Uma das primeiras e mais notórias vítimas da crise tem sido a capacidade de nos surpreendemos com as coisas que se dizem.
Apenas uma semana antes da Páscoa, por exemplo, se previa sem qualquer risco de equívoco os comentários de abertura dos telejornais e as manchetes de primeira página que se preparavam para o fim de semana. Fazia sol e calor (mais do que agora, diga-se), avizinhava-se um período de férias escolares, conjugavam-se vários feriados e jornalista algum se privaria do prazer de assinalar que "apesar da difícil situação económica do país", as praias se encontravam cheias. Tão previsíveis como um conjunto de relógios parados, a todos parecia surpreender o facto deste bom povo não ter abdicado do areal ócio para ficar, sei lá, a fazer horas extraordinárias gratuitas a bem da competitividade das "nossas exportações" ou a retocar o seu curriculum para se lançar à conquista do mercado de trabalho. Para os impenitentes optimistas, o consolo possível teria sido a entusiástica (e patriótica) adesão dos portugueses ao principal recurso natural do país, esse grande mar outrora navegado pelos egrégios avós e disponível agora, sobretudo, para mergulhos e castelos na areia.
Evidentemente que "a difícil situação que o país atravessa" é um dispositivo altamente especializado num restrito conjunto de funções (um pouco como acontece com o peso da construção civil no PIB) e que se revela inútil para outros esforços. Ainda hoje li no Público que os noruegueses não acham mal o escrutínio permanente dos salários e rendimentos dos seus principais governantes e homens de negócios, hábito que apenas se torna mesquinho e terceiro-mundista abaixo do paralelo 40º mas que é revelador de uma inexcedível cultura cívica nas paragens setentrionais, onde até pode ser considerado um elemento de coesão social. O interesse nacional serve para justificar muita coisa, mas de forma alguma o levantamento do sigilo bancário ou impostos extraordinários sobre grandes fortunas ou transparência ao nível dos concursos públicos ou severidade no combate à corrupção ou eliminação de despesas protocolares. Aliás, só pessoas abertamente contrárias ao interesse nacional falam dessas coisas, com o óbvio intuito de desviar as atenções dos temas realmente decisivos, como as eleições internas do PS ou a adesão de Rui Tavares aos Verdes.
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