Nos idos setenta o cantor-filósofo, José Barata Moura, brindava-nos com uma canção certeira sobre os «desportistas da caridade». A canção, intitulada «Vamos brincar à caridadezinha», ridicularizava as acções das tiazinhas (não confundir com aquela afilhada do zorro, que trouxe a parafernália sadomasoquista para o horário nobre televisivo) lusitanas que passavam «a tarde descansada, mastigando a torrada, com muita pena do pobre».
Antes do 25 de Abril, as madames do Movimento Nacional Feminino foram precursoras da virtude caridosa e do ethos da acção, edificando um movimento que tinha como lema «mais obra do que palavras». Mais do que fraseologias da comiseração, elas concentraram-se na acção, distribuindo maços de tabaco aos soldados que combatiam a pátria ameaçada no ultramar português, ou oferecendo discos de natal, para que os soldados pudessem trautear «Angola é nossa» depois da Missa do Galo.
Mudam-se os tempos, mantém-se a vontade de ajudar, mesmo se as novas formas de ajudar reivindiquem ser mais materiais do que espirituais. Apesar dos sacos de alimentos terem substituído as oferendas musicais, o clima de urgência mantém-se, tal como a compulsão para ajudar. A imprensa, por seu turno, garante tempo de antena gratuito às campanhas semestrais contra a fome, propagandeando-as como estas fossem o sobressalto cívico do momento. Uma vez que a fome não desaparece, e o Estado não a consegue suprir, a sociedade civil organiza-se em associações filantrópicas, amparando-se nos indivíduos mais empreendedores e disponíveis para ajudar os mais necessitados.
A caridade enquanto política social para combater a pobreza tem naturalmente hordas de admiradores. Com Portas à cabeça (qualificado como o político mais experiente no activo pelos comentadores televisivos, hélas!), que na sua campanha eleitoral histriónica despachou os pobres com uma palmada nas costas e uma frase feita, omitindo que reservava para eles vales de alimentação em vez de apoios sociais. Ao lado de Portas está a instituição mais reverenciada da actualidade, o Banco Alimentar Contra a Fome, cuja porta-voz tem ideias claras sobre o assunto: «Eu sou mais adepta da caridade do que a solidariedade. A palavra está desvirtuada por ter uma conotação religiosa, mas para mim a caridade é a solidariedade com amor. Com entrega de si mesmo. A grande diferença é que caridade é amor e solidariedade é serviço. Portugal ainda é um país de caridade...»
A solução da caridade, e a consequente opção por gerir a miséria através do empenho voluntarioso de membros da sociedade civil, é a ideologia oficial do Banco Alimentar Contra a Fome, cuja genealogia remonta aparentemente ao modelo corporativista das Casas do Povo. Isto a avaliar pelas palavras da sua porta-voz: «Veja-se o que se passa no Rendimento Social de Inserção. É uma medida necessária mas é muito difícil de controlar e fiscalizar e pode por isso ter muitas fraudes. O Estado deve pagar serviços que são prestados às famílias. Recordo-me das Casas do Povo em que era levado à família o que ela necessitava, mas era fornecido em géneros, remédios, roupa, comida».
«Manda quem pode, obedece quem deve» regressa como lema, desta feita com floreados alusivos à ética da compaixão (legitimados por uma Encíclica Papal de Bento XVI, intitulada «Caritas in Veritas», em latim porque este Papa é old school), que aferrolham o pensamento em acções morais imediatas, amparando os mais pobres com boa comidinha, desde que estes permaneçam obedientes. Resumindo, dependência, deferência, passividade e humildade são os preceitos para que a caridade continue a ser operativa dentro desta concepção orgânica de sociedade, idealmente sem fissuras nem divisões. Como o velho barbudo dizia no Manifesto: «o socialismo cristão é apenas a água benta com que o padre abençoa a irritação da aristocracia». Substitua-se socialismo cristão por democracia cristã, aristocracia por burguesia, e é vê-los «brincar à caridadezinha».
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