segunda-feira, 30 de abril de 2012

Explodirão como bombas



Muito desejaria eu escrever sobre assuntos outros que não o aparelho repressivo do Estado, mas os tempos afiguram-se pouco próprios para o lirismo. Avisa-nos agora a PSP que duas pessoas juntas podem ser consideradas uma “manifestação não autorizada”, para justificar a acusação de “crime de desobediência” contra alguém que distribuía panfletos do Movimento Sem Emprego à porta de um centro de emprego.
Enquanto me esforço para manter ao largo todo e qualquer transeunte que tenha a nefasta ideia de se aproximar (os tempos são, recorde-se, de “tolerância zero”) e vou redigindo os necessários avisos prévios de todos os encontros planeados para a semana que começa (a dúvida inquieta-me: receberemos um comprovativo para provar aos zelosos agentes da autoridade que aquela troca de beijos no jardim seguiu os canais apropriados ou importa fazê-lo apenas no tribunal?), consulto um dos muitos textos subversivos que possuo na minha biblioteca.
Tem o inquietante título de “Constituição da República Portuguesa” e o que nele se dispõe fala-nos de um tempo e lugar remotos: 1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização. 2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação. (Artº 45).
Chegará porventura o dia em que, como profetizou Auden, os jovens poetas explodirão como bombas e percorreremos de noite os subúrbios em corridas de bicicletas. Os encontros deixarão talvez de constituir um acto subversivo. E os beijos serão, como devem ser, despreocupados e sem aviso prévio. Mas amanhã não será esse dia.
Maus tempos para o lirismo, no I on-line

(Abaixo está uma tradução muito minha e muito desajeitada do poema de W.H. Auden a que o texto faz referência. Não sei se já estava publicado em português. Talvez o nosso poeta-tradutor Miguel Óscar Cardoso o queira retocar...).




Amanhã, talvez o futuro. A pesquisa da fadiga
e do movimento dos carregadores;
a exploração gradual
de todas as oitavas da radiação;
Amanhã o alargamento da consciência através da dieta e da respiração.

Amanhã a redescoberta do amor romântico, o fotografar dos corvos;
toda a diversão sob o manto soberano da liberdade;
Amanhã a hora do músico e do mestre de cerimónias,

O magnífico trovejar do côro sob a cúpula;
Amanhã a troca de conselhos sobre a criação de terriers,
A ansiosa eleição do dirigente
pela precipitada floresta de mãos. Mas hoje, a luta.


Amanhã para os jovens poetas explodindo como bombas,
Os passeios junto ao lago, as semanas de perfeita comunhão;
Amanhã as corridas de bicicletas
pelos subúrbios em noites de Verão. Mas hoje, a luta.

Hoje o aumento deliberado das probabilidades de morte,
A aceitação consciente da culpa no assassínio necessário;
Hoje o esbanjar de forças
No efémero panfleto plano e na aborrecida reunião.

Hoje os consolos de substituição: o cigarro partilhado,
O jogo de cartas no celeiro à luz da vela e o concerto à desgarrada,
 as piadas masculinas; Hoje
o desajeitado e insatisfatório abraço antes de provocar a dor.

As estrelas estão mortas. Os animais não olharão.
Fomos deixados a sós com o nosso dia, e o tempo é curto, e
a História aos derrotados
poderá oferecer lamentos mas nenhuma ajuda ou perdão.

Espanha, 1937, W. H. Auden

1 comentário:

  1. Se a luta é hoje, não há tempo para toques, quanto mais retoques. De qualquer maneira, temos tradutor! Não prometo perfeitas comunhões futuras, mas quando te vir dou-te o tal abraço devidamente desajeitado e insatisfatório.

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