terça-feira, 21 de junho de 2011

Aos que não sabem viver


Já aqui falei de tropeções e da falta de jeito para o mundo. A falta de jeito é como a História: nós podemos esquecer-nos dela, mas ela não se esquece de nós. E como o mundo é, regra geral (apesar do que disse o Marx), sólido – e ainda por cima esquinado e ossudo -, não há chumaço que nos valha, ou substância inebriante suficientemente poderosa para lhe arrendondar devidamente os ângulos. Assim, a minha vida é como a História Universal: um relato escabroso de desacertos e erros de cálculo, engasgos, atropelos, mortandades e muitos vidros estilhaçados. E, no final, um catálogo tão variado de nódoas negras que dava para todos os taxistas agora parados no Aeroporto de Lisboa fazerem testes Rorschach. Já dizia o outro: Les rages, les débauches, la folie, dont je sais tous les élans et les désastres.  E depois há aqueles a quem a coisa corre mesmo mal.  

Um dos melhores tratados sobre o assunto (há, claro, o Le Rire do Bergson) é de Alexandre O'Neill. Ei-lo:

Saber viver é vender a alma ao diabo

        Gosto dos que não sabem viver,
        dos que se esquecem de comer a sopa
((Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s... b... de marchand de nuages?»)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.

Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.

Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»

(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?..)

Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié...

Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?

Não é viver.
É arte, lazeira, briol, poesia pura!
Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme...)
com gerações perdidas.

Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...

Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
... sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...

Dizes tu: - Já começou, porém, a racionalização do trabalho.
Direi eu: - Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!

Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim...


Alexandre O'Neill (in Abandono Vigiado, 1960)

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