segunda-feira, 27 de junho de 2011

Cagões? You ain't seen nothin' yet!



Como isto por estas bandas está mais sossegado do que o Belmiro de Azevedo quando se lembra de ir consultar o saldo bancário, resolvi aceitar o convite do Renato e tentar responder ao tal questionário, apesar de algumas reticências. Até porque "curioso com o Miguel Cardoso" soa bem. Dificilmente será grande remédio para a pasmaceira, mas pode ser assim uma espécie de óleo de fígado de bacalhau. Mete passarinhos, ministros, vómito e a determinada altura aparece um ralador com intuitos maliciosos. Fora isso é chato. Um inocente exercício de caganice, como todas estas coisas. E também falo de alguns livros. É ir por aí abaixo e seguir as tabuletas.



1 – Existe um livro que lerias e relerias várias vezes?
Já li e reli muita coisa muitas vezes, umas quantas por obrigação mas quase sempre com gosto. Sobretudo os modernistas. Por uma qualquer deformação de personalidade que a formação académica acentuou, não me apego muito a enredos e personagens: vou lá revisitar verbos, adjectivos e preposições, espreitar as engrenagens, e para voltar a passar devagarinho, palavra a palavra, por aquela descrição longuíssima de como o cuspo se adensa quando temos medo. O essencial é ir acampando em vários sítios e inventar engenhos para apanhar outros ângulos da paisagem. Mas, acima de tudo, ser terrorista e não respeitar a habitat natural das palavras. Pode-se observá-las de longe e fazer festinhas durante algum tempo, mas depois é construir barragens, espantá-las com estalidos e urros, arrancá-las à bruta, esquartejá-las e levá-las a dar uma volta até ao livro ao lado, enquanto se vai deixando para trás um trilho da porcaria que trouxemos de outras paragens.

Claro que o mais certo é daqui a uns anos fazê-lo sem dar por isso.


2 – Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste ler até ao fim?
Sim. Vamos supor que isso do “fim” é evidente, e que coincide com a última letra da última palavra da última página. Pessoalmente, acho essa história muito mal contada. Os livros, como o Godard disse dos filmes, têm um princípio, um meio e um fim, mas não necessariamente por essa ordem. Dito isto, nunca cheguei a acabar uma série de Dicionários, desde o velhinho Morais, passando pelo inesgotável Oxford English Dictionary, até ao da Academia. E esta resposta não é totalmente esparvoada, porque a determinada altura, numa infeliz junção de madness e de method (certamente possuído pelos espíritos de Bouvard, Pécuchet e do Reverendo Casaubon) lia mesmo umas páginas por dia. Neste caso às vezes fazia batota e saltava as partes mais descritivas. Como toda a gente, ainda não arrumei o Proust nem o Marx. Como talvez um pouco menos de gente, já me fiz à Ciência da Lógica umas quantas vezes mas esta tem-se feito difícil. Ainda por cima está-se mesmo ver como é que vai acabar. Na Fenomenologia do Espírito também desconfiava, mas tem melhores personagens e mais cambalhotas.
 


3 – Se escolhesses um livro para ler para o resto da tua vida, qual seria ele?
Uma vez mais, muito a sério, e já com uma mão na taça para o gajo mais chato, hesitaria entre 1. um dicionário, e aí teria que ser o Oxford English Dictionary, na edição completa. Nada como um bom verbete logo de manhãzinha to get your juices going. Caso a coisa se tornasse mais aborrecida ainda do que parece, seria um inestimável adereço para uma morte aparatosa. E poderia deixar um bilhete de suicídio críptico, espalhado pelos vários volumes, com minúsculas notas marginais nas citações do A Journal of the Plague Year, do Defoe, por exemplo. 2. O Finnegans Wake, não porque seja um dos meus livros preferidos, mas porque, não tendo ainda conseguido passar de meio, me entretenho muito a dizer brozaozaozing, perporterroguing e fummuccumul. De qualquer modo, é muito provável que me levasse meia vida a ler o resto e a restante a fazer sentido daquilo. Dá bem para cantarolar, o que entretém, e assusta ministros e cientistas sociais, o que dá bom ambiente.


4 – Que livro gostarias de ter lido mas que, por algum motivo, nunca leste?

Uma carrada deles. O que tenho tido mais ganas de ler recentemente é o Chevengur, do Platonov, a que ainda não cheguei porque não leio russo e a tradução inglesa está esgotada há muito tempo. O Capital, volumes II e III. Tenho medo que acabe mal, e não arranjei tempo nem valorosos caramaradas que me acompanhem (li o primeiro volume, tal como grande parte do meu Hegel, em bando e em furiosa conversa. Ele há gajos esquisitos). A Crítica da razão dialéctica (mal comecei). As obras do Elio Vittorini e do Nanni Balestrini, o Anna Karenina, A Paleta e o Mundo (só li uns farrapos), um punhado de romances do Wyndham Lewis e outros tantos do Camilo, uns quantos clássicos da ficção científica etc etc e mais uma data de botas.


5- Que livro leste cuja ‘cena final’ jamais conseguiste esquecer?

A Fenomenologia do Espírito, claro. Acaba tudo em bem. O das Viagens na minha terra, que acaba mal: ele está muito triste e diz adeus à Joana. E depois acaba outra vez: o autor desembarca no Terreiro do Paço. O Húmus, que é uma coisa desgraçada turva e dorida do princípio ao fim, mas acaba com pontos de exclamação: “Estamos aqui todos à espera da morte!” E a seguir: “Estamos aqui todos à espera da morte!”. Calma, homem. As Palavras e as Coisas: vem uma onda e apaga a face da humanidade traçada na areia, como quem não quer a coisa. As cenas finais de um conjunto de pieguices que li em idade impressionável, como O Constantino guardador de vacas etc... (está feito um homenzinho, e lá vai construir o seu barco), para não falar das Condessas de Ségur, que me torturaram na altura e desconfio que se entranharam. Por maisAlthusser que leia ou manifestos anti-humanistas que escreva nas horas vagas, há uns nódulos de lamechice que são inoperáveis. Mas há uma porrada de outros. O do Ulisses, claro. Yes. O de O Inominável, até porque o citam por tudo e por nada (“I can't go on, I'll go on”), bem como o do Molloy (It is midnight. 'Rain is beating against the window.' It was not midnight. It was not raining). O de To the Lighthouse, porque o li várias vezes (a Lily tem uma visão e pousa o pincel), o do Slaughterhouse 5: (provavelmente o melhor de todos: Poo-tee-weet, faz o passarinho, enquanto um homem é executado). Uns quantos porque são clichés onde vêm pousar um sem-número de filmes e de outros livros: o do Farewell to Arms, por exemplo. Não é que o gajo volta para o hotel à chuva, muito estóico e muito murcho, em ambos os sentidos (não me lembro se vai de mãos nos bolsos). O do All the pretty horses: grande livro, mas acaba com uma cavalgada lenta pelo deserto em direcção ao pôr do sol, em tons de vermelho. A Recherche não li até ao fim, mas até sei que acaba mais ou menos como O Constantino: o Marcel é enfermiço, lá isso é, mas vai escrever um livro.


6- Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se lias, qual era o tipo de leitura?

Como escreveu o Aquilino, “lembro-me muito bem que era no tempo em que minha pupila fazia e desfazia mundos”. Agora dá mais trabalho. O hábito? Diz o Beckett: é a corrente que prende o cão ao seu vómito. Diz outro: é a melhor maneira de colonizar o futuro. Fui colonizado logo de pequenino. Portanto sim.


Quanto ao tipo de leitura. Do tipo normal. Sem ter sido tido nem achado, cedo me enveredaram pela via profissionalizante da leitura, em que se lê umas letras a seguir às outras e se faz sentido daquilo tudo. Não desgostava. Tem dado algum jeito. Mas descobri logo algumas modalidades amadoras, que tenho praticado até hoje. Assim um bocado ao calhas: Tresler. Levantar a cabeça muito depressa. Ler entranhas de pássaro e folhas de chá. Fazer levantar os pêlos da nuca. Não ler. Olhar para o canto da página. Passar-lhe a mão pelo pêlo e pensar em miúdas. Ler tão devagar que até chateava o cão. Lembrar-me do cheiro das alfarrobas. Abaular a voz. Ler tão perto que ficava tudo desfocado. Lengalengar. Esquecer as vogais. Prolongar as fricativas. Coçar a língua. Ler não só nas entrelinhas, mas entre as entrelinhas. Ler o que não foi escrito, como diz o outro. Não tinha ainda sido apresentado ao Barthes, mas estava-me a fazer cócó para os autores e matava-os que nem tordos anestesiados numa clareira. Ficou-me. É desse tipo que eu gosto e recomendo.

7. Qual o livro que achaste chato mas ainda assim leste até ao fim? Porquê?

Há um que me ficou gravado na memória: How to do a PhD, já não faço ideia de que luminária. Mandaram-me ler e eu obedeci. Foi uma experiência quase tão dolorosa como uma brincadeira bêbeda que envolvesse um ralador, um mancheia bem medida de sal e as minhas partes pudibundas. Embora esta última deixasse mais sequelas, o resultado (face ao que o título prometia) não seria muito diferente. Lembro-me também de no liceu ter arrancado muitos cabelos a ler o Eurico o Presbítero. Entretanto ganhei calo masoquista e fui apurando a cada vez mais notória queda para a chateza. Nem mesmo as descrições fastidiosas de parafusos e pistons do Zola me assustam. As únicas coisas realmente aborrecidas são as banalidades de olhos enternecidos, a paz na terra e também no céu e a sabedoria enfezada dos cínicos. Aí adeuzinho, não leio mais do que um punhado de páginas.

8. Indica alguns dos teus livros preferidos.

Pois. Se tivesse que ser só um, acho que seria A Trilogia do Beckett (se isto não é batota). Porque o Beckett é o verdadeiro inventor da silly walk, porque ensina a chupar pedras sem ser assim à balda e a andar de bicicleta quando se tem as pernas mancas e o corpo a dar as últimas. Porque me faz rir dentro do cérebro, nas axilas e em redor dos tendões. Porque dá a ver os fios inevitavelmente cruzados entre a lógica mais sóbria e a doidice mais varrida. Porque nos ensina a morrer com a falta de dignidade que uma tal ocasião merece. Porque isto dói e vão-nos faltando as palavras. Porque apesar de tudo vai-se andando.

Mais uns quantos, ficando-me arbitrariamente só pelos romances, o que deixa de fora muitos dos livros que verdadeiramente me desarrumaram as ideias e desarranjaram as entranhas, agrafando ambas a palavras esquisitas ou conceitos acrobáticos. Conforme me passam pela cabeça e, para meu enorme embaraço, com a certeza antecipada da coincidência das minhas preferências com os grandes monumentos dessa coisa pavorosa que é a Cultura: O Ulisses do Joyce, Os sonâmbulos do Broch, Breakfast of Champions do Vonnegut, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge do Rilke, La Vie: Mode d'Emploi do Perec, o Finisterra, do Carlos de Oliveira, Gravity's Rainbow do Pynchon, Tristram Shandy do Sterne, La Jalousie do Robbe-Grillet, Revenge of the Lawn do Brautigan, The sound and the fury do Faulkner. E fico por aqui que já cansa.

9. Que livro estás a ler neste momento?

Excepto às vezes em férias, leio por intermitências. Aqui vai o que ando a ler (excluindo livros de poesia e aqueles que tenho que ler por razões estritamente profissionais, embora esta fronteira seja ténue): o Eusébio Macário, porque faz bem enxertar a língua com um Camilo por ano, o The Call of Cthulhu and other weird stories do Lovecraft, porque o mundo se vai tornando mais esquisito e preciso de ler textos com mais esquisitices para o conseguir descrever; o Tool Being, por razões parecidas (foi este livro que me levou a pegar no Lovecraft): é à primeira vista uma tese de doutoramento sobre Heidegger, mas na verdade trata-se de um longo exercício de estranheza e estranhamento, atravessado por objectos esquivos, criaturas com antenas luminosas e dentes serrados, e conceitos quase tão monstruosos como o mundo no qual acordamos todas a manhãs. O Infidel Poetics, do Daniel Tiffany, um livro sobre as ligações entre a obscuridade da poesia e as obscuridades sociais de vários submundos e demimondes, como os pregões de mendigos, o vernacular alcoolizado das tabernas e as canções dos bandidos. Tenho também andado a salivar mais do que é costume porque estou prestes a fincar o dente no Combined and uneven Apocalypse, do Evan Calder Williams, um companheiro de futuros antecipados, comunizações improvisadas e fins de mundos, cujas meditações sobre zombies e capitalismo, pilhas de lixo e barricadas, ou sobre a hostilidade obstinada dos objectos nossos circundantes eu vou acompanhando regularmente no blog Socialism and/or Barbarism.

10. Indica dez amigos para o Meme Literário:
Onde é que um gajo arranja tempo para ir dando corda a dez amigos? Pode ser o pessoal aqui da tasca, que já foi instigado por outros, se estiverem para aí virados.

E pronto. Poo-tee-weet.

5 comentários:

  1. E o "manifesto" do Ministério da Cultura alguém o meteu na rede ou é preciso ir provar a feijoada sem direcção ao RDA?

    ResponderEliminar
  2. Quanto ao questionário, para lá de saudar a actualidade marxista e de agradecer as sugestões literárias, gostei particularmente de ter lido pela segunda vez a palavra Phd numa posta e claro, as quatro letras da não menos requintada cócó.

    ResponderEliminar
  3. Renato

    Desculpa não te ter respondido antes, mas quando escreveste pelaq primeira vez sobre esse mítico "manifesto" pensei que era uma chalaça. Suponho agora que não seja, mas muito honestamente não sei do que estás a falar... Ou alguém te induziu em erro ou foi outro Miguel Cardoso.

    Um abraço

    ResponderEliminar
  4. Já encontrei algo. http://spectrum.weblog.com.pt/arquivo/2011/05/acampada_lisboa.html Obrigado na mesma.

    ResponderEliminar