quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Da violência gratuita: um excurso.


Ou: do fogo cruzado entre “os profissionais da desordem e da provocação” e o “profissionionalismo”, “serenidade”, “firmeza” e “inevitabilidade” da intervenção policial. E mais umas botas.
 



As forças «da lei e da ordem» e os media aplicam muitas vezes a fórmula “violência gratuita” aos actos de uma série de «elementos perigosos», como quem faz soar um alarme. Alguns comentadores, mesmo em solidariedade com os "indignados", e com muitas reticências, ecoam variações desta mesma cantiga, ao mesmo tempo que a arremessam à Polícia e ao aparelho de Estado, para sinalizar epidódios de abuso no seu regular uso da força, que geralmente têm como legítimo. Os movimentos sociais institucionais, organizados e ordeiros, usam-na para designar quer o esquerdismo irresponsável de uns quer o fascismo insidioso dos outros – embora no caso de ontem impere o silêncio sobre a investida da Polícia. Em todos estes casos, assinala-se um desvio em relação a uma norma de bom senso, a quebra de um contrato implícito. Mas é mais do que isso: a ideia de gratuitidade aponta uma perda de sentido. É gratuito o gesto que se desviou do que tem ou faz sentido. É, desfiando um pouco esta ideia, aquilo que não tem causa aparente, que não decorre das circunstâncias, que é desnecessário, inútil, ocioso, supérfluo. O que é injustificado, e até injustificável. Significa isto que a acusação de “violência gratuita”, mais do que apontar uma mero excesso ou falha de legitimidade, é um atestado de exclusão do razoável – um terreno certamente vago, mas defendido com unhas e dentes. E, não raro, cassetetes. Importa, pois, examinar a distribuição de competências não só no que toca o exercício legítimo da violência, mas na definição do espaço de uma comunidade política, fora do qual se perde a razão.

Mas, acima de tudo, não nos devemos deixar iludir pela aparente simetria, excesso contra excesso, dos dois lados da barricada. O jogo de espelhos entre ordem e desordem esconde grandes diferenças no significado, peso e efeito do termo «violência gratuita», dependendo de onde é enunciado. Enquanto a gratuitidade da violência policial parece ser vista como um desajuste em relação a uma posição tida como legítima, a mesma fórmula aplicada aos manifestantes designa a própria posição que eles ocupam: não o desvio de uma posição, mas a sua posição enquanto desvio. Dito de outro modo, nos confrontos, tanto individuais como colectivos, entre a Polícia e cidadãos, reconhece-se por vezes um excesso de força por parte da Polícia, mas qualquer uso da força por parte de um cidadão é, em si mesmo, um excesso.

Embora os acontecimentos de ontem nos puxem para uma reflexão mais concreta sobre o papel da violência, tanto no seio dos movimentos de contestação como por parte do Estado, ganhamos em colocar a questão da gratuitidade com maior latitude, para lá da esfera dos tiros, bombas e murros nas trombas. Quando saímos desta zona, o tom de condenação esbate-se, e ao gratuito é dado um lugar à mesa da civilização. A esse lugar é habitualmente dado o nome de estético, onde se goza de uma margem de liberdade em relação ao jugo do necessário, às regras da conveniência, ou aos cálculos de custo/benefício que governam outras esferas. Mas esta ligeireza do gratuito é mantida dentro de uma reserva protegida, os seus efeitos contidos e, de preferência, reencaminhados para os domínios menos vagos do trabalho e do valor. Ou seja, a liberdade do gratuito deve ser um mero intervalo na injunção de produtividade, quando não é produtividade por outros meios. Isto porque a aparente inocência do gratuito contém em si mesma uma certa violência, que irrompe enquanto tal quando sai deste lugar que lhe foi atribuído e se espalha. Nesse caso, parecem pressentir os guardiões do estado das coisas, passa a ameaça ao círculo mágico de produção e reprodução das relações sociais existentes. Já lá vamos.

O problema da “gratuitidade” toca num dos fundamentos da ordem política, o monopólio da violência legítima por parte do Estado. Acontece – e não por acaso – que, no contexto da crise e austeridade, se torna mais difícil aos agentes da violência tida como legítima apontar com naturalidade e força de evidência para a sociedade do “bem estar” que lhes competeria defender de perturbações. Perante as cada vez mais óbvias linhas de fractura no tecido social, multiplicam-se também os pontos de antagonismo que precisam de ser defendidos pela força. À medida que o Estado recua ou demite-se das suas funções sociais, o terreno polariza-se, e a fronteira entre a Polícia e os cidadãos ganha maior ferocidade. Pense-se não só na carga policial de ontem, mas na cada vez maior banalização do “estado de excepção”, ou da “tolerância zero”, nas intervenções de legalidade dúbia, no número desproporcionado de polícias chamado a intervir em manifestações, na presença habitual do Corpo de Intervenção, ou na destruição de bens na sequência do desalojamento de casas ocupadas.Tanta gratuitidade junta, é de desconfiar.
 
 
Todos esses gestos, aparentemente desproporcionados, serão demonstrações de força, e nessa medida, ou seja, nos seus propósitos dissuasores, estarão longe do supérfluo que o termo “gratuito” encerra (fazendo lembrar as palavras de Nixon, que avisava os inimigos dos Estados Unidos que os americanos eram “loucos e imprevisíveis, com uma força destruidora extraordinária nas nossas mãos”).

Se a violência, por oposição à violência gratuita, é de tal modo constitutiva do que nos rodeia que ganha foros de naturalidade, de tal modo presente que se torna imperceptível enquanto violência, a gratuitidade assinala aqui a incapacidade de manter as pessoas no seu lugar por via mecanismos de controlo mais subtis e subterrâneos. Iluminam-se os vasos comunicantes entre os cordões policiais e o entrançado de exploração e dominação que compõe a violência sistémica do capitalismo – também ele cada vez mais visível.
 
 
 
 
A gratuitidade da violência policial assinala o quão difícil é, neste contexto, manter uma noção da “justa medida” - a fronteira entre a norma e o excesso, entre o uso legítimo e gratuito da violência, está mais difusa. Em suma, assinala uma quebra na normalidade: extremando um pouco o argumento, os dipositivos da ordem não perderam o controlo num momento de exaltação passageira, antes perderam a capacidade de manter o controlo senão pela violência. Mas há ainda um outro nível, porventura mais importante, que é o facto de, como é próprio em tempos de crise, e quebradas que foram as promessas inscritas no contrato social, se começar a vislumbrar a gratuitidade do próprio sistema, no sentido em que este parece ter-se esvaziado de conteúdos. Cada vez mais parece não ter um fim para lá da sua própria sobrevivência. E é cada vez mais difícil apontar para a brutalidade como algo exterior ao sistema.

É preciso perceber bem a dificuldade em manter as pessoas no seu lugar, trabalho que pertence ao sistema como um todo, e só em última instância à polícia. 
 
 
A crise não é apenas financeria, mas de reprodução social. Isto significa que são cada vez mais os que se desencontram com o lugar que supostamente deviam ocupar: o de trabalhadores, úteis, ou o de cidadãos, responsáveis. Quer voluntariamente quer empurrados, há muitos que não servem nem rendem: são supérfluos, gratuitos. É neste quadro que devemos entender o modo como a acusação de gratuitidade é lançada ao outro lado da barricada, a tudo aquilo que é frequentemente apelidado de puro vandalismo, de exaltação “sem conteúdo” (a violência no seu “estado de natureza”, para usar um termo hobbesiano). A expressão vai de par com a criminalização do protesto, que é o mesmo que dizer, com o seu afastamento do terreno político. Mas acontece que é cada vez mais difícil, por um lado, catalogar e identificar os “arruaceiros”, isolando-os do “cidadão comum” e, por outro, colar a ideia de violência ao tipo de acções de que as ocupações são o modelo - e que, por sinal, nem sequer encaixam na ideia de protesto. O espectro de hostes desordeiras, capazes de transformar a cidade num palco de “violência gratuita” mantém-se. E isto porque paira aqui um espectro mais lato, ou uma gratuitidade mais vasta: a ausência de programa, a não ocupação de um lugar reconhecido na topografia política corrente. Em suma, aquilo que escapa à representação e às mediações institucionais.




Ao mesmo tempo que os problemas da luta se confundem com os problemas muito materiais “da vida”, que nada têm de gratuito – o que comer, onde ficar, como partilhar, como exercer a igualdade – devemos, num certo sentido, aceitar a acusação de 'gratuitidade'. Que caminho se abre? Não temos um trilho ou um enredo que possa transportar um “Nós” estável de A a B, de projectar um curso, de colonizar o futuro. Mas na gratuitidade algo se produz, algo se organiza, algo constrói. Não é que não conheçamos a não-gratuitidade – a violência disciplinada do trabalho, a rosca moída da cidadania responsável, a negociação paciente com as instituições. Conhecemo-la bem demais: foi-nos de tal modo martelada que nos tornámos brutos, insensíveis aos seus chamamentos e à sua ideia de progresso. Quando podemos, sempre que podemos, tomamos distância e distraímo-nos dos seus propósitos. Podemos até dizer que, para além de uma esterilidade, caímos numa forma imbecilidade, se o imbecil é o que não percebe. Dispersámo-nos, e desperdiçámos os nossos talentos. Esquecemo-nos até, pelo caminho, de nos manifestarmos como deve ser. E assim pusemos, aparentemente, o pé fora da arena política. Será isto uma viragem? É difícil de saber: ocupamos por agora um espaço definido enquanto gratuito, enquanto esperamos que o termo perca o seu sentido, ou pelo menos a sua força coerciva. Não quer dizer que é apenas uma “roda livre”, ou uma máquina de movimento perpétuo. Não sabemos o que esta máquina produz. Não produz cidadãos nem trabalhadores.




 


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