sexta-feira, 24 de junho de 2011

Nós: os que com aspirinas esfareladas

Antes de regressar a coisas sérias, uma antevisão de hoje à noite. Ou seja, um dos poemas do meu próximo livro: 


Nós: os que com aspirinas esfareladas
nos bolsos, umas quantas gravações
piratas de urros de amores antigos
em trampolins, com novelos de atrito
em torno de cantos suaves de gravilha
e eco e pedaços e lixa e fita-cola . Nós
dos papéis dispersos e das canções
interrompidas, do cansaço, das mãos
ao alto, das fotocópias encardidas,
das bocas feridas por palavras de línguas
impuras e frases tardias, tão suaves,
caducas. Dos inventários de usos vulgares,
futuros, escorregadios, aguçados por delírios
de extensos quintais muito misturados,
com arames e bichos, algum sentido prático
no que toca a pôr um pé em frente ao outro
e necessidades dispensáveis na presente
conjuntura, e canções desnecessárias e claro
fiéis aos poucos a trajectórias obscuras
como desastres e que não temos de todo idade
para estas coisas, nem velocidade
para deslocar ombros como deve ser,
e já respirámos melhor, e amarinhámos
por um qualquer poema longo acima
quando tínhamos sei lá quinze anos
e levávamos o nosso amor por carcaças
até à melodia agoniada de estremecer ao meio.
Os de longas sombras na voz imatura.
Os que arrastam os pés e se chegam à beira
e ficam à porta mansos em ponto morto
tontos de tanta rua e tão alto tecto estremecido
e da urgência e do som da ganga velha a roçar
e resfolegando vão chegando a velhos e a mudos
e se devoram. O das diligências diz-se inúteis.
Temos caudas assim, vagas como rumores
de mais gente e de imensas agulhas dançantes.
E mil anos que vivêssemos não viveríamos
sem achar graça a repetir palavras enredadas.

Não nos convencem que as antenas nos telhados
Não virão a dar jeito nos episódios seguintes.
Vais ver: não chegarão para tanto alpinismo
e falta de ar rente ao solo e nova distribuição
de pares para a dança nas alturas e de tarefas
minuciosas como desenhar novos mapas,
reinventar o telescópio, trocar por exemplo
de hábitos depressa e outros sobressaltos.
E mesmo assim com tudo isto tememos
a reacção dos avós ao urro, ao baloiço solto,
e sabemos bem onde temos as inocências
mas não lhes mexemos nem por nada,
a par de outros recursos necessários
e intangíveis, nós, que nos juntámos
aos puxadores de alavancas escondidas,
que nos entregámos a paixões dificilmente
por via respiratória, e que de alguma maneira
achamos que seria bom ter patas traseiras
para o primeiro impulso para dentro do atrito
do dia ser mais fácil, e tivemos livres trânsitos
em cabelos alheios de vez em quando.

Nós os que nunca tivemos arte
poética ou outra, verdadeiramente,
nem álbuns de fotografias a sério,
que não chegámos a ver as contrapartidas
prometidas para o desbotar dos rostos
debruçados, adiados anjos, nós, caídos,
fomos preparando versões alternativas
das agulhas curvas de desembaraçar
o som do frio e imitar o som de vespas.
Porque também não nos explicaram
ao certo o que fazer com estes pescoços
tão pouco flexíveis e este andar perro
e estas almas só levemente anestesiadas.

 

***

Vamos às vezes ao fim da tarde à esplanada
Compramos o jornal à sexta-feira
para passar os dedos pelas estreias
e de novo medirmos em mortos
a intensidade actual dos conflitos.

Temos preferências na água com gás
e na adequada temperatura do café.

Quando damos pela vida trememos
como frigoríficos depois de breve hibernação.



***


Afinal não nos recompusemos da derrota.

***

E afinal ainda queremos quase tudo
e usamos, quando podemos,
a primeira pessoa do plural.

Sem comentários:

Enviar um comentário