sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Qualquer coisa


Luís Fazenda está cada vez mais acutilante na sua prosa. Depois de ter despachado Zizek a alta velocidade ainda não há 5 meses, ei-lo novamente de pena em punho, disparando agora sobre outros pianistas. Uma vez que a curiosa combinação entre Lacan e Estaline que caracteriza a intervenção pública de Zizek é uma cena que a mim não me assiste, deixo ao Bruno Peixe, ao Carlos Vidal e ao Nuno Ramos de Almeida as despesas dessa refeição, debruçando-me apenas sobre a partitura mais recente.

Seria pouco relevante procurar aqui uma definição minimamente clara do que Fazenda entende por "ressurgimento do anarquismo". Nem ele a deseja, nem semelhante clarificação seria possível à luz dos problemas que o texto procura abordar*. A pequena árvore genealógica esboçada no início do artigo limita-se a contrapor um cadáver embalsamado (e que é, por isso mesmo, inofensivo) a qualquer coisa que está viva e se mexe (e que é, por isso mesmo, incómoda).
O "anarquismo" que aqui interessa ter em mente é aquele mesmo a que as polícias de vários países se referem, sempre que pretendem reprimir preventivamente as e os que não querem brincar à representação e à negociação, que desafiam a autoridade do Estado e, em vez de reivindicar e exigir, preferem tomar, ocupar, sabotar e desafiar. Não se trata de um exercício de história das ideias, mas de um enunciado de criminologia.

O juízo a respeito desta nebulosa anarquista é tão severo como previsível. Não apenas a táctica do black bloc "não faz avançar um milímetro a luta de classes", dando pretextos à repressão policial e desviando a atenção das "acções populares", como é até "gritantemente conveniente" para a burguesia. O resto do texto segue o mesmo diapasão e raramente ultrapassa um registo caricatural. Afirma Fazenda, por exemplo, que os autónomos "ensaiaram uma simbiose entre anarquismo e marxismo", sem fazer a mínima ideia daquilo que está a dizer. Ou, ainda melhor, que "a [sua]  estratégia, sem táctica, era a acção directa e a agitação vermelha". E naturalmente que o corolário lógico de tamanha severidade só poderia mesmo ser a constatação - muito pouco original, diga-se, uma vez que Álvaro Cunhal já a fazia relativamente aos antepassados políticos da organização de Luís Fazenda - segundo a qual semelhantes disparates fazem o jogo da reacção. 


 Não me passa pela cabeça assinalar aqui até que ponto este texto de Fazenda é despropositado e revela uma desconcertante incapacidade de debater com quem tem um pensamento político diferente do seu. Seria fácil, desde logo, perguntar demagogicamente qual o avanço imprimido à luta de classes pela sua actividade parlamentar? Ou, mimetizando a interrogação que remata o texto, qual o eco do parlamentarismo e da profissionalização da actividade política que caracteriza a intervenção do Bloco de Esquerda?** 
É aliás notório que Luís Fazenda está preocupado com essa qualquer coisa de que o anarco é prefixo, precisamente porque apenas tem para lhe contrapor mais do mesmo. Ele "condena desvios autoritários de partidos de base popular" sem ser capaz de se referir explicitamente ao PCP (devem ser desvios autoritário-qualquer-coisa), ao mesmo tempo que "repudia o controleirismo sobre organizações sindicais, movimentos sociais, cooperativas". Mas no final o proletariado precisa de um partido político, ou seja, de um conjunto de dirigentes e representantes que digam aos trabalhadores o que eles devem fazer. E o que é que eles devem fazer? Está tudo aqui e esse tudo é muito pouco. 
O Bloco apoia as lutas contra a austeridade e deseja que a democracia se exprima nas respostas sindicais, mas no final (aliás, no princípio do documento, para ser rigoroso), todo o seu horizonte passa por um punhado de soluções institucionais que recupere o capitalismo português da crise em que se encontra, permitindo-lhe fazer face aos seus compromissos internacionais sem comprometer o crescimento da economia. Alguém procura uma perspectiva internacionalista do que está em curso nos últimos anos? O máximo que conseguirá encontrar neste documento é a afirmação de que a "a União precisa de um novo tratado". Se eu tivesse mau feitio (e tenho), remataria este conjunto de exemplos com uma qualquer afirmação demagógica e caceteira. Qualquer coisa do género: "Há uma classe que agradece, mas não são os trabalhadores".
O horizonte fundamental deste documento é o de canalizar o conflito social para a construção de uma "maioria social", a que apenas por pudor se evitar chamar "de governo". Porque a partir do momento em que as instituições são o espaço privilegiado para o combate à austeridade, naturalmente que a única política que conta é aquela capaz de se materializar na esfera do Estado. Onde, se não a partir do governo, se poderá reforçar os capitais da banca pública, criar um imposto sobre as grandes fortunas ou renegociar a dívida a curto prazo? 
Eis o ponto fundamental deste artigo, no qual Luís Fazenda demonstra a razão de Estado na qual se esgota o seu entendimento da política. Um "programa alternativo para a mobilização para novas soluções" equivale a conduzir uma mobilização para que a esquerda parlamentar vá para o governo gerir o capitalismo em nome do interesse nacional (nem sequer faltam as alusões à safadeza do "eixo franco-alemão", da mesma maneira que Merkel é a especial visada deste panfleto de Verão dos jovens do Bloco). Fazenda sabe que nunca conseguirá vencer esse debate frontalmente, se ele for levado a cabo em espaços de decisão horizontais e igualitários no seio dos movimentos sociais. É aliás caricato que, julgando-se incontornável e evidente a necessidade de um partido político "de classe", os militantes e funcionários do Bloco de Esquerda que intervêm em movimentos sociais como o Mayday (essa original criação "autonomista" sem táctica nem estratégia), ou a acampada do Rossio, sejam extremamente cuidadosos em guardar para si essa condição e reajam com enorme desconforto sempre que alguém sublinha a necessidade de preservar a independência relativamente a partidos políticos. Se essa discussão se resolvesse com a facilidade que pretende Fazenda, ninguém teria problemas em se afirmar pública e abertamente como militante. Pelo contrário, a multiplicação desses espaços e momentos, que tanto desconforto provoca a Luís Fazenda, revelam que existe a possibilidade de uma política que não se esgote em "encontrar novas soluções" para fazer funcionar o capitalismo de modo mais harmonioso. E essa possibilidade é já qualquer coisa.


*Mas registe-se que Fazenda, apesar das suas várias e frequentes declarações de amor à democracia socialista, reserva à guerra civil espanhola - acerca da qual se sabe já uma coisa ou outra - um comentário bastante minimal, ao referir a  "desagregação geral dos seguidores anarco-sindicalistas, agravado pelo destroço desta influente corrente na guerra civil espanhola" sem nada nos dizer acerca dos seus contornos. Certamente por estar empenhado na sua intensa actividade parlamentar, Luís Fazenda desconhecerá porventura os acontecimentos ocorridos em Barcelona em 1937, bem como o extenso trabalho de análise e interpretação histórica levada a cabo, por exemplo, pelo historiador francês Pierre Broué. Não quero pensar que após tantos anos se pretenda que o estalinismo continue a lavar mais branco.

** Para esta, na verdade, há uma resposta extremamente fácil e evidente: esse eco é o interminável êxodo de militantes e activistas daquela organização. A tal ponto que tem de ser um militante-funcionário-assessor a falar em nome dos precários portugueses, tanto aqui, como aqui.

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