domingo, 8 de julho de 2012

O Sistema


(o meu artigo no i da última quinta-feira)

Já foi assinalada a triste sina de um governo que, fazendo bandeira da crítica ao facilitismo na educação, acaba por nos oferecer o percurso educativo do seu homem forte, Miguel Relvas, como um testemunho exemplar do que é facilitismo. Dito isto, e apesar de por estas bandas bem podermos com o mal de Relvas, convém deixar claro que o homem é agora vítima de um sistema que, apesar de alimentado por figuras como ele próprio, deve ser objecto da nossa crítica por inteiro e não fulanizadamente.

Que sistema é este? É um sistema político cujo funcionamento está fundado na ideia de que para o mundo não desabar será necessário dividirmo-nos entre uma elite que governa e uma massa que deve ser governada. É um sistema que hoje defendendo que essa elite seja apurada democraticamente, e proclamando o direito de todos a serem não apenas eleitores mas também eleitos, rapidamente trai este princípio elementar sobrepondo-lhe a ideia de que nem todos têm as competências intelectuais necessárias ao exercício da governação. Um sistema que, em suma, acaba por defender que só os alegadamente mais habilitados deverão ser escolhidos para governantes.

É no quadro deste sistema que Relvas, apesar das inegáveis qualidades pastorais evidenciadas ao longo da sua carreira político-partidária, pressentiu que só depois de ter o carimbo de doutor na testa é que estaria plenamente habilitado a fazer carreira governativa. E aqui é importante sublinhar que a universidade surge em palco como uma poderosa autoridade que legitima a distinção entre os mais e os menos dotados da capacidade de serem competentes, ou, na nova língua empresarial-académica, da capacidade de “excelência”. Com efeito, é sabido que em Portugal a posse de um curso superior é um dos mecanismos de distinção mais prestigiados. O poder da instituição universitária (mas poderíamos também alargar às instituições escolares em geral) enquanto entidade legitimadora da hierarquização das inteligências, que define que ali vai um homem inteligente, e que acolá ficou um indivíduo incapaz, é desmesurado. Mais importante ainda: precisamos de começar a questionar o princípio de que são os mais inteligentes que devem governar; e, sobretudo, devemos começar a questionar o que é isso de inteligência, de competência, de excelência.

O problema, insisto, não é o diploma de Relvas, tal como o problema não era o diploma de Sócrates. Infelizmente, o culto da formação escolar e universitária como prova de superior inteligência, ou da própria ideia de que a inteligência é coisa para ser medida e quantificada para depois se estabelecer a lista dos mais e dos menos desta vida, não é apenas obra dos percursos sinuosos dos homens mais odiados do momento. O culto está a tal ponto espalhado que se insinua em quase toda a vida política, mesmo entre aqueles de cujas boas intenções não duvidaremos. É por exemplo pouco entusiasmante verificar que, na mesma semana em que assistimos a mais este caso Relvas, tenha proliferado um sentimento de indignação a propósito do baixíssimo ordenado pago a um grupo de enfermeiros, como se por serem enfermeiros tivessem direito a um salário mais elevado do que um trolha. Entendamo-nos: 4€ à hora é de facto um salário miserável e merece a indignação generalizada mas esta situação não é mais revoltante por se tratar do salário de um diplomado do que de um não-diplomado.