segunda-feira, 6 de junho de 2011

Shit happens


Ontem fui votar e tudo. Para parafrasear o conhecido "Reabastecimento", do Cesariny: "Vamos ver a democracia / Que linda é/ Vamos ver a democracia / Dá cá o pé/ Vamos usar o voto/ Hop-lá!/ Vamos usar o voto./ Já está."

Ora bem, é fácil demais, e enganoso, dizer: passemos então ao resto, ao que interessa. Isto porque misturados nesse resto estão também os tristes etceteras dos resultados de Domingo, que sucederão aos tristes etceteras em que já vivíamos. É ainda cedo para se perceber até que ponto a paisagem política (num sentido lato e não parlamentar) irá mudar, para além do que já se sabia. Mas enquanto, sem grandes surpresas ou subtilezas, se vão desencadeando as anunciadas cadeias da austeridade, e enquanto as engrenagens do capital rodam as suas rodas dentadas com a teimosia e impassibilidade com que o Idealismo pintava a marcha do Espírito Absoluto, vale a pena irmos olhando de esguelha para os ingredientes menos palpáveis que vão empestar o ar que respiramos. Trocando isto por miúdos: estou a falar daquela coisa velhinha a que se costumava chamar Ideologia. O Capitalismo é o nosso Real, e já muitos têm dito que não precisa assim tanto de Fantasia. Há quem tenha posto a coisa assim: o Capital passa bem sem um Mundo (no sentido forte do termo), ou seja, não precisa de um regime político particular, nem de um sistema de crenças, nem de coesão simbólica que o legitime, nem de nos contar histórias para nos embalar e dar embalo à sua continuidade. Nesta visão, estamos metidos numa espécie de máquina infernal, com manivelas fora do alcance das nossas mãos, e uma imensidão de fios escondidos atrás de chapas metálicas bem aparafusadas. 



O que é certo é que nos continuam a contar histórias, e a dar-nos música. E vão ver como se multiplicarão os esforços para dar à nossa contingência o ar de necessidade, mas igualmente para dar à necessidade um ar mais fofinho, mesmo perante a evidência dos mortos e feridos à beira da estrada por onde avança «o carro triunfal das tendências objectivas». Se me permitem a leveza e leviandade, a sopa ideológica que a dupla Passos Coelho-Portas se preparam para congeminar será amarga, mas é motivo para fazer salivar os hermeneutas. Esperemos para ver como se desenrola o jogo entre a retórica da transparência e a opacidade dos mecanismos de decisão económicos e políticos, como se casam liberalismo e a ideia de Sociedade (direi mais sobre isto noutra ocasião), como se martela nos pobres mas se defende os pobrezinhos, etc etc.
Encostar os ouvidos à chinfrineira das contradições que aí vêm é apenas um hobby no contexto das lutas que é preciso travar. Mas há aqui um trabalho bem real a fazer: o Capital não vai assegurando a sua continuidade apenas nos ninhos escondidos da produção ou na teia complexa dos mercados financeiros: fá-lo também e necessariamente através da reprodução das relações sociais, de valores, de normas e de hábitos. A esperança, se é que lhe podemos chamar isso, é que o desespero (para não dizer a miséria) que aí vem atrelado à necessidade vai encarregar-se de desfazer alguns desses hábitos, esfarrapar qualquer ideia de coesão social, gerar dúvidas e antagonismos. Não quer isto dizer que virá daí a revolução - até porque confesso que não sei exactamente o que será isso. Mas vai haver merda, de certeza. E não vai haver música que lhe esconda o cheiro.

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