sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Nem Alemães, nem Portugueses

Se nada fizermos, a crise das dívidas arrisca-se a ser o tempo de todos os nacionalismos, sentenciando definitivamente a morte da democracia.



Entre os países que ainda não estão no olho do furacão da crise financeira, aumentam os sinais que nos dão conta de um crescente sentimento de superioridade em relação aos governos e às populações dos países em crise. Nestes últimos, por sua vez, multiplicam-se os apelos – de teor não menos nacionalista – a um orgulho colectivo que deverá juntar, num só abraço, os patronato, a esquerda, a polícia, os empresários, os sindicatos, a direita e quem mais se julgar um bom e honrado cidadão.



Vejam bem a rapidez com que algumas situações evoluíram nos últimos tempos. Recordam-se quando, ainda há poucos meses, um jornal alemão sugeriu que as ilhas gregas deixassem de ser propriedade do Estado grego, no que seria uma forma de este amortizar os seus pecados financeiros? Na altura, por aquele ser um jornal tablóide, supusemos que o seu sensacionalismo não reflectiria o pensamento das elites alemãs e prontamente negámos ser esse um sinal de preocupação. Hoje, porém, é a própria Angela Merkel que aventa a hipótese de impor uma diminuição de soberania a Estados como o grego.



Para agravar ainda mais este cenário, temos a reacção das elites políticas dos países em crise às declarações de Merkel. A reacção tem sido uma de duas: há quem continue a não encontrar no facto qualquer razão para alarme, afirmando que Merkel se limitou a constatar uma realidade; e quem desate a falar do irreprimível expansionismo alemão e de como por cá – em Portugal, por exemplo – não falta quem se preste ao papel de colaboracionista, o que exigiria uma espécie de levantamento patriótico dos chamados portugueses. Ou seja, temos os que ignoram a doença e os que nos querem matar com a cura.



A confirmar-se este cenário de inflacionamento de todos os nacionalismos, não tardará que uma primeira vítima se apresente na morgue mais próxima. Não será provavelmente o banco X ou o banco Y, porque já todos percebemos que haverá sempre um estado qualquer pronto a salvar um banco qualquer em nome de um qualquer interesse nacional. Será a democracia.



O estado da democracia já não é, hoje por hoje, muito famoso. Triste e fragilizada, arrasta-se penosamente pelos cantos, manietada por uma sua concepção que ignora os valores da igualdade económica, tudo se resumindo a uma concepção de liberdade que tem o seu pilar fundamental no respeito pelo direito da livre iniciativa privada, isto é, o direito de uns poucos privarem os muitos do acesso a outros tantos bens. Mesmo a liberdade política encontra-se hoje resumida ao direito de escolhermos livremente os poucos que sobre nós mandarão, as mais das vezes a despeito de programas eleitorais acabados de imprimir. A política institucional está hoje apropriada por um sistema partidário em que escassos são os eleitos que recusam ser incluídos na categoria “classe política”, expressão que pressupõe uma profissionalização da política que é a negação de uma ideia de democracia segundo a qual um cidadão tanto poderá eleger uns como ser eleito por outros.



O estado da actual democracia não significa, porém, que nada possa piorar. Os efeitos anti-democráticos da voragem nacionalista que se avizinha não devem ser menosprezados. O crescente nacionalismo alemão arrisca-se a eliminar qualquer ilusão de autonomia – dar a nós próprios as nossas próprias leis – que ainda pudesse estar contida no princípio da soberania nacional. E os nacionalismos anti-alemães, por sua vez, ameaçam suspender por mais de seis meses a democracia enquanto instrumento de expressão do antagonismo político entre pessoas que vivem num mesmo país. A democracia enquanto negação do conflito e sublimação do consenso – alimentada tanto por uma concepção gélida e tecnocrática da política, como por uma exaltação romântica e calorosa do orgulho e resistência nacionais – pouco mais será do que uma forma menos musculada de dizer a palavra ditadura.



Num tempo em que até os partidos parlamentares mais à esquerda invocam a necessidade de uma unidade nacional, ideia que na Grécia ou em Espanha sectores anarquistas ou autonomistas – a famigerada esquerda radical – têm procurado contrariar, pouco falta para que a política em Portugal se resuma a um concurso televisivo para eleger o melhor administrador desta pequena e moribunda empresa. E a democracia, já se sabe, costuma ficar à porta das empresas.



Por mais que a ideia contrarie a intuição de alguns leitores, pode bem dar-se o caso de a esquerda radical ser a maior esperança para uma reinvenção da democracia.



publicado esta quinta-feira no jornal i

2 comentários:

  1. Escreve José Neves; "Num tempo em que até os partidos parlamentares mais à esquerda invocam a necessidade de uma unidade nacional" .

    Como posso ter andado distraído, será possível José Neves exibir-me uma única declaraçao do PCP que, de um ponto de vista rigoroso e factual, ou seja sem elipses ou torcidelas de interpretaçao, sustente o que afirma.

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  2. Já se sabe o conflito pessoal do Neves com o nacionalismo (qualquer forma ou expressão dele, não apenas o extremista). Mas a verdade é que não pode haver democracia sem alguma forma de nacionalismo, ou seja, sem que haja um grupo de pessoas de escala moderada (Rousseau, salvo erro Lv II, lá para os últms caps.) que viabilize uma estrutura de tomada colectiva de decisão sem que a alienação/distância entre quem executa e quem é soberano não transforme o executante (ou seja, o executivo) em soberano por si só, sendo este grupo tanto mais coeso e diacronicamente estável, quanto mais profundas forem as raízes da coabitação (história comum, língua, estabilidade de fronteiras, moeda, costumes, etc), ainda que tendencialmente inclusivo de quem queira integrar-se na comunidade, tolerante face a pessoas exteriores a ela e não belicista. É uma qualquer forma de nacionalismo (ou comunitarismo, que é praticamente o mesmo) que cede a esta forma o voluntarismo na participação democrática, a coesão e a ancoragem identitária para que, de facto, possa desenvolver-se não apenas instituições democráticas estáveis, mas ainda práticas democráticas.
    Ao invés, creio que é o escamotear da ideia de nação, de país, de povo, imagens construídas, como é claro, mas que adquiriram uma relevância fulcral (e tendo sido uma construção, não lhes retira operacionalidade ou importância, pois existem), sendo desvalorizadas face ao unio-europeísmo e ao regionalismo bacoco, o desenraizamento (físico, ideológico - na percepção semântica do termo, de costumes, ...) e o extremo relativismo que vai corroendo e corrompendo não apenas a democracia mas as próprias formas de coexistência e coabitação humanas.
    O libertários extremistas (o que é vulgo apelidar-se de esquerda radical e de neo-liberais, sim, ambos) são não a salvação da democracia, mas uma das mais imediatas causas da sua destruição, juntamente com a do Estado, substituindo-os não por uma nova fórmula organizacional, mas simplesmente desmembrando-as, pedaço a pedaço, advogando um retorno às não-regras, ou, por outras palavras, à anarquia, na qual não há lei senão a lei do mais forte.
    Acho que a única coisa do artigo que verdadeiramente partilho é a crítica à profissionalização da política, outro atentado contra a democracia.

    PS: Que o comentário não seja levado a mal pelo autor, que este seu antigo aluno muito gosta de o ler e ouvir e deve-lhe muito pelo que consigo aprendeu. E peço também desculpa pela escrita, que foi escrito à pressa e ainda meio ensonado.

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