quinta-feira, 23 de junho de 2011

Que fazer?

O Nuno Teles, o Luís Bernardo e a Mariana Avelãs expõem aqui, de uma forma bastante clara, uma possível resposta política à tentativa de imposição do pagamento da dívida. Uma questão, no entanto, se levanta. O que fazer entretanto, tendo em conta que a possibilidade do actual governo vir a aceitar uma auditoria cidadã à dívida parece ser, no mínimo, remota?

Se num restaurante me apresentarem uma conta de 50 euros por um hambúrguer, não me limitarei a pedir a factura detalhada, mas igualmente a não pagar a conta enquanto tal não me for disponibilizada. É neste ponto que o texto deveria ser mais claro. Se a auditoria representa, por si só, um sinal de desconfiança com a dívida a ser cobrada, será então razoável pagar aquilo que, segundo os autores, compreende montantes legítimos, ilegítimos, ilegais, odiosos e insustentáveis?

Deste ponto de vista, não só não consigo ver quaisquer incompatibilidades entre a defesa de uma auditoria à dívida e o não pagamento da mesma, como considero que uma não tem qualquer sentido sem a outra. Pois, se por um lado, a defesa do não pagamento necessita de ser fundamentada por dados claros e precisos que, a conhecerem-se, contribuirão certamente para colocar ainda mais a nu o funcionamento do sistema capitalista, por outro, a reivindicação de uma auditoria, por si só, parece assinalar tanto uma debilidade, sob a bandeira do politicamente correcto e exequível, como uma enorme contradição: uma vez que, em termos concretos, a atitude perante a ilegitimidade acaba por ser exactamente idêntica à postura de crédulo.

8 comentários:

  1. Caro Zé Nuno,
    O texto, por si só, não é uma resposta política a nada. É uma tentativa de clarificar conceitos e tentar convergir em torno de algumas definições que se têm mantido difusas.

    De qualquer forma, a analogia com um restaurante é capciosa - comparar esse caso, que comporta um único contrato, a todo um volume de dívida soberana, é enganador - e o teu texto repete um erro que tenho visto repetido em vários canais, especialmente aqueles que, em vez de procurarem uma convergência necessária, pretendem excluir propostas supostamente "reformistas" ou, usando o teu vocabulário, que comportam "enormes contradições" apenas porque não atendem a predicados considerados por alguns como fundamentais, chegando ao ponto de eleger a auditoria como instrumento da luta de classes (!) e de defesa dos "interesses objectivos" da classe trabalhadora. Já irei a esse erro. Antes disso:

    "Se a auditoria representa, por si só, um sinal de desconfiança com a dívida a ser cobrada, será então razoável pagar aquilo que, segundo os autores, compreende montantes legítimos, ilegítimos, ilegais, odiosos e insustentáveis?"

    É evidente que supomos a existência de parcelas ilegítimas, ilegais e insustentáveis de dívida. A sua insustentabilidade global é clara e deve ser escrutinada. Mas há dívida contraída legitimamente e, ainda que possamos discuti-lo, a dívida contraída de modo a financiar défices também não é automaticamente demoníaca, como parece ser sugerido por quem advoga o seu repúdio completo.

    continuo abaixo

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  2. Políticas contra-cíclicas em contexto recessivo, para suster e impulsionar a procura - um instrumento keynesiano primário - requerem défices que só podem ser financiados através da contracção de dívida, já que as receitas fiscais descem. Portanto, sim, é razoável pagar os montantes legítimos. Uma auditoria democraticamente efectuada e com prestação de contas transparente - outra das características que se insiste em ignorar, e que me parece fundamental - é o único modelo que compreende essa tipologia que te parece reformista. O ponto é este: outra auditoria, feita pelas auditoras do costume, não compreendem as categorias que tentamos definir - algo que os comités contra o pagamento da dívida excluem como agentes capitalistas e cuja acção descontam como ilegítima, não confrontando as consequências empíricas das acções destas firmas. É esse o erro a que me refiro: tomam-se muitas posições contra o reformismo e as "enormes contradições", mas nunca se discutem estes dois pontos muito simples:

    1) quais as consequências de um repúdio total (que nunca ocorreu, nem mesmo no Equador)?
    2) como enfrentar auditorias paralelas efectuadas por firmas de contabilidade que não aquilatam, sequer, a hipótese da ilegitimidade e/ou insustentabilidade de uma parcela da dívida?

    Referes, depois, isto:
    "Pois, se por um lado, a defesa do não pagamento necessita de ser fundamentada por dados claros e precisos que, a conhecerem-se, contribuíram certamente para colocar ainda mais a nu o funcionamento do sistema capitalista, por outro, a reivindicação de uma auditoria, por si só, parece assinalar tanto uma debilidade, sob a bandeira do politicamente correcto e exequível, como uma enorme contradição: uma vez que, em termos concretos, a atitude perante a ilegitimidade acaba por ser exactamente idêntica à postura de crédulo."

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  3. Em primeiro lugar, assumes que a auditoria é uma iniciativa politicamente correcta e exequível. Muito bem, és mais optimista que eu. E sim, eu, pessoalmente, defendo a reestruturação da dívida, porque não creio que haja motivos para um repúdio total - há detentores de dívida soberana que adquiriram títulos em boa-fé e com intuito não especulativo - e também me parece que as consequências serão catastróficas e contraproducentes. Consideras que a atitude perante a ilegitimidade é, em termos concretos, "exactamente idêntica à postura de crédulo". Não. A posição do repúdio total é que é crédula e errónea, além de preferir ignorar as suas próprias contradições. Ainda que aludas ao "sistema capitalista", que é toda uma outra discussão e, a incluir uma simples auditoria, faria dela uma mera molécula num universo de questões mais importantes, pareces ignorar isto. Se consideras que a defesa do não pagamento requer dados claros e precisos, não podes excluir a hipótese da existência de parcelas legítimas da dívida. De outro modo, não estás à procura de dados claros e precisos. Estás apenas à procura de dados que confirmem os teus preconceitos e não precisas de auditorias para nada. Respeito a posição do repúdio total, mas não respeito a ideia de que se deve utilizar uma auditoria - que, tal como a vejo, é uma alternativa ao oligopólio das quatro grandes auditoras - como agitprop. Se é para isso, que se avance já para a defesa do repúdio total sob a premissa clara de que se considera a dívida um instrumento de dominação capitalista e se recusa unilateralmente a mesma. Isso é claramente melhor que o propósito de andar para aí a auditar de olhos e ouvidos fechados. É que uma coisa é dizer que se é contra a dívida. Outra, muito diferente, é dizer que se é contra o pagamento da dívida. Até agora, não vi, entre quem defende o seu repúdio, uma diferenciação clara e uma discussão articulada daquilo que é a dívida, de como é criada, do propósito que serve no âmbito do capitalismo neoliberal e de como erradicá-la. Gostaria de participar nessa discussão. E que houvesse mais gente informada acerca do funcionamento das firmas de auditoria; a não ser que vivas numa redoma, parece-me importante perceber as motivações, estratégias e operações destes agentes.

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  4. Caro Luís,

    Qual repúdio total? Não encontras no meu post nada que aponte para a defesa de um não pagamento da dívida legítima.

    O meu argumento é simples: enquanto não se souber que parte da dívida é legítima e que parte é ilegítima, a mesma não deve ser paga.
    Tão somente.

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  5. Zé Nuno,

    Como disse o Luís, o objectivo do texto era clarificar conceitos. A questão que levantas não surge no texto, e há várias hipóteses, que devem ser discutidas. Mas tendo por base ideias claras sobre o que está em discussão, senão falamos dialectos diferentes.
    Até porque o teu argumento relativamente à dificuldade da execução da auditoria se aplica ao não pagamento imediato ou a qualquer posição que não seja o cumprimento como está a ser imposto.
    A questão mais urgente a esclarecer, neste momento, acho eu, é precisamente a da natureza da dívida. Porque a ideia de que ela é homogénea mata qualquer discussão séria sobre o assunto. Se calhar valia a pena começar por elencar que tipo de parcelas legitimas existem de certeza, por exemplo.

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  6. Mariana,

    Em primeiro lugar, e muito sinceramente, tenho uma grande dificuldade em separar a política da clarificação de conceitos.

    Como disse, não considero que a dívida seja homogénea. Aliás, em nada contradigo a vossa definição de dívida.

    O que me faz...nem sequer é discordar...mas considerar o texto incompleto é inexistência de uma posição que reflicta a clarificação dos conceitos. Pois, a partir do momento em que se reconhece que uma relativa parte dela é ilegítima, é inevitável que se defenda o seu não pagamento (isto é, da sua componente «vígara»; claro que, a partir daqui, se seguirá todo um outro debate sobre o que é legítimo e o que é ilegítimo).

    Da minha parte, acho que a velhota que utilizou parte das suas poupanças para investir em títulos de dívida pública deve ser, obviamente, ressarcida.

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  7. Estamos de acordo. O texto está, se quiseres, deliberadamente incompleto, em vários pontos, e esse que apontas é um deles. A ideia não era separar política de clarificação, mas sim lançar o debate de forma a estarmos todos a falar da mesma coisa (não defendendo qualquer terminologia/abordagem apolítica ou pseudo objectiva - antes pelo contrário). Como é óbvio, há muita coisa a discutir para lá do que está neste texto. A que levantas é uma delas (já vi várias soluções propostas, é um debate que tem de ser feito). Mas no, fundo, a questão é que a auditoria não se esgota na legitmação do não pagamento (de partes) da dívida (é um mecanismo interessante, digamos, em qualquer contexto), nem tudo o que há a dizer sobre o processo das dívidas se esgota na exigência de uma auditoria cidadã. A confusão que há em alguns círculos entre articulação e instrumentalização (com argumentos do tipo "não discuto auditorias porque 1. a dívida é toda cretina 2. a dívida é toda limpinha") está na origem, pelo menos da minha parte, de te ter respondido, de facto, ao lado.

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