Que bem que se está em Portugal! Agora a sério. Que clima! Que bem que
se come! Que bom e barato é o vinho! Que bem escrevem os nossos grandes
escritores! Que prestáveis são as farmácias! Que belos filmes passam na
televisão! Que simpáticas as pessoas! Os benefícios que a CEE tem
trazido! A quantidade de queijos franceses que já se podem comprar nos
supermercados! A desfaçatez com que se entra em Paris ou em Londres! A
rapidez com que agora vêm os filmes, os CD e os jornais estrangeiros! A
estabilidade do escudo! Estou a falar a sério! Os concertos! A beleza da
nossa terra! As praias por descobrir! A facilidade com que agora se
compra um monte no Alentejo! Não, de facto, desculpem mas começa a ser
inegável. É que não se está nada mal em Portugal. [...]
Perfeitos? Nós? Não, mas a verdade é que já fomos mais imperfeitos, sim
senhor. Desculpem Iá. Já passamos mais fominha. Já aguentamos com mais
barafunda. Já nos metemos em maiores confusões. Já foi muito mais
difícil trocar notas de quinhentos paus por libras esterlinas. O leite
já escasseou mais. O trânsito já foi mais interrompido por
manifestantes. Até os ministros já foram mais incompetentes e desonestos
que hoje são! Parece impossível, mas é verdade. Portugal
arrisca-se a tornar-se um pais como os outros, atingindo o bem-estar e o
tédio das suas congéneres europeias. Já repararam como hoje é raro
aparecer uma noticia sobre Portugal na imprensa estrangeira? Não havendo
um mínimo de caos, de crise, de cravos na mão, de bichas para a
gasolina, de operários a falar durante horas na televisão, tudo ao som
da cadência de governos sucessivos a cair ritmadamente, Portugal vai
apagando-se da cena internacional. É triste! [...]
Mas calma. Não pode ser tão bom. Estamos demasiado bem para o nosso bem.
Vem aí borrasca. E da grossa. Esta pasmaceira não pode durar. A
característica "porreirinha" da nossa situação económica, política e
social não é nem sadia nem natural. Vai virar, vai ser bonito! Estamos a
atingir o limite. Existem várias maneiras de classificar o estado de
uma nação, mas "está tudo numa boa" não é a mais sólida. Aqui há gato.
Misturemos as metáforas. Ponhamo-nos a pau. Como dizem os ingleses "So
you trust the Virgin, do you? Well, don't run then." Nós próprios
dizemos que "Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas". E é verdade.
Este período aparentemente folgado não é mais que um intervalo entre
pauladas. É certo que os intervalos costumam ser mais curtos, mas se
calhar o pauliteiro foi a Miranda ver a mãe. Descansem que ele já volta.
Há-de vir com força redobrada. É só esperar pela pancada. [...]
O bem que se está em Portugal neste momento é como aquele calor abafado e
morto que antecede uma tempestade. Vamos ser apanhados desprevenidos.
Com a boca na botija do Halazon, a disfarçar o sabor do bagaço e do
refogado na ânsia de alcançar um hálito mais europeu. Cuidado.
Vai-se-nos entalar a mãozinha na urna do PSD e não a vamos poder tirar
tão cedo. Vai ser um horror. Vai ser como antigamente. A câmara de vídeo
vai ter de voltar para a loja, e o Zé e a Marieta para a casa dos pais e
o bate-chapas para a célula da UDP e os fins-de-semana para o galheiro e
as noites para a mercê da RTP e o Prof. Cavaco para o Algarve e
Portugal inteiro para a fossa milenária onde sempre esteve metido e de
onde provavelmente nunca deveria ter saído. É poético, não é?
K, nº9,
O Arco da Velha: Portugal vai ser tão bom não foi?,
Miguel Esteves Cardoso,
Junho de 1991
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