sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Os Destruidores de Máquinas

Em Inglaterra celebra-se o bicentenário do general Ludd. Não teve cerimónias de Estado, mas nem por isso o espectro de Ludd deixa de pairar sobre as ilhas britânicas…



Haverá melhor maneira de evocar a memória de Ludd que fazer incidir as luzes sobre o actual levantamento dos amotinados londrinos? Antes de responder concentremo-nos nesse longínquo século xix, ao encontro do velho Ludd.

Foi há duzentos anos, num território que ficaria conhecido como o triângulo ludita, entre as cidades de Manchester, Leeds e Nottingham, não muito longe, portanto, da área de influência de Robin dos Bosques. Um número inusitado de desafios à ordem pública e violações da propriedade privada fez soar o alarme junto de autoridades públicas e privadas. Fogos postos e saques colectivos ou individuais, somados a outros tantos raides nocturnos dirigidos a propriedades agrícolas, e ainda vários actos de sabotagem industrial, em muitos casos contra as máquinas que começavam a tomar conta do chão da fábrica, marcavam o início de uma onda de revoltas e protestos que duraria de 1811 a 1813.

Foram os anos do ludismo. Ainda hoje não é fácil saber ao certo quem eram os luditas. Entre eles encontravam-se seguramente artesãos, tecelões e fiadores. Reivindicavam frequentemente as suas acções assinando-as general Ludd ou simplesmente Ludd. Apelido imaginário, por certo, mas noticiado em jornais de parede, ao estilo agit-prop. A fama de Ludd beneficiou do prestígio avolumado pelas redes sociais tecidas pelos migrantes, que iam dando conta dos seus feitos, de localidade em localidade, numa época em que se intensificava a circulação de mão-de-obra. Insolente, Ludd vigiava o patrão menos escrupuloso da região, com carta ameaçadora na caixa de correio, mas também chegou a ser citado em petições parlamentares.

Em que contexto decorre a emergência do ludismo? A crise comercial em Inglaterra e o conflito com Napoleão são circunstâncias relevantes. A estes soma-se o impacto da nova maquinaria introduzida no quadro da revolução industrial; é razoável pensarmos que entre as motivações dos destruidores de máquinas estaria o desejo de conservar o posto de emprego. Nenhuma destas circunstâncias, contudo, parece ter comovido as autoridades. Se em alguns casos ainda encontramos sinais de uma resposta de tipo paternalista, foi repressão pura e dura que recaiu sobre os luditas, numa enorme operação militar e judicial. Esta criminalização deixou sequelas na memória e não é estranha a que os próprios historiadores, ao longo dos séculos xix e xx, tenham olhado para o ludismo com desprezo ou, na melhor das hipóteses, com a condescendência que lhes merecem os vencidos. A historiografia considerou os luditas mero sintoma da transição estrutural da época pré-industrial para o mundo da técnica. O retardado Ludd destruiria máquinas movido por um impulso irracional contra o progresso, diziam uns, enquanto outros referiam que os luditas se revoltariam por nítido desespero, como animais que atacam descontroladamente tudo e todos ao sentirem o estômago vazio.

Nas últimas décadas, porém, a situação modificou-se, em particular devido ao trabalho de uma geração de historiadores marxistas britânicos. Para o caso é particularmente relevante o artigo publicado em 1952 por Eric Hobsbawm e cujo título resgatei para dar mote a esta crónica. Pôs a hipótese de deixarmos de considerar homens e mulheres como os luditas enquanto sujeitos apolíticos. Não que os passemos a considerar actores políticos à semelhança dos "grandes homens" que comandam a ordem oficial - Ludd não é Churchill, Thatcher ou Obama - ou das "massas" em nome das quais falam os críticos oficiais da ordem - os luditas não são a classe de Lenine. Mas olhar de igual para os luditas obriga-nos a questionar permanentemente onde começa e acaba a política. E se entre os motins londrinos de 2011 e a vaga ludita iniciada em 1811 existem seguramente inúmeras diferenças, aproxima-os a circunstância de uns e outros permitirem que questionemos a crença de que só poucos - a "classe política" ou a "elite empresarial" - têm o direito histórico de agir sobre a cidade.



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