sexta-feira, 17 de junho de 2011

À farinha não se faz festinhas, que é uma porcaria. Ao povo também não

Contribuições metodológicas para o estudo do povo e da sua relação com as padarias. Mais ou menos.



 Ficha I


Uma primeira aproximação a um tema que nos preocupa a todos, que é o da relação entre nós, as pessoas, por um lado, e as padarias e o povo, por outro. Mais cedo ou mais tarde, alguém tinha que falar nisto.  Digamos que é o meu pequeno contributo para a ciência.

Os leitores de blogues, quando vêm assim muitas palavras juntas por aí abaixo, sem fim à vista, têm tendência para ficar com comichões em sítios esquisitos. Isso passa. Lembrem-se: é tudo em nome da ciência. Ainda assim, para facilitar, vou seguir a lição de Jack o Estripador e fazer a coisa por partes.  

Enfim. Apesar do meu desejo ardente de ir direitinho ao cerne da questão (e é com o cerne das questões que se ocupa, afinal de contas, a ciência – o que vai florescendo em volta do cerne é antes do domínio dos apetites, do palavreado, ou da palhaçada, conforme),

portanto, como dizia, apesar do meu desejo de ir direitinho ao cerne da questão, em relação a esta matéria, não há, e nisto estaremos todos de acordo, um ponto de entrada óbvio.

Um portão, por assim dizer, que nos conduzisse do desconforto ruidoso, cheio de correntes de ar e pêlos e mais não sei quê, do desejo e mais não sei o quê

até ao sossego almofadado e quentinho que caracteriza o cerne e que lhe dá o seu encanto. E que nos dá, é preciso admiti-lo, um certo medo.

Deus sinistro, assustador, impassível, disse o Baudelaire. Era sobre relógios, mas também se aplica. ‘Onde o branco é desolado e sujo/Onde o branco é a cor que fica onde não há cor/E onde a luz é cinza’. Isto disse a Sophia, mas sobre Hospitais. Agora imaginem isto mas à noite, e de luz apagada.

Desconfio que há ainda muito a descobrir nesta matéria. Pela física, pela metafísica e pela espeleologia.

Por exemplo. Que o cerne é mais húmido do que parece à primeira vista (e a ciência é precisamente aquilo que se atira por cima das primeiras vistas, sem saber bem onde vai aterrar), mais despenteado do que parece (o melhor é usar uma daquelas coisas impermeáveis, que corta o vento). Que amadurece, que se transforma quando estamos distraídos. Que nele há aragens, subtilezas (a subtileza é essencial), barulhos nunca ouvidos.

Como quando nos chegamos muito perto a uma tela do Rembrandt.

Como quando se lê devagar uma descrição de Raul Brandão:

Na ria o ar tem nervos (...) a luz aqui estremece antes de pousar.

Por exemplo. Quando se lê devagar. Por exemplo. Quando nos chegamos muito perto a qualquer coisa depois de um tremendo desgosto.

Para que se ouça a voz do cerne é preciso cantar-lhe a sua própria canção. Isto disse mais ou menos o Marx, a propósito de outra coisa. Mas dizia: é preciso cantar ao cerne a sua própria canção. Só ainda não sabemos qual ela é. Eu vou tentando. Quando conseguir, quando acertar com o tom, terei finalmente a a certeza de que não existe.

Esconjurar, portanto: é disso que se trata.

O cerne é um ponto de emergência. Em ambos os sentidos.

Mas o melhor é não falar destas coisas, que não é para isso que cá estamos.

Falava de ciência. Enfim, do povo, de padarias, mas sobretudo de ciência.

Tudo muito subtilmente, hã. A subtileza é essencial.


PS: Este texto, de que esta é apenas a primeira tranche, foi escrito para ser lido numa intervenção e desbunda colectiva na Padaria do Povo, em Dezembro de 2009. Fiz umas pequenas alterações. Quanto a isto de apresentar a coisa em fascículos, para além da questão prática, digo só o seguinte: se eu não tentar ser o Zola do século XXI, quem tentará?   


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