quinta-feira, 16 de junho de 2011

Bloom

Hoje é feriado na Irlanda. É o bloomsday, que assinala as deambulações por Dublin, a 16 de Junho de 1904, de Leopold Bloom, a personagem de Ulysses, de James Joyce. Segundo consta, Joyce terá escolhido o 16 de Junho para o seu romance por ter sido o dia em que caminhou pela primeira vez com a sua futura companheira. Na verdade, e segundo alegou o próprio, foi o dia em que fizeram amor pela primeira vez. Uma ideia que surge geralmente associada a este feriado é a de que se trata do único no mundo que tem um livro como motivo, à excepção dos que se relacionam com a Bíblia. O que está longe de ser rigoroso, desde logo porque a Bíblia não é um livro. Mas, independentemente disso, quem o afirma talvez não saiba que há um dia em Portugal, o 10 de Junho, que também celebra um livro. É certo que o que é dito é que o que é celebrado é um poeta, mas, de facto, o Camões do 10 de Junho é o eclipse da poesia, é uma fórmula vazia que designa uma abstracção, o Livro (o que não deixará de ser injusto para o Camões, mas isso é outra história).

Não haverá muitos aspectos em que o Ulysses (a não ser que fosse o seu antepassado remoto...) e Os Lusíadas, ou mesmo Joyce e Camões, possam sequer ser postos em comparação. Mas se os relacionarmos com os feriados que os assinalam, talvez não seja descabido sublinhar algumas diferenças com base em critérios comuns. Assim de repente, em três planos:
1. Os evocados - o 10 de Junho comemora os heróis, os melhores de entre os melhores, os que em nome do totem derrotam os monstros mais terríveis e que, ainda que sendo também monstros, são heróis-monstros, engrandecem-se no sangue alheio em nome da vitalidade do espírito; o bloomsday comemora as pessoas comuns, os seus pequenos nadas, o seu quotidiano nem monstruoso nem heróico e, seminalmente, o amor;
2. Os evocadores - o 10 de Junho é comemorado pela interpretação dos chefes, dos dignos sucessores dos heróis-monstros, cuja palavra mobiliza o totem; o bloomsday é comemorado pelos evocados;
3. A forma da evocação - o 10 de Junho é comemorado numa parada militar, com a tribuna, os bravos e o totem; o bloomsday é comemorado nas ruas, em festa, lendo Joyce ao ar livre.

Claro que poderá sempre alguém dizer que uma outra diferença, em 2011, é que enquanto os portugueses enfrentam a crise agarrados às suas raízes (e às enxadas do 'regresso à lavoura' da elegia de Cavaco), os irlandeses perdem um dia a passear e a ler romances. Mas, nesse caso, seria sempre possível responder que no quotidiano que o bloomsday assinala também há raízes. Só que são raízes que nascem e morrem, se reproduzem e se anulam, numa imprevisibilidade irredutível ao totem.

Talvez, então, uma boa hipótese de resposta à crise se possa resumir numa fórmula do género:
quotidiano + Joyce - totem + x = bloom

2 comentários:

  1. Eu lembro-me sempre e este ano deixei passar!


    É que aquele pessoal lá comemora o dia de um personagem da Literatura. Comemoram o escritor, o personagem, o livro.
    Era assim como se por exemplo o 18 de Junho passasse a ser o dia Baltazar e Blimunda.
    Ou se o 13 de Junho fosse o dia da pequena que come chocolates.

    A questão é que 90% dos portugueses não ia saber do que se trata. (pronto, talvez 80%) :S

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