Diga-se, sem reservas nem ironia: seria difícil encontrar um secretário de Estado da Cultura tão perfeitamente identificado com o mundo cultural como Francisco José Viegas. O seu currículo é o do perfeito agente cultural: o indivíduo que tudo converte à linguagem da cultura e a amplifica nas suas saborosas astúcias. Escritor, o seu mundo é o da cultura literária; editor, a sua tarefa é a cultura editorial; diretor de uma revista literária, a cultura foi no entanto o seu verdadeiro sacerdócio; comentador de futebol, ele responde às exigências profanas da cultura futebolística; homem de gostos mundanos, sejam eles a gastronomia regional, os vinhos ou os charutos, ele inscreve-os na ordem dos requintados interesses culturais. Eis alguém que faz a síntese total com que sempre sonharam os espíritos iluminados pela chama da cultura. A sua vocação de agente cultural é um percurso de santidade: é uma capacidade pacificadora que consiste não apenas em conviver com tudo, mas em fazer com que tudo conviva com tudo, sem exclusões nem conflitos. Os ofícios sacerdotais da cultura, tal como FJV sempre os exerceu, são uma esponja que apaga rugosidades e anula asperezas: constroem o consenso, exaltam o conformismo, glorificam uma arte de viver que sabe aderir, em cada momento, à superfície lisa do tempo. A cultura — sabe muito bem este mestre dela, agora secretário de Estado — rege-se pelo princípio da conformidade. Com os seus mecanismos bem afinados, a cultura nada tem de irredutível, de resistente. É uma matéria plástica, pronta a ser moldada, convertida, traficada — tarefas que os mais dotados agentes culturais exercem com zelo. O poder da cultura é mimético e extensivo. Sem reservas nem ironia: quem agora acedeu a secretário de Estado da Cultura sabe, das argúcias culturais, tudo o que há a saber.’
É um texto de se tirar o chapéu. Certeiro no tom e subtil na escolha de palavras. Vou pôr de lado os muitos comentários que tenho sobre o tema. Por agora, queria apenas sublinhar a forma. É uma demonstração de como também a ironia se serve melhor fria, sem malabarismos. Não há ironia mais cáustica do que a do estilo enxuto e martelado de Kafka. Não há nada mais impiedoso. E eu diria que este texto do António Guerreiro é quase kafkiano. No modo como pede para ser tomado à letra, e como faz do sentido literal, “sem reservas nem ironia”, o meio de transporte da ironia mais amarga. For Brutus is an honourable man. Porque Francisco José Viegas é o perfeito agente cultural. No famoso discurso que Shakespeare põe na boca de Marco António, a mestria está na insistência cadenciada com que a honradez de Brutus é defendida, e o seu sentido esvaziado e revertido. No texto do António (sem querer comparar o valor literário da cada um - a sua habitual modéstia insistiria que eu o sublinhasse), o truque está não em desmentir a “perfeição”, mas em torná-la prova de acusação. E assim, sem desmanchar a cara séria, oferece-nos um muito melhor retrato dos perversos efeitos lubrificantes e anestéticos da Cultura do qualquer invectiva com muito bater de pés e espumegar da boca. Em vez de ranger estridentemente os dentes, o António deixa-nos ouvir o ranger das contradições sob o manto pacificador em que nos querem enrolar.
P.S. Fui buscar o texto (que está incompleto, julgo) aqui.
P.S. Fui buscar o texto (que está incompleto, julgo) aqui.
Podem encontrar o texto completo aqui: http://aindanaocomecamos.blogspot.com/2011/06/ao-pe-da-letra-145-antonio-guerreiro.html
ResponderEliminar