Assembleia Popular do Rossio.

Roseta era do PSD, passou para o PS, passou para a ala esquerda do PS, criou um movimento de cidadãos à esquerda do espaço partidário. 

E de há uns tempos para cá iniciou o caminho de volta, embora agora, parece, com uma velocidade que não se viu antes, pois num par de anos: voltou para o espaço partidário que antes classificara como decadente; voltou para uma lista do PS sob o comando de António Costa; e agora, finalmente, ultrapassou sentenças judiciais pela direita. 

Com argumentos que fazem dela a Christine Lagarde portuguesa. (Diz Roseta que está a desocupar uma ocupação ilegalmente porque há pessoas mais carenciadas que efectivamente necessitam de casa ao contrário dos ocupas). 

Só não lhe chamo de vendida porque nunca comprei toda aquela gelatinice.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Com o maior cuidado possível


 
                                      Stress na Morais Soares por lxgorila
Em resposta ao vídeo que anda a circular pela internet, onde se vê um pai com uma criança ao colo a ser detido por 10 agentes da PSP, entendeu aquela corporação emitir este comunicado:
Um elemento policial em serviço remunerado na Rua Morais Soares em Lisboa, intercepta um cidadão a exercer condução fazendo uso de telemóvel. Durante a abordagem, apercebe-se de que o cidadão se encontra acompanhado por um filho menor (de colo) e por um cunhado. O condutor assume uma postura agressiva e injuria o polícia. O Elemento policial, em função da situação solicita reforço para o local. Já na presença do reforço, o elemento policial interveniente informa o condutor de que a sua conduta constitui ilícito criminal pelo que deveria cessar a sua conduta. Porque aquele a manteve e continuou a injuriar o polícia, este deu-lhe voz de detenção. Apercebendo-se disso, o condutor retirou o filho do colo do cunhado e serviu-se da mesmo como “escudo” para evitar a consumação da detenção. Aquilo a que se assiste no filme é exactamente ao momento em que, com o maior cuidado possível, os elemento policiais separaram e retiram o cunhado, asseguram a integridade física da criança, colocando-a temporariamente sob a atenção e cuidado de uma agente feminina, e depois procede à manietação do condutor, agora detido, sem ser possível verificar qualquer imagem de violência.
 
É tudo tão ostensivamente falso que uma pessoa até começa a dar credibilidade às notícias do Correio da Manhã. A ver se percebemos bem.
O cidadão injuria o agente, que sente a necessidade de chamar reforços, e depois o cidadão fica tranquilamente a aguardar a chegada desses reforços, momento em que o agente “informa o condutor de que a sua conduta constitui ilícito criminal pelo que deveria cessar a sua conduta” (quanta ternura…) e, na presença de 10 agentes da PSP, o cidadão continua a injuriá-lo, usando depois o filho como escudo? Isto tudo enquanto as pessoas que passam assistem chocadas e gritam com a polícia?
É mesmo esta história, cheia de porcos com asas e galinhas com dentes, que nos querem fazer engolir como se fosse plausível? Queremos mentiras novas!

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Demasiado bem para o nosso bem

 Que bem que se está em Portugal! Agora a sério. Que clima! Que bem que se come! Que bom e barato é o vinho! Que bem escrevem os nossos grandes escritores! Que prestáveis são as farmácias! Que belos filmes passam na televisão! Que simpáticas as pessoas! Os benefícios que a CEE tem trazido! A quantidade de queijos franceses que já se podem comprar nos supermercados! A desfaçatez com que se entra em Paris ou em Londres! A rapidez com que agora vêm os filmes, os CD e os jornais estrangeiros! A estabilidade do escudo! Estou a falar a sério! Os concertos! A beleza da nossa terra! As praias por descobrir! A facilidade com que agora se compra um monte no Alentejo! Não, de facto, desculpem mas começa a ser inegável. É que não se está nada mal em Portugal. [...]
Perfeitos? Nós? Não, mas a verdade é que já fomos mais imperfeitos, sim senhor. Desculpem Iá. Já passamos mais fominha. Já aguentamos com mais barafunda. Já nos metemos em maiores confusões. Já foi muito mais difícil trocar notas de quinhentos paus por libras esterlinas. O leite já escasseou mais. O trânsito já foi mais interrompido por manifestantes. Até os ministros já foram mais incompetentes e desonestos que hoje são! Parece impossível, mas é verdade. Portugal arrisca-se a tornar-se um pais como os outros, atingindo o bem-estar e o tédio das suas congéneres europeias. Já repararam como hoje é raro aparecer uma noticia sobre Portugal na imprensa estrangeira? Não havendo um mínimo de caos, de crise, de cravos na mão, de bichas para a gasolina, de operários a falar durante horas na televisão, tudo ao som da cadência de governos sucessivos a cair ritmadamente, Portugal vai apagando-se da cena internacional. É triste! [...]
Mas calma. Não pode ser tão bom. Estamos demasiado bem para o nosso bem. Vem aí borrasca. E da grossa. Esta pasmaceira não pode durar. A característica "porreirinha" da nossa situação económica, política e social não é nem sadia nem natural. Vai virar, vai ser bonito! Estamos a atingir o limite. Existem várias maneiras de classificar o estado de uma nação, mas "está tudo numa boa" não é a mais sólida. Aqui há gato. Misturemos as metáforas. Ponhamo-nos a pau. Como dizem os ingleses "So you trust the Virgin, do you? Well, don't run then." Nós próprios dizemos que "Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas". E é verdade. Este período aparentemente folgado não é mais que um intervalo entre pauladas. É certo que os intervalos costumam ser mais curtos, mas se calhar o pauliteiro foi a Miranda ver a mãe. Descansem que ele já volta. Há-de vir com força redobrada. É só esperar pela pancada. [...]
O bem que se está em Portugal neste momento é como aquele calor abafado e morto que antecede uma tempestade. Vamos ser apanhados desprevenidos. Com a boca na botija do Halazon, a disfarçar o sabor do bagaço e do refogado na ânsia de alcançar um hálito mais europeu. Cuidado. Vai-se-nos entalar a mãozinha na urna do PSD e não a vamos poder tirar tão cedo. Vai ser um horror. Vai ser como antigamente. A câmara de vídeo vai ter de voltar para a loja, e o Zé e a Marieta para a casa dos pais e o bate-chapas para a célula da UDP e os fins-de-semana para o galheiro e as noites para a mercê da RTP e o Prof. Cavaco para o Algarve e Portugal inteiro para a fossa milenária onde sempre esteve metido e de onde provavelmente nunca deveria ter saído. É poético, não é?
K, nº9, O Arco da Velha: Portugal vai ser tão bom não foi?, Miguel Esteves Cardoso, Junho de 1991

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Vandalismo e destruição - A/C de Arménio Carlos e cª


La segunda jornada de la huelga de la minería finalizó con un paro total en las explotaciones y cortes de tráfico en las principales vías de comunicación que dejaron al Principado incomunicado durante varias horas. Los sindicatos calificaron de «completo éxito» las dos jornadas de protesta y los máximos dirigentes de las federaciones de la minería de CC OO y de Fitag-UGT celebrarán hoy una reunión en Mieres para analizar los paros y valorar la convocatoria de la Comisión de Seguimiento del Carbón, que tendrá lugar el próximo martes, en Madrid.
Como en la primera jornada, los trabajadores de la minería levantaron barricadas a primera hora de la mañana en la autovía del Cantábrico y en la autovía A-66, en la conexión con La Meseta, que provocaron caravanas kilométricas de vehículos. Unos 400 mineros leoneses cortaron el tráfico en la autopista del Huerna y mantuvieron cortada esta vía durante casi tres horas.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Coiso interrompido


Enumerar as trapalhadas acumuladas pelo governo no último ano seria fastidioso para o leitor e incompatível com a dimensão desta coluna. Fiquemo-nos por isso pelas da última semana, em que Passos Coelhos garantiu aos desempregados que não devem desperdiçar as oportunidades proporcionadas pela sua situação. É notório que o nosso primeiro sabe muito acerca de oportunidades (sendo que em geral não perde a de estar calado), nomeadamente as que lhe foram dadas por Ângelo Correia. 
Seguiu-se o senhor dos pastéis de nata e a sua mui freudiana alusão ao preocupante aumento do coiso, vocábulo de assinalável flexibilidade e polivalência, cujos usos são virtualmente inesgotáveis. Onde Passos viu hipóteses de empreendedorismo, quis Álvaro Santos Pereira demonstrar os dotes de oratória e criatividade semântica que fazem dele um dos produtos portugueses que todos gostaríamos de ver exportados. É difícil encontrar alguém tão competente na utilização do coiso. 
Sempre invejoso do protagonismo alheio, veio o ministro da espionagem intimidar uma jornalista do Público, sobre cuja vida privada parece estar bem informado, para os efeitos que se sabe e recorrendo aos métodos que se imaginam. Tendo as declarações de Relvas relativamente aos serviços secretos e ao seu ex-director sido tão cabalmente esclarecedoras, é apenas natural que se sinta incomodado quando alguém lhe sugere que elas estão cheias de incongruências. Felizmente acabou tudo em bem e o malicioso artigo onde elas eram esmiuçadas ficou numa gaveta. 
A isso se chama, na gíria jornalística, um coiso interrompido.  

Tudo no mundo acontece

“Foi golo?”, perguntou o Fausto, que não acreditava. “Foi”, fez o Marinho Sacadura. “Querias ópera?”
Cabeça baixa, beiços apertados para conter a parte menos nobre do vocabulário, o meu vizinho dirigiu-se ao cento e sete, tocou à campainha e pediu o lanche: era pão com marmelada. Lembro-me como se fosse hoje: de papo-seco na mão avançou para o quintal do Lopes e deitou tudo fora – lanche, raiva, ofensa.

Fernando Assis Pacheco, Memórias de um craque

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Ahhh, se é assim tá bem

"Não me agradam as desocupações, mas todos os dias as temos: de famílias carenciadas que querem casas. Seria um precedente enorme. Não posso tratar este grupo de forma diferente do que trato essas famílias pobres"


Helena Roseta, vereadora da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa.
Frase retirada daqui 

São Lázaro



Em Novembro de 2010, em dia de greve geral, um grupo de pessoas ocupou o número 94 da Rua de S. Lázaro, em Lisboa. Chamaram-lhe “casa do grevista” e ofereceram um jantar à luz de velas. Foram desalojadas pouco depois, a mando da C.M.L., que alegou ter para o prédio numerosos planos, daqueles que não podiam esperar. Reposta a devoluta normalidade, foi aquela parte do Desterro devolvida aos pombos.
Um ano e meio depois, o prédio continuava vazio e a autarquia, tão diligente a reclamar os seus direitos de propriedade, não se deu sequer ao trabalho de mudar a fechadura lá colocada pelos ocupantes. As janelas ficaram abertas, para que a fúria dos elementos se encarregasse do património municipal.
Um novo e alargado grupo de pessoas voltou ao lugar do crime no dia 25 de Abril para, num gesto de ressonâncias bíblicas, ressuscitar Lázaro. Encheram o edifício de vida e organizaram concertos, debates, exposições, oficinas e outras excentricidades, sem cobrar nada e com a porta aberta a quem aparecesse. Nada que sensibilize a atarefada vereadora da habitação, que, através da Polícia Municipal, intimou os ocupantes a deixar o edifício “limpo e devoluto” num prazo de dez dias.
Helena Roseta, que tem um arsenal de ideias de esquerda para a cidade, está aberta ao diálogo, nomeadamente para dizer o que é que não se pode fazer, escondendo-se atrás dos regulamentos e dos programas camarários, cujos méritos são visíveis quando se consulta a lista dos edifícios limpos e devolutos da C.M.L.
A autarquia ignorou durante anos a existência daquele prédio. Nada se perderá se continuar a fazê-lo. Os lisboetas saberão dar-lhe uso. 

Limpo e devoluto


domingo, 13 de maio de 2012

Elogio da Esquerda Radical grega


O meu artigo no i da última quinta-feira

Um boi não é um elefante, tal como um tigre não é um elefante, mas estes dois factos não permitem concluir que um boi e um tigre são uma e a mesma coisa. Lamentavelmente, é algo tão elementar como isto que a maioria dos comentadores políticos tem dificuldade em compreender, como mostrou a sua reacção às eleições gregas do último fim-de-semana. Os votos gregos, é sabido, permitiram à chamada Esquerda Radical (Syriza) obter um extraordinário resultado eleitoral e também permitiram a um partido neonazi entrar pela primeira vez no parlamento. Ora, a coincidência entre estes dois factos bastou para que a generalidade dos comentadores políticos viesse a terreiro alertar contra o perigo do extremismo, procurando meter a Esquerda Radical e os neonazis num mesmo saco.

Filiados numa tradição liberal que se tornou hegemónica nos últimos vinte anos e que, do centro-esquerda ao centro-direita, acreditou que o parlamentarismo político e o liberalismo económico norteariam a humanidade até ao fim dos seus dias, os nossos comentadores políticos parecem ter simplesmente perdido o norte. A actual crise mundial e a diminuição da credibilidade das narrativas liberais levam a posições terroristas que deveriam simplesmente envergonhar quem as assume. Porque o que os nossos comentadores nos estão a dizer sobre o extremismo dos gregos é, e traduzindo para a realidade portuguesa, que um Francisco Louçã e um skinhead Mário Machado sãao uma mesma e a mesma coisa.

Peço desculpa aos nossos comentadores, mas eu não compro esta argumentação. Bem sei que o debate em torno do totalitarismo fez o seu caminho durante o século XX. E até acrescentaria que nesse debate existem contributos importantes para quem, à esquerda, pretende travar um combate radical contra o liberalismo reinante e o fascismo emergente. Mas, e dito isto, é para mim claro que depois da queda do Muro de Berlim o debate em torno do totalitarismo acabou por ser cada vez mais reduzido a uma simples vulgata que tem servido quase simplesmente para combater a pluralidade de pontos de vista políticos. Nomeadamente, os pontos de vista de uma Esquerda Radical que os comentadores tentam sistematicamente desautorizar apresentando-a como expressão do tal monstro totalitário. 

Existem, além do mais, efeitos particularmente preocupantes que resultam do sucesso da vulgata anti-totalitária que hoje parece resumir a essência dos liberalismos. Um desses efeitos é a diminuição da capacidade de auto-crítica dos liberais. A tese de que os extremos se tocam tende a impedi-los de ver quão próximo o liberalismo esteve dos próprios extremos que denuncia. A tese não deixa que os liberais vejam a estreita colaboração entre grandes pensadores liberais como o economista Milton Friedman e regimes ditatoriais de extrema-direita como o de Pinochet. Não deixa também que os liberais se lembrem das relações de proximidade entre vários grupos e correntes liberais e as ditaduras de Hitler ou de Salazar. E, last but not the least, não deixa os nossos liberais recordarem que foi muitas vezes sob o signo do liberalismo, fosse ele de índole mais autoritária ou de tonalidade mais democrática, que teve lugar a aventura colonialista que aterrorizou uma grande parte do planeta. Não foram poucas as vezes que os liberais sacrificaram por completo os valores da democracia em nome da salvação do sagrado respeito pela propriedade privada.

Mas a vulgata anti-totalitária produz ainda um outro efeito não menos preocupante. Ao não hesitarem em dar como iguais a Esquerda Radical grega e o partido neonazi grego, mostrando tanto empenho na defesa do liberalismo económico (fortemente atacado pela Esquerda Radical) como na defesa do liberalismo político (fortemente atacado pela extrema-direita), os liberais de hoje não vêem os seus próprios erros actuais. Ávidos de irmanar a Esquerda Radical e a extrema-direita, os nossos liberais ignoram, por exemplo, que um dos pontos mais relevantes para a actual ascensão dos neonazis gregos (ou da extrema-direita francesa) é a crescente popularidade da sua mensagem de ódio aos imigrantes. E esquecem que neste particular aspecto, como em vários outros, as políticas levadas a cabo pelos partidos liberais do centro-esquerda e do centro-direita, na Grécia como na generalidade da Europa, estão bem mais próximas das políticas de repressão da extrema-direita. E se quem desta se demarca claramente é pelos nossos comentadores tido como radical, pois que então sejamos todos radicais. 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Sol Nascente

Enquanto alguns músicos se contentam em fazer uma cançoneta contra o desperdício, que é uma espécie de hino não oficial do Ministério da esmola e da caridade social, em 1982 o artista plástico Joseph Beuys optou por inflamar Ronald Reagan com o slogan: «Queremos Sol em vez de Reagan». Em Maio de 2012 clamamos por uma repetição da história, renovando os votos de uma Primavera Global e um Verão quente e avassalador porque, como diria o Chullage, Já não dá para aguentar.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

Subversivos promotores e publicitários radicais


 Vivemos tempos interessantes e uma pequena faísca basta para incendiar multidões. Quis o destino e uma profunda ausência de escrúpulos que, em pleno dia do trabalhador, o Departamento de Promoções do Pingo Doce se lembrasse de homenagear à sua maneira os operários mortos em Chicago, em 1886. O resto é o que se sabe: prateleiras esvaziadas num ápice, desacatos, confrontos, lojas fechadas, ruas cortadas e a intervenção da polícia. Passos Coelho, que prometeu mão pesada sobre quem promovesse tumultos através das redes sociais, sabe agora com o que está a lidar – subversivos promotores e publicitários radicais, que atiçam as massas e perturbam a ordem pública.
Não faltaram comentadores dispostos a garantir que se tratou de uma vitória simbólica do consumismo sobre a identidade de classe. Falta contudo algum fôlego a semelhante semiótica. Contra as sedutoras imagens veiculadas nos anúncios das grandes superfícies, onde a aquisição de mercadorias suscita sorrisos de despreocupado deleite e um brilhozinho nos olhos, vimos agora o pânico na cara de gerentes de loja, a raiva de quem perdeu um dia da sua vida para encher um carrinho de compras e a eminência de um total descontrolo da situação. Não terão sido poucos os clientes que imaginaram a possibilidade de desenvolver no futuro o espírito da promoção e obter um desconto de 100%.
Algo que não tirará o sono a Alexandre Soares dos Santos, reputado e abastado patriota, que conta com a autoridade do Estado para desencorajar tão criativa interpretação do seu marketing. É precisamente para isso que a Jerónimo Martins paga os seus impostos. Na Holanda.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Do supermercado enquanto espaço de conflito

Costumo fazer compras no Pingo Doce. Se a promoção fosse hoje, apenas não a aproveitaria por causa da confusão e, mais importante, porque a minha situação económica permite dispensar a adesão à campanha.

Algumas das análises produzidas em torno dos conflitos ontem verificados causam-me alguma perplexidade. Não percebo a suposta relação de incompatibilidade entre ir ao supermercado e participar na manifestação do 1.º de Maio, como se ambas se anulassem. Entre os milhares que ontem desfilaram na Almirante Reis (mais do que ano passado) certamente estariam pessoas que aproveitaram a sua manhã para ir às compras. Não se trata de consumismo, mas sim de fazer pela vida. 

Os conflitos entre consumidores do Pingo Doce são mais que ocasionais, constituindo uma herança do anterior regime legal. A proibição da abertura de hipermercados aos domingos e feriados levou algumas cadeias a reduzir as suas superfícies, garantindo assim o seu pleno funcionamento durante todos os dias da semana. A criação de espaços exíguos gerou, porém, dificuldades na mobilidade e na organização de filas, bem como aumentos do tempo de espera, ingredientes ideais para o bate-boca, o empurrão e a chapada. Imaginem tudo isto com o dobro ou triplo de pessoas…

Apesar de tudo, a afirmação do poder de cada um não se dirige apenas contra a pessoa do lado. Se o Pingo Doce recorre aos serviços da Polícia de Segurança Pública não será apenas por esta razão. De acordo com um estudo desenvolvido pelo Barómetro Anual Global do Furto no Retalho em 2009, os roubos em supermercados implicavam perdas no valor de 40 mil euros a cada hora que passava. Um valor que colocava Portugal nas primeiras posições do ranking e que nos permite observar a diversidade de relações de poder que se desenvolvem num espaço como um supermercado: relações de conflito e violência entre consumidores, entre estes e os trabalhadores de caixa, mas igualmente de cooperação entre os putos que tentam gamar qualquer coisa ou mesmo entre os putos e a trabalhadora de caixa, que, em violação da sua deontologia profissional, finge não reparar na obra dos meliantes. 

Algo que, dificilmente, poderá ser classificado como alienante ou conformista.