Recentemente alguém classificou o ténis como um desporto de meninas. E fê-lo socorrendo-se de uma sumidade literária, David Foster Wallace, e de um indivíduo que assina com o nome de maradona. Além da análise estar cheia de preconceitos e de indiciar um desconhecimento empírico da modalidade, o postador atribui a David Foster Wallace aquilo que ele nunca disse. Dizer que David Foster Wallace se esforça por provar que o ténis é um desporto de meninas, que desconstruindo quer dizer o «ténis não é um desporto para machos», é não ter lido, nem treslido, uma linha dos três textos que David Foster Wallace publicou sobre o ténis*. Das três uma, ou o postador está de má-fé, ou quer-se armar ao pingarelho, citando uma sumidade literária, mesmo quando o exercício de name-dropping lhe sai ao lado, ou então está a fazer batota.
Quem for ler os textos constatará a enorme familiaridade de David Foster Wallace com o ténis, que inclusivamente alimenta o sentido utópico de uma modalidade ambígua. Sobretudo quando refere a beleza cinética de uma partida de ténis, ou quando compara as pancadas de Federer, como a sua esquerda descruzada a uma mão feita em topspin, a uma experiência religiosa! Curiosamente, esta interpretação aproxima-se da realizada por João Bénard da Costa ao filme «Ordet», do Dreyer, quando comparou a ressurreição do Johannes na fita a um milagre religioso. Coisas que só os vencidos do catolicismo conseguiam vislumbrar...
Numa toada mais populista, David Foster Wallace refere ainda que quem nunca jogou ténis (e Wallace jogou ténis de alta-competição) jamais compreenderá o que é ter um bom jogo de pés, planear jogadas de antecipação (que os mais ousados costuma chamar xadrez em movimento), nem a graça, o toque, a coordenação, a subtileza, o controle e a inteligência que o ténis requer. Sem querer entrar no capítulo dos essencialismos, talvez o ténis seja mesmo para meninas, ou pelo menos para gente menos embrutecida. Para os que leram David Foster Wallace mais apressadamente, ele sumariza: «I submit that tennis is the most beautiful sport there is and also the most demanding. It requires body control, hand-eye coordination, quickness, flat-out speed, endurance, and that weird mix of caution and abandon we call courage».
A catalogação do ténis como um desporto de meninas tem ainda um inconsciente político cujo sentido não é difícil de descortinar. Essa classificação está intimamente ligada à naturalização de um princípio caro ao sistema jurídico português, que é a coutada do macho latino. No mundo do desporto esse princípio é reiterado em várias piadolas (como «o futebol não é para meninos», «isto é para homens da barba rija», etc.), que reproduzem quotidianamente um potpourri de homofobia, misoginia, machismo e marialvismo militante. Um tópico que os mais voluntaristas desejariam que fosse um exclusivo da família Câmara Pereira, com as suas elegias ao cavalo ruço, mas não é.
Longe de ser uma modalidade feminista, o ténis amador desafia a ideia estabelecida de que o jogo é uma coutada dos ricos, brancos e homens. Por exemplo, os treinos de ténis são mistos desde tenra idade, algo que não acontece na maioria dos desportos, onde existe uma rígida separação entre os sexos, ou onde a competição feminina nem sequer chega a existir, como no caso do ciclismo. A não ser que façam parte da modalidade aquelas moças que distribuem flores e beijinhos, ora dá cá um e a seguir dá outro, ao vencedor de cada etapa.
Isto para dizer aos contadores de histórias sobre o ciclismo que essa modalidade tem outras histórias para contar. Uma delas foi contada por Roland Barthes, em «A volta à França como epopeia», que é um bom texto para começar a desmitologizar as leituras mais indulgentes que habitualmente se reproduzem a propósito desse desporto.
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