quinta-feira, 30 de junho de 2011
Quando ouço falar de Cultura
Diga-se, sem reservas nem ironia: seria difícil encontrar um secretário de Estado da Cultura tão perfeitamente identificado com o mundo cultural como Francisco José Viegas. O seu currículo é o do perfeito agente cultural: o indivíduo que tudo converte à linguagem da cultura e a amplifica nas suas saborosas astúcias. Escritor, o seu mundo é o da cultura literária; editor, a sua tarefa é a cultura editorial; diretor de uma revista literária, a cultura foi no entanto o seu verdadeiro sacerdócio; comentador de futebol, ele responde às exigências profanas da cultura futebolística; homem de gostos mundanos, sejam eles a gastronomia regional, os vinhos ou os charutos, ele inscreve-os na ordem dos requintados interesses culturais. Eis alguém que faz a síntese total com que sempre sonharam os espíritos iluminados pela chama da cultura. A sua vocação de agente cultural é um percurso de santidade: é uma capacidade pacificadora que consiste não apenas em conviver com tudo, mas em fazer com que tudo conviva com tudo, sem exclusões nem conflitos. Os ofícios sacerdotais da cultura, tal como FJV sempre os exerceu, são uma esponja que apaga rugosidades e anula asperezas: constroem o consenso, exaltam o conformismo, glorificam uma arte de viver que sabe aderir, em cada momento, à superfície lisa do tempo. A cultura — sabe muito bem este mestre dela, agora secretário de Estado — rege-se pelo princípio da conformidade. Com os seus mecanismos bem afinados, a cultura nada tem de irredutível, de resistente. É uma matéria plástica, pronta a ser moldada, convertida, traficada — tarefas que os mais dotados agentes culturais exercem com zelo. O poder da cultura é mimético e extensivo. Sem reservas nem ironia: quem agora acedeu a secretário de Estado da Cultura sabe, das argúcias culturais, tudo o que há a saber.’
P.S. Fui buscar o texto (que está incompleto, julgo) aqui.
quarta-feira, 29 de junho de 2011
Elas guardam sanitas e fazem renda em pequenos cubículos sem janela.
4. SERVIÇOS
Maria Velho da Costa, "Revolução e Mulheres"
terça-feira, 28 de junho de 2011
«So piss off Satan and don't take me for dumber than I look»
Se mexes aí, corto-ta
5. TRANSMISSÃO DE IDEOLOGIA
Coisas que elas dizem:
— Se mexes aí, corto-ta.
— Isso não são coisas de menina.
— O meu homem não quer.
— Estuda, que se tiveres um empregozinho sempre é uma ajuda.
— A mulher quer-se é em casa.
— Isto já vai do destino de cada um.
— Deus não quiz.
— Mas o senhor padre disse-me que assim não.
— Dá um beijinho à senhora que é tão boazinha para a gente.
— Você sabe que eu não sou dessas.
— Estás a dar cabo do teu futuro com uns e com outros.
— Deixa-te disso, o que é preciso é sossego e paz de espírito.
— Comprei uns jeans bestiais, pá.
— Sempre dá para uma televisão daquelas novas.
— Cada um no seu lugar.
— Julgas que ele depois casa contigo?
— Sempre há-de haver pobres e ricos.
— Se tu gostasses de mim não andavas com aquela cabra a gastar o nosso. — Põe o comer ao teu irmão que está a fazer os trabalhos.
— Sempre é homem.
Maria Velho da Costa "Revolução e Mulheres"
É mas é uma comichão no corpo todo
“O repúdio do marasmo cultural que nos rodeia pressupõe a imersão no mesmo, a ponto de o sentirmos a formigar nas pontas dos dedos, mas simultaneamente a força, gerada por essa mesma imersão, necessária para o recusarmos.” T. W. Adorno
B Chachada
"A provocação de Fachada é uma outra coisa. É um gesto estético integrada num contexto específico, uma provocação para agitar, o retrato de família que B Fachada, que "não canta em português", fez deste país, ano 2011. Com as pontas soltas da ambiguidade que é uma das suas imagens de marca."
Depois de tantas loas, fiz o download da coisa e dediquei vinte penosos minutos a um artista - no sentido que se usa na minha terra - que já tinha descartado há muito tempo, ainda antes dele ser gemedor de baladas. O resumo da minha experiência é que a pose e o tom continuam a não disfarçar a voz de jumento afónico e nem o mérito deste verso ""sem a pátria para cantar, sobra o mundo para viver" salva mais este bocado de inépcia musical.
Como me lembro do tipo a perorar contra a Sophia aqui fica um pedaço de literatura com dedicatória:
"Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra"
segunda-feira, 27 de junho de 2011
I Won't Work
In 1905, at the peak of the struggle, while the Soviets were coming into being in Russia, in the USA the International Workers of the World (IWW) was formed; the most radical proletarian organisation ever in the USA, the only revolutionary class organisation before the rise of the Afro-American movement. Today there is much to be said and learned from the IWW. Although many of its militants were anarchists and anarcho-syndicalists who had migrated to the US from Eastern and Western Europe, the IWW cannot merely be written off as the American equivalent of French anarcho-syndicalism.What was there in the IWW that is so extraordinarily modern? Although it was based on an old class nucleus, the Western Federation of Miners, the merit of the IWW was that it attempted to organise the American proletariat in terms of its intrinsic characteristics. It was primarily an immigrant proletariat, and therefore a mixture of ethnic groups which could only be organised in a certain way. Secondly, it was a mobile proletariat, a fact which very much militated against identification with any particular job or skill, and which also militated against workers developing ties to individual factories (even if only to take them over).
The IWW made the notion of the social factory a concrete reality, and it built on the extraordinary level of communication and coordination possible within the struggles of a mobile workforce. The IWW succeeded in creating an absolutely original type of agitator: not the mole digging for decades within the single factory or proletarian neighbourhood, but the type of agitator who swims within the stream of proletarian struggles, who moves from one end to the other of the enormous American continent and who rides the seismic wave of the struggle, overcoming national boundaries and sailing the oceans before organising conventions to found sister organisations. The Wobblies' concern with transportation workers and longshoremen, their constant determination to strike at capital as an international market, their intuitive understanding of the mobile proletariat - employed today, unemployed tomorrow - as a virus of social insubordination, as the agent of the "social wildcat": all these things make the IWW a class organisation which anticipated present-day forms of struggle, and was completely independent of the tradition of the Second and the Third Internationals. The IWW is the direct link from Marx's First International to the post-communist era.
AAVV
O resto do Domingo não ofereceu nada de excepcional, a não ser as refeições que, embora não pudessem ser mais fartas do que de costume, se distinguiam pelo menos pelo requinte dos pratos. No menu do almoço figurava um chaud-froid de galinhas, guarnecido de caranguejos e meias cerejas; os gelados vieram acompanhados de bolos, em cestinhos feitos de fio de açúcar. E por fim, fatias de ananás fresco. À noite, depois de ter tomado a sua cerveja, Hans Castorp sentiu os membros ainda mais trémulos e pesados do que nos dias anteriores e às nove horas disse «Boa noite» ao primo, cobriu-se com o acolchoado de penas até ao queixo e adormeceu, como fulminado.
Cagões? You ain't seen nothin' yet!
1 – Existe um livro que lerias e relerias várias vezes?
sábado, 25 de junho de 2011
Desculpem a maçada, mas uma alusão a Cassavetes não podia ficar sem Fugazi
I was sitting tight so quiet quiet
In the dark till the lights came up my heart
Beating like a riot riot
Hollywood are you sitting on a sign
For someone to come on bust a genre
You poor city of shame
Ask me what you're needing
I'll sell you his name
cos he was the one to send it with truth
That's something from someone
Do fosco e do estremecido: exercícios de aproximação ao povo
sexta-feira, 24 de junho de 2011
Isto está entregue à bicharada
P.S. Não ponho isto na etiqueta "Poesia", porque também já era fazer batota.
Nós: os que com aspirinas esfareladas
Nós: os que com aspirinas esfareladasnos bolsos, umas quantas gravaçõespiratas de urros de amores antigosem trampolins, com novelos de atritoem torno de cantos suaves de gravilhae eco e pedaços e lixa e fita-cola . Nósdos papéis dispersos e das cançõesinterrompidas, do cansaço, das mãosao alto, das fotocópias encardidas,das bocas feridas por palavras de línguasimpuras e frases tardias, tão suaves,caducas. Dos inventários de usos vulgares,futuros, escorregadios, aguçados por delíriosde extensos quintais muito misturados,com arames e bichos, algum sentido práticono que toca a pôr um pé em frente ao outroe necessidades dispensáveis na presenteconjuntura, e canções desnecessárias e clarofiéis aos poucos a trajectórias obscuras
Elas não dormem a pensar em pequenas cortinas com folhos
6. PRODUÇÃO DE DESEJO
Elas olham para o espelho muito tempo. Elas choram. Elas suspiram por um rapaz aloirado, por duas travessas para o cabelo cravejadas de pedrinhas, um anel com pérola. Elam limpam com algodão húmido as dobras da vagina da menina pensando, coitadinha. Elas escondem os panos sujos de sangue carregadas de uma grande tristeza sem razão. Elas sonham três noites a fio com um homem que só viram de relance à porta do café. Elas trazem no saco das compras uma pequena caixa de plástico que serve para pintar a borda dos olhos de azul. Elas inventam histórias de comadres como quem aventura. Elas compram às escondidas cadernos de romances em fotografias. Elas namoram muito. Elas namoram pouco. Elas não dormem a pensar em pequenas cortinas com folhos. Elas arrancam os primeiros cabelos brancos com uma pinça comprada na drogaria. Elas gritam a despropósito e agarram-se aos filhos acabados de sovar. Elas andam na vida sem a mãe saber, por mais três vestidos e um par de botas. Elas pagam a letra da moto ao que lhes bate. Elas não falam dessas coisas. Elas chamam de noite nomes que não vêm. Elas ficam absortas com a mola da roupa entre os dentes a olhar o gato sentado no telhado entre as sardinheiras. Elas queriam outra coisa.
Maria Velho da Costa, "Revolução e Mulheres"
Indignações
Apresentação por Costas Douzinas
Costas Lapavitsas (SOAS)Carlos Frade (Salford University)Illan Rua Wall (Oxford Brookes)Stathis Kouvelakis (King’s College London)Alex Colas (Birkbeck)Costas Douzinas (Birkbeck)
quinta-feira, 23 de junho de 2011
Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões
Maria Velho da Costa, "Revolução e mulheres"7. REVOLUÇÃO
Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Eles foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram faltar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro urna cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.
Continua aqui
Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes
Arte, Política, Mercadoria
Em meados da primeira década do milénio, os muros de Londres começam a ser preenchidos por estranhos desenhos. Apontando armas às mais diversas excreções do sistema económica capitalista, do controlo social realizado por bófias e câmaras da videovigilância, à relação directa entre fome, miséria e o poder económico de empresas multinacionais, o seu autor nunca chegou a revelar a sua identidade, utilizando a simples designação de Banksy. Mais tarde, o seu nome será notabilizado pelas suas intervenções em museus, onde deposita os seus quadros entre as peças das maiores figuras da história de arte mundial, ou no muro que divide os territórios palestinianos, em denúncia da ocupação zionista. Um dia, o artista de rua recebe um mail. Neste, um jovem pede-lhe que deixe de pintar no seu bairro, pois a sua arte tende a atrair a presença de jovens criadores, oriundos de classes privilegiadas, e com estes, o aumento das rendas.
Partindo do filme «Banksy-Exit Through the Gift Shop», o RDA69 propõe debater o lugar da arte e da cultura na sociedade contemporânea. Estará a arte de rua, ou qualquer outra forma de crítica, condenada à forma de mercadoria, limitando-se a alimentar museus e livrarias? Ou será possível, mesmo nas piores condições, minar a coisa por dentro, subvertendo os usos dos objectos e virando-os contra o próprio criador.
17.00. filme
19.00. conversa com Miguel Castro Caldas (escritor), Gonçalo Pena (artista plástico) e João Cachopo (investigador)
20.30. janta
Que fazer?
O Nuno Teles, o Luís Bernardo e a Mariana Avelãs expõem aqui, de uma forma bastante clara, uma possível resposta política à tentativa de imposição do pagamento da dívida. Uma questão, no entanto, se levanta. O que fazer entretanto, tendo em conta que a possibilidade do actual governo vir a aceitar uma auditoria cidadã à dívida parece ser, no mínimo, remota?
Se num restaurante me apresentarem uma conta de 50 euros por um hambúrguer, não me limitarei a pedir a factura detalhada, mas igualmente a não pagar a conta enquanto tal não me for disponibilizada. É neste ponto que o texto deveria ser mais claro. Se a auditoria representa, por si só, um sinal de desconfiança com a dívida a ser cobrada, será então razoável pagar aquilo que, segundo os autores, compreende montantes legítimos, ilegítimos, ilegais, odiosos e insustentáveis?
Deste ponto de vista, não só não consigo ver quaisquer incompatibilidades entre a defesa de uma auditoria à dívida e o não pagamento da mesma, como considero que uma não tem qualquer sentido sem a outra. Pois, se por um lado, a defesa do não pagamento necessita de ser fundamentada por dados claros e precisos que, a conhecerem-se, contribuirão certamente para colocar ainda mais a nu o funcionamento do sistema capitalista, por outro, a reivindicação de uma auditoria, por si só, parece assinalar tanto uma debilidade, sob a bandeira do politicamente correcto e exequível, como uma enorme contradição: uma vez que, em termos concretos, a atitude perante a ilegitimidade acaba por ser exactamente idêntica à postura de crédulo.
Sell! Sell! Buy! Buy!
quarta-feira, 22 de junho de 2011
A coragem é o melhor afrodisíaco
Ela trincou o rissol
e não olhou para o interior.
Fiquei a gostar dela por causa disso.
O paradoxo
Nós também te seguimos Luís.Ressalto apenas dois pontos: a felicidade do povo é possível através da cooperação entre os eleitos municipais socialistas e o capital monopolista da distribuição; a ocupação do espaço público fez-se em torno de um homem que simboliza a internacionalização de um modo de estar português, a síntese possível entre os valores do Interior e o cosmopolitismo.O fim de semana da capital, simétrico ao das cidades espanholas, mostra que a direita, depois de conquistar o poder, encheu as ruas e com a ajuda dos santos populares há-de resolver o paradoxo entre a perda de independência nacional e a persistência do patriotismo.
Deve ser uma coisa extremamente séria
E virando-se para ele:– Mas afinal o que é que tu fazes exactamente? Ainda não percebi.– Ocupo-me da reificação, respondeu Gilles.– É uma coisa importante, acrescentei eu.– Sim, disse ele.– Estou a ver, observou Charlotte admirativamente. Deve ser uma coisa extremamente séria, com livros grossos e muitos papéis em cima de uma grande mesa.– Não, respondeu Gilles, passeio, acima de tudo, passeio.
terça-feira, 21 de junho de 2011
Aos que não sabem viver
Sai uma bruta dose de Ingenuidade para a mesa do canto
A improvisação dos incompetentes
Onde se fala de futebol e de Poe, a propósito de uma teoria científica do sujeito
Manuel Sérgio, A inteligência competitiva e o espectáculo desportivoNo nosso futebol (meu poiso durante 28 anos, através do dirigismo no C.F. “Os Belenenses”) há dois campos bem estremados em liça: o dos que se fundamentam na sua vida de ex-profissionais e o dos que, teoricamente tão-só, falam de futebol, até à exaustão – escasseando, tanto num lado como noutro, a informação e a cultura. Trata-se de uma lacuna tão evidente... que ninguém vê! Ocorre-me o conto de Poe, “The Purloined Letter”.A polícia parisiense procura, em vão, na casa de um suspeito, uma carta politicamente comprometedora. A polícia investiga os pontos mais escondidos e... nada! Em desespero de causa, o chefe da polícia solicitou a colaboração de Dupin, precursor de todos os detectives da literatura policial, que rapidamente encontrou a carta procurada. De facto, a carta não se encontrava em nenhum esconderijo de difícil acesso, mas à vista de toda a gente. E nisto consistia a astúcia: o seu ocultamento era a sua fácil visibilidade. Acontece o mesmo com o nosso futebol. É tão evidente a incultura e a desinformação, que o fragilizam, que se torna difícil descobri-las e entendê-las.Daí que eu ouse propor a criação de um departamento de inteligência competitiva (DIC), nos clubes de futebol profissional, na selecção nacional de futebol, liderado por um doutor em Desporto e composto ainda por um filósofo, um psicólogo, um fisiologista (ou um médico) e um treinador de futebol. Com que objectivos? A criação de uma nova racionalidade, onde ciência e filosofia sejam complementares e portanto onde conhecer seja principalmente relacionar, contextualizar, organizar. E que ciência? Indubitavelmente, uma ciência hermenêutico-humana, dado que o futebol é menos uma actividade física do que uma actividade humana. Uma teoria científica do desporto é sempre uma teoria científica do sujeito.
segunda-feira, 20 de junho de 2011
Raios partam Lenine
Poucas discussões podem ser mais entediantes do que aquela em que dois istas discutem qual dos dois é mais verdadeiramente ista. São discussões certamente muito passionais mas que são chatas até mais não. Sei-o bem porque já perdi algumas noites desta vidinha a tentar provar, sentado nos bancos de pedra plantados à frente do Califa, que o meu benfiquismo era mais ardente do que o de um dado interlocutor. E posso garantir que ainda assim no dia seguinte o Porto se manteve no primeiro lugar do campeonato. Mas eis senão quando chega à nossa já farta mesa uma discussão que tem tudo para ser ainda mais absurda do que aquelas. É o que sucede quando um ista acusa alguém que não é do mesmo ismo de não ser do mesmo ismo (sim, isto mesmo). Neste post a Raquel Varela diz que eu e o seu colega de blogue Carlos Vidal destratamos Lenine. Ora sucede que eu estou a mais nesta história. Podem a Raquel e Carlos Vidal discutir entre si, com inteligência, fulgor e paciência, quem trata melhor e quem destrata pior o pobre ou o rico do Lenine. Será um debate que acompanharei, na medida das minhas possibilidades, mas um debate que não me faz descer da bancada lateral ao relvado. Posto isto (e tentando não mandar por água baixo tudo o que anteriormente escrevi), devo dizer que já me faz alguma comichão não conseguir explicar à Raquel Varela a minha posição em relação ao tal do Lenine. A Raquel diz que eu acuso “Lenine de ter semeado estalinismo com a concepção de Partido Revolucionário”, mas não encontro em nada do que alguma vez tenha escrito o que quer que seja que induza tal leitura. Essa tese, que em boa medida é a de, entre outros, historiadores como François Furet, incorre naquilo a que poderíamos chamar a teoria da escalada; um gajo começa por dizer que ganha pouco, no dia seguinte faz uma greve, no dia seguinte faz ainda mais um dia de greve, na semana seguinte vai pregar a greve para outras freguesias, passado um mês faz uma revolução, meio ano depois está a mandar tudo para o gulag o que mexe contra o sabor da sua corrente. Eu não subscrevo a teoria da escalada. Isto não significa, porém, que eu tenha alguma reserva em colocar em cima da mesa de discussão a seguinte questão: como foi possível que a revolução do proletariado se tornasse ditadura sobre o proletariado? Colocar esta questão não significa dizer que qualquer revolução termina em ditadura. Ou sequer que eu entenda que se deve deixar de tentar ser revolucionário para não se correr o risco de acabar em ditador. Colocar esta questão significa dizer sim às revoluções e não às ditaduras. O meu problema com o leninismo enquanto estratégia que advoga a existência de um partido vanguardista não é simplesmente saber se o leninismo possibilita que se chegue a um Estado ditatorial. O meu problema é, fundamentalmente, que tal concepção afirma a necessidade de existir quem dirige e quem seja dirigido. Neste sentido preocupa-me que a concepção vanguardista de partido seja tão propícia à ditadura como conforme à democracia representativa. Tanto me preocupa que Lenine seja compatível com Estaline como com Wilson. Os extremos podem, de facto, tocar-se e no século XX tocaram-se mais do que uma vez. Isto poderia ser subscrito tanto pelo Nolte como pelo José Manuel Fernandes. Mas os extremos tocaram-se frequentemente pelo centro e não pelas costas. É esse centro, que é o coração da Razão de Estado (ou de Partido), que interessa derrotarmos.