Ou: do fogo cruzado
entre “os profissionais da desordem e da provocação” e o
“profissionionalismo”, “serenidade”, “firmeza” e
“inevitabilidade” da intervenção policial. E mais umas botas.
As
forças «da lei e da ordem» e os media aplicam muitas vezes a
fórmula “violência gratuita” aos actos de uma série de
«elementos perigosos», como quem faz soar um alarme. Alguns comentadores, mesmo em solidariedade com os "indignados", e com muitas reticências, ecoam variações desta mesma cantiga, ao mesmo tempo que a arremessam à Polícia e ao aparelho de Estado, para sinalizar
epidódios de abuso no seu regular uso da força, que geralmente têm
como legítimo. Os movimentos sociais institucionais, organizados e
ordeiros, usam-na para designar quer o esquerdismo irresponsável de
uns quer o fascismo insidioso dos outros – embora no caso de ontem
impere o silêncio sobre a investida da Polícia. Em todos estes
casos, assinala-se um desvio em relação a uma norma de bom senso, a
quebra de um contrato implícito. Mas é mais do que isso: a ideia de
gratuitidade aponta uma perda de sentido. É
gratuito o gesto que se desviou do que tem ou
faz sentido. É,
desfiando um pouco esta ideia, aquilo que não tem causa aparente,
que não decorre das circunstâncias, que é desnecessário, inútil,
ocioso, supérfluo. O que é injustificado, e até injustificável.
Significa isto que a acusação de “violência gratuita”, mais do
que apontar uma mero excesso ou falha de legitimidade, é um atestado
de exclusão do razoável – um terreno certamente vago, mas
defendido com unhas e dentes. E, não raro, cassetetes. Importa,
pois, examinar a distribuição de competências não só no que toca
o exercício legítimo da violência, mas na definição do espaço
de uma comunidade política, fora do qual se perde a razão.
Mas, acima de tudo, não nos devemos deixar iludir pela aparente
simetria, excesso contra excesso, dos dois lados da barricada. O jogo
de espelhos entre ordem e desordem esconde grandes diferenças no
significado, peso e efeito do termo «violência gratuita»,
dependendo de onde é enunciado. Enquanto a gratuitidade da violência
policial parece ser vista como um desajuste em relação a uma
posição tida como legítima, a mesma fórmula aplicada aos
manifestantes designa a própria posição que eles ocupam: não o
desvio de uma posição, mas a sua posição enquanto desvio. Dito de
outro modo, nos confrontos, tanto individuais como colectivos, entre
a Polícia e cidadãos, reconhece-se por vezes um excesso de força
por parte da Polícia, mas qualquer uso da força por parte de um
cidadão é, em si mesmo, um excesso.
Embora
os acontecimentos de ontem nos puxem para uma reflexão mais concreta
sobre o papel da violência, tanto no seio dos movimentos de
contestação como por parte do Estado, ganhamos em colocar a
questão da gratuitidade com maior latitude, para lá da esfera dos
tiros, bombas e murros nas trombas. Quando saímos desta zona, o tom
de condenação esbate-se, e ao gratuito é dado um lugar à mesa da
civilização. A esse lugar é habitualmente dado o nome de estético,
onde se goza de uma
margem de liberdade em relação ao jugo do necessário, às regras
da conveniência, ou aos cálculos de custo/benefício que governam
outras esferas. Mas esta ligeireza do gratuito é mantida dentro de
uma reserva protegida, os seus efeitos contidos e, de preferência,
reencaminhados para os domínios menos vagos do trabalho e do valor.
Ou seja, a liberdade do gratuito deve ser um mero intervalo na
injunção de produtividade, quando não é produtividade por outros
meios. Isto porque a aparente inocência do gratuito contém em si
mesma uma certa violência, que irrompe enquanto tal quando sai deste
lugar que lhe foi atribuído e se espalha. Nesse caso, parecem
pressentir os guardiões do estado das coisas, passa a ameaça ao
círculo mágico de produção e reprodução das relações sociais
existentes. Já lá vamos.
O
problema da “gratuitidade” toca
num dos fundamentos da ordem política, o monopólio da violência
legítima por parte do Estado. Acontece – e não por acaso – que,
no contexto da crise e austeridade, se torna mais difícil aos
agentes da violência tida como legítima apontar com naturalidade e
força de evidência para a sociedade do “bem estar” que lhes
competeria defender de perturbações. Perante as cada vez mais
óbvias linhas de fractura no tecido social, multiplicam-se também
os pontos de antagonismo que precisam de ser defendidos pela força.
À medida que o Estado recua ou demite-se das suas funções sociais,
o terreno polariza-se, e a fronteira entre a Polícia e os cidadãos
ganha maior ferocidade. Pense-se não só na carga policial
de ontem, mas na cada vez maior banalização do “estado de
excepção”, ou da “tolerância zero”, nas intervenções de
legalidade dúbia, no número desproporcionado
de polícias chamado a
intervir em manifestações, na presença habitual do Corpo de
Intervenção, ou na destruição de bens na sequência do
desalojamento de casas ocupadas.Tanta gratuitidade junta, é de
desconfiar.
Todos esses gestos, aparentemente desproporcionados,
serão demonstrações de força, e nessa medida, ou seja, nos seus
propósitos dissuasores, estarão longe do supérfluo que o
termo “gratuito” encerra (fazendo lembrar as palavras de Nixon,
que avisava os inimigos dos Estados Unidos que os americanos eram
“loucos e imprevisíveis, com uma força destruidora extraordinária
nas nossas mãos”).
Se a violência, por
oposição à violência gratuita, é de tal modo constitutiva do que
nos rodeia que ganha foros de naturalidade, de tal modo presente que
se torna imperceptível enquanto violência, a gratuitidade assinala
aqui a incapacidade de manter as pessoas no seu lugar por via
mecanismos de controlo mais subtis e subterrâneos. Iluminam-se os
vasos comunicantes entre os cordões policiais e o entrançado de
exploração e dominação que compõe a violência sistémica do
capitalismo – também ele cada vez mais visível.
A gratuitidade
da violência policial assinala o quão difícil é, neste contexto,
manter uma noção da “justa medida” - a fronteira entre a norma
e o excesso, entre o uso legítimo e gratuito da violência, está
mais difusa. Em suma, assinala uma quebra
na normalidade: extremando um pouco o argumento, os dipositivos da
ordem não perderam o controlo num momento de exaltação passageira,
antes perderam a capacidade de manter o controlo senão pela
violência. Mas há ainda um outro nível, porventura mais
importante, que é o facto de, como é próprio em tempos de crise, e
quebradas que foram as promessas inscritas no contrato social, se
começar a vislumbrar a gratuitidade
do próprio sistema, no
sentido em que este parece ter-se esvaziado de conteúdos. Cada vez
mais parece não ter um fim para lá da sua própria sobrevivência.
E é cada vez mais difícil apontar para a brutalidade como algo
exterior ao sistema.
É
preciso perceber bem a dificuldade em manter as pessoas no seu lugar,
trabalho que pertence ao sistema como um todo, e só em última
instância à polícia.
A crise não é apenas financeria, mas de
reprodução social. Isto significa que são cada vez mais os que se
desencontram com o lugar que supostamente deviam ocupar: o de
trabalhadores, úteis, ou o de cidadãos, responsáveis. Quer
voluntariamente quer empurrados, há muitos que não servem nem
rendem: são supérfluos, gratuitos. É neste quadro que devemos
entender o modo como a acusação de gratuitidade é lançada ao
outro lado da barricada, a tudo aquilo que é frequentemente
apelidado de puro vandalismo, de exaltação “sem conteúdo” (a
violência no seu “estado de
natureza”, para usar um termo hobbesiano). A expressão vai de par
com a criminalização do protesto, que é o mesmo que dizer, com o
seu afastamento do terreno político. Mas acontece que é cada vez
mais difícil, por um lado, catalogar e identificar os “arruaceiros”,
isolando-os do “cidadão comum” e, por outro, colar a ideia de
violência ao tipo de acções de que as ocupações são o modelo -
e que, por sinal, nem sequer encaixam na ideia de protesto. O
espectro de hostes desordeiras, capazes de transformar a cidade num
palco de “violência gratuita” mantém-se. E isto porque paira
aqui um espectro mais lato, ou uma gratuitidade mais vasta: a
ausência de programa, a não ocupação de um lugar reconhecido na
topografia política corrente. Em suma, aquilo que escapa à
representação e às mediações institucionais.
Ao
mesmo tempo que os problemas da luta se confundem com os problemas
muito materiais “da vida”, que nada têm de gratuito – o que
comer, onde ficar, como partilhar, como exercer a igualdade –
devemos, num certo sentido, aceitar a acusação de 'gratuitidade'.
Que caminho se abre? Não temos um trilho ou um enredo que possa
transportar um “Nós” estável de A a B, de projectar um curso,
de colonizar o futuro. Mas na gratuitidade algo se produz, algo se
organiza, algo constrói. Não é que não conheçamos a
não-gratuitidade – a violência disciplinada do trabalho, a rosca
moída da cidadania responsável, a negociação paciente com as
instituições. Conhecemo-la bem demais: foi-nos de tal modo
martelada que nos tornámos brutos, insensíveis aos seus
chamamentos e à sua ideia de progresso. Quando podemos, sempre que
podemos, tomamos distância e distraímo-nos dos seus propósitos.
Podemos até dizer que, para além de uma esterilidade, caímos
numa forma imbecilidade, se
o imbecil é o que não percebe. Dispersámo-nos,
e desperdiçámos os nossos talentos. Esquecemo-nos até, pelo
caminho, de nos manifestarmos como deve ser. E assim pusemos,
aparentemente, o pé fora da arena política. Será isto uma
viragem? É difícil de saber: ocupamos por agora um espaço definido
enquanto gratuito, enquanto esperamos que o termo perca o seu
sentido, ou pelo menos a sua força coerciva. Não quer dizer que é
apenas uma “roda livre”, ou uma máquina de movimento perpétuo.
Não sabemos o que esta máquina produz. Não produz cidadãos nem
trabalhadores.