Muito se escreveu em Setembro acerca da História de Portugal coordenada por Rui Ramos. Para quem não teve a gentileza de adquirir o Le Monde Diplomatique de Outubro, deixo aqui o texto lá publicado a propósito do assunto.
A polémica a propósito da
História de Portugal coordenada por
Rui Ramos teve o mérito de trazer para o espaço público um debate acerca dos
usos do passado e do seu impacto político. Não é casual que se tenha
concentrado no tempo mais próximo e diga sobretudo respeito à interpretação do
século XX português: trata-se de uma disputa em torno do balanço histórico da
modernidade, dos seus principais acontecimentos, problemas e protagonistas. Também
não é uma novidade a divergência em torno da caracterização do Estado Novo e da
sua identificação com outros regimes ditatoriais de matriz nacionalista,
antiliberal e anticomunista formados na Europa entre guerras. Foi esse o tema
dos artigos assinados por Manuel Loff (Público,
02/08/2012 e 16/08/2012), à luz dos seus trabalhos recentes, que sugerem a formação
de um campo político internacional na década de 30, genericamente denominado
como «fascismo», atravessado por tensões e confluências, mas partilhando um
horizonte histórico comum de superação dos regimes liberais e de combate à
ameaça subversiva do movimento operário. Seria em todo o caso redutor resumir o
alcance político do texto escrito por Rui Ramos a esse debate, ao qual aliás
pouco acrescenta. Mais importante, e porventura mais interessante, é
compreender se esta abordagem, inevitavelmente contaminada pelos debates
políticos do presente se revela útil para iluminar um período mais longo. A
opção seguida neste texto parte de alguns dos termos em que foi enunciada a
polémica, concentrando-se sobretudo na interpretação da segunda metade do
século XX.
Identificar
inimigos na história
Quando saiu a terreiro em
defesa deste livro, António Barreto atribuiu-lhe o mérito de vir «normalizar»,
com «serenidade académica» e sem «ajustes de contas», um século XX «marcado por
rupturas e exibindo feridas profundas» (Público,
02/09/2012). Ora é precisamente o postulado segundo o qual Ramos se afasta de
uma «tradição que cultiva e identifica inimigos na história» (idem) que se vê desmentido pela leitura
crítica deste texto. Percorre-o uma indistinção entre o ponto de vista do autor
e as citações que o ilustram, num exercício frequentemente desequilibrado -
enquanto alguns dos protagonistas históricos são chamados a falar na primeira
pessoa, outros são examinados com distanciamento e as suas posições e ideias
sintetizadas pelo narrador, sem que essa variação siga um critério
historiográfico claro - e que tende a substituir o rigor analítico pelas
impressões, mais ou menos superficiais e fragmentárias, de observadores coevos.
A economia literária de
Rui Ramos revela-se generosa para com os que se opõem a rupturas e a transformações
acentuadas. Esta é uma história organizada em função de ideias como «estabilidade»,
«continuidade», «equilíbrio» e «moderação», cujo subtexto investe determinados
mecanismos da ordem social de propriedades naturais - como se a propriedade, a
desigualdade ou a autoridade não fossem fenómenos em disputa, mas factos
incontornáveis - transformando as motivações de diversos actores históricos em
elementos exóticos e os seus pontos de vista em caricaturas.
Acerca da I República,
por exemplo, recorre frequentemente ao termo «radical», com e sem aspas, para qualificar
um sujeito de contornos nebulosos, inicialmente definido como uma «cultura
política» (p.585), depois esticado em diversas direcções para assinalar a
natureza extremista e intolerante do “domínio do Estado pelo facciosismo da
esquerda radical” (p.619), como contraponto a posições mais conservadoras ou simplesmente
conciliatórias, descritas como «moderadas», muitas das quais se encontrarão
depois no forjar do Estado Novo. Nesta tendência para estabelecer empatia com
determinadas posições, remetendo outras para o campo da dissimulação e da
encenação, Rui Ramos dedica-se precisamente, com assinalável serenidade
académica, a cultivar e identificar inimigos na história. O enredo do seu texto
sugere uma leitura positiva do Estado Novo, à luz de um período precedente
assinalado pelo radicalismo e de um período posterior assinalado pela agitação
revolucionária. Em qualquer um desses tempos turbulentos, Ramos salienta a
acção de uma minoria empenhada em transformar abruptamente a sociedade, contrapondo-a
à «ditadura de cátedra» de Salazar, que se distinguiria pela moderação das suas
pretensões e pelo reconhecimento de equilíbrios sociais, hábitos e tradições
tidas como inamovíveis.
A
ausência de contexto
Tanto José Manuel
Fernandes (Público, 07/09/2012) como
Pedro Lomba (04/09/2012) acusaram Loff de retirar do seu contexto algumas das formulações
de Rui Ramos. E contudo, uma das principais características dos últimos
capítulos desta História de Portugal é
precisamente a apresentação de acontecimentos e afirmações absolutamente
desprovidas de contexto ou enquadramento.
As oposições ao Estado
Novo são apresentadas num registo de simetria relativamente ao Governo, como se
combatessem em pé de igualdade e os seus actos fossem comparáveis: teriam sido
derrotadas após a II Guerra Mundial por não estarem à altura de aproveitar as
dificuldades sentidas pelo Governo (p.672) e por, “do alto da sua superioridade
social e cívica”, nunca terem tido confiança na população (p.673), desistindo
de concorrer às eleições de 1945 e 1949. Ramos sustenta que o regime saiu
reforçado em virtude da desunião das oposições, mas pouco fala das razões e
argumentos que pesaram na sua decisão de não ir a votos – remetendo-a para uma
aposta insurrecional ou golpista “segundo a cartilha do antifascismo europeu”
(p.671) - acabando por secundarizar o carácter fraudulento das eleições, a
repressão e os constrangimentos levantados, rematando com uma afirmação que
desliza para o cinismo: “ao fomentarem o abstencionismo, as oposições
facilitaram a vida ao Governo, mantendo o eleitorado pequeno e manipulável”
(p.674). O contexto também está ausente quando cita em segunda mão um texto de
Álvaro Cunhal – no qual este defende, em 1944, a necessidade de uma depuração
do Estado após o derrube do regime –, para sustentar que as oposições seriam
igualmente propensa a estabelecer uma ditadura (p.672).
No seu esforço para
desmontar a narrativa do antifascismo e o seu pathos de superioridade ética relativamente ao Estado Novo, Rui
Ramos não só menospreza a natureza repressiva do regime enquanto causalidade
decisiva para a compreensão das escolhas das oposições, como reproduz no campo
historiográfico o silenciamento e ocultamento que lhes foi imposto ao longo de
48 anos, citando-as fora de contexto e reproduzindo a imagem que delas oferecia
o salazarismo: fanáticas e violentas, fratricidas, financiadas a partir do
estrangeiro e indignas de confiança.
As
duas guerras civis
José Manuel Fernandes e
Pedro Lomba rasgaram as vestes devido ao tom de «guerra civil» adoptado na
argumentação de Manuel Loff. Parece por isso pertinente assinalar a dupla guerra
civil que percorre este texto, no qual Rui Ramos luta tanto contra as suas
fontes como contra si próprio.
Descreve os sindicatos
nacionais na formação do Estado corporativo como um mero resultado “da
nacionalização das antigas associações de classe” (p.645), apesar de citar como
fonte um livro que interpreta minuciosamente a dimensão conflitual e o carácter
repressivo que caracterizou a imposição do Estatuto do Trabalho Nacional em
1933, incluindo a prisão e deportação de vários sindicalistas, a censura na
imprensa e a greve insurrecional de 18 de Janeiro de 1934[i].
A propósito do
encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965, na sequência de um
prémio literário atribuído a Luandino Vieira (militante do MPLA detido no
Tarrafal), sustenta Ramos que esta revelou divisões e que “muitos suspeitaram
de uma manobra de alguns oposicionistas para levar à destruição de uma
organização que não conseguiam dominar” (p.694). Mas o texto em que baseia a
sua afirmação sustenta precisamente o contrário: o episódio reforçou a convergência
na oposição de sectores até então equidistantes e os testemunhos citados dão
conta do profundo incómodo que a SPE há muito provocava ao Governo e aos
apoiantes do regime[ii].
Depois de ter considerado
discutível falar da I República em bloco - assinalando as diferentes orientações
e políticas dos diversos governos entre 1910 e 1926 (p.578) - faz precisamente
isso quando compara o número de mortos provocados pela repressão de greves e
motins durante esse período e o do Estado Novo (p.652). Para além de não
problematizar a evolução dos mecanismos de gestão da ordem pública ao longo de
64 anos, Rui Ramos acaba por amalgamar Afonso Costa, Pimenta de Castro, Sidónio
Pais ou António da Silva, elidindo as diferenças que havia sublinhado
anteriormente.
Ao sustentar que a guerra colonial foi bem aceite nos
meios rurais (p.685) – uma tese insolitamente baseada em duas conversas de um
ex-militante do PCP com camponeses, num ponto impreciso da década de Sessenta –
e que o regime parecia sólido até meados de 1973 (p.704), Ramos torna
incompreensível a sucessão de eventos que descreve. Desvalorizando o avanço da
oposição a partir de 1968, o isolamento internacional provocado pela guerra
colonial (13 resoluções condenatórias do conselho de segurança da ONU são
consideradas “de fachada” (p.701), apesar da remissão para um texto onde a sua
importância é sublinhada[iii])
ou o esgotamento do modelo económico (refere a subida dos salários ignorando a
taxa de inflação, na casa dos dois dígitos) - para sustentar que “nunca se
vivera tão bem em Portugal” (p.704) - como se explica a “transformação radical
de valores” (p.702) e a “revolta de classe média” verificada nesse período, que
“tornou difícil manter o controlo do espaço público sem recorrer à repressão”
(p.703)?
O
ajuste de contas
Tudo isso corre,
mais uma vez, num sentido facilmente identificável: o de apresentar o processo
revolucionário como uma sucessão de episódios fortuitos e manobras palacianas, habilmente
conduzidos por minorias que se moviam num mar de inércia e ingenuidade,
aproveitando uma crise conjuntural para tomarem de assalto o poder. Rui Ramos
assume aqui uma liberdade interpretativa que dispensa o rigor no tratamento das
fontes como na descrição dos acontecimentos, a favor de uma narrativa
certamente elegante, mas construída à custa de imprecisões e ao sabor dos seus
desejos. Quando opta por fazer falar os protagonistas e entrelaçar as citações
com o seu próprio ponto de vista, escorrega no seu entusiasmo.
Ao citar Otelo Saraiva de Carvalho (p.711) para
demonstrar que a invocação do nome de Spínola neutralizou as tropas enviadas
para combater a coluna de Salgueiro Maia, fá-lo à custa tanto dos factos como
da citação. Otelo refere na verdade a conversa citada, mas com o comandante do
Quartel de Engenharia 1, onde estava instalado o seu Quartel-General, que em
momento algum esteve em condições de se opor ao golpe[iv].
No seu esforço para sustentar que Spínola foi o elemento decisivo no 25 de
Abril e que o MFA foi uma criação sua, ignora o facto de o próprio ter
repetidamente afirmado a Caetano, no momento em que este se rendia, não estar
na “conspiração” e não ser “o chefe do movimento”[v].
Não é grave que Rui Ramos se proponha rever a historiografia, mas é certamente
preocupante que o faça relativamente às suas fontes. E fá-lo com dolo, para
sustentar mais à frente que “a História do 25 de Abril foi reescrita como uma
«revolução de capitães» logo transformada numa «revolução popular»” (p.718),
algo que a descrição dos acontecimentos no livro que cita - tal como grande
parte da investigação historiográfica sobre o período - desmentem
categoricamente, sem que Ramos lhes contraponha qualquer argumento.
Um artigo sobre
uma manifestação dos operários da Lisnave é transformado numa descrição genérica
do período, no qual o pretérito perfeito usado pela autora[vi]
para falar de um momento preciso no tempo se vê convertido num pretérito
imperfeito, que permite concluir, mais uma vez abusivamente, que a dinâmica dos
conflitos sociais durante a revolução obedeceu ao “domínio férreo de minorias
organizadas” (p.731). Se Varela Gomes, um «gonçalvista», acusa Costa Gomes e os
«moderados» de manipularem processualmente as assembleias do MFA[vii],
Ramos conclui que esta era uma táctica generalizada para reduzir as assembleias
aos núcleos de activistas no momento das votações (idem).
Outros casos de interpretação abusiva das fontes poderiam
ser mencionados. É algo facilmente explicável pela estrutura narrativa da obra,
feita de frase curtas e afirmações lapidares, mas importa sublinhar que se
trata também de um procedimento que serve o programa historiográfico e o
imaginário político do seu autor, no qual elites tradicionais e minorias
radicais disputam a condução de uma massa inerte que são os portugueses,
gerando rupturas sempre abusivas que interrompem ciclos de estabilidade sempre virtuosos.
Assinalei neste texto as minhas discordâncias, mas
aproveito a sua conclusão para concordar com a última frase de Rui Ramos,
estragando porventura a surpresa ao leitor: em Portugal, a história não acabou.
[i] Maria de Fátima
Patriarca, A questão social no
salazarismo (1930-1947), Lisboa, ICS, II Volumes, 1995
[ii] João Pedro George, «O
campo literário português. O caso da extinção da Sociedade Portuguesa de
Escritores em 1965», em Revista de
História das Ideias, Volume 21, 2000, pp.461-499.
[iii] Norrie MacQueen, «As
guerras coloniais», em A transição
falhada (Org. Fernando Rosas e Pedro Aires Oliveira), Lisboa, Editorial
Notícias, 2004, pp. 291-293
[vi] Maria de Fátima
Patriarca, «Operário portugueses na revolução: a manifestação dos operários da
Lisnave de 12 de Setembro de 1974», em Análise
Social, nº56, 1978, pp.695-727
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