Aproxima-se o vigésimo aniversário da queda da URSS. Estávamos em 1991 e para muitos esse ano marcou o fim do século XX. Iniciava-se então uma nova era cujo signo seria o da liberdade.
Negada pelos regimes socialistas da Europa de Leste, a liberdade seria agora rainha e senhora. Sem muros nem a meias, o mundo seria livre e seria mundo, a sua superfície aplanada e alisada, disponível para nele circularem tudo e todos, de tal modo que as economias nacionais e regionais se desenvolveriam combinadamente, acumulando-se riqueza, dinheiro, progresso. Depois, mais tarde, num futuro mais ou menos longínquo, tudo acabaria por escorrer, do topo da pirâmide até cá abaixo, a caminho da felicidade e da abundância gerais. Em suma, a liberdade política traria a igualdade económica.
O fim da URSS trouxe mudanças importantes nas esquerdas partidárias europeias. Os partidos comunistas ressentiram-se imediatamente da débacle, alguns de modo fatal, outros conservando ainda hoje uma parte importante das suas forças, caso do PCP. Os partidos social-democratas, por sua vez, reclamaram a queda da URSS como uma vitória sua e beneficiaram eleitoralmente com a crise dos rivais comunistas, conforme testemunha o PS dos anos 90. Finalmente, mais à esquerda, abriu-se um espaço para correntes que, a partir de tradições radicais, e juntando-lhes comunistas e social-democratas desavindos com o seu passado, souberam trilhar um caminho de crítica da globalização capitalista sem guardar nostalgia pelos regimes socialistas do leste – foi o caso do BE.
Este novo cenário acalentou junto de algumas pessoas novas hipóteses de uma aliança entre os partidos de esquerda. Cessando a divisão do mundo entre o capitalismo ocidental e o socialismo de leste, cessava um obstáculo importante entre as esquerdas portuguesas. À nova situação geopolítica, juntava-se ainda a auto-crítica do PCP relativamente às experiências de leste, que o levou a revalorizar a ideia de liberdade política, diminuindo a sua distância face aos valores liberais dominantes. O próprio BE, que em parte alimentara uma ideia de liberdade política mais próxima de uma democracia de cariz basista, inspirada na crítica revolucionária da burocracia e do estatismo dos regimes de leste, rapidamente acabaria por redundar num partido parlamentar convencional.
Em suma, não tem sido o respeito pela liberdade política, nem as divergências – que as há – em relação ao que se entende por democracia política, que tem impedido aproximações entre as esquerdas partidárias. O principal motivo de afastamento reside no respeito pelo princípio da igualdade económica. Com a queda da URSS, e apesar da maior influência do liberalismo, PCP e BE continuaram, porventura de um modo mais tímido, a atribuir relevância significativa à ideia de igualdade económica. Já no campo do PS, essa ideia parece ter sido definitivamente secundarizada. Os socialistas portugueses participaram activamente do argumento segundo o qual todos os que lutam pela igualdade económica acabarão por negar a liberdade política. Propostas no sentido de uma menor liberdade comercial em nome de uma maior igualdade económica foram uma e outra vez indiciadas pelo PS como prova de que a esquerda anticapitalista é refém do mesmo tipo de pulsão totalitária que terá caracterizado os regimes socialistas do Leste.
Para alguns, o rumo liberal do PS é fruto de uma sua rendição aos encantos da terceira via. Para outros, o PS é por definição um partido do centro, que tanto emergiu contra a sua esquerda como contra a sua direita, sem a ligação histórica ao movimento operário que por exemplo caracterizou a social-democracia alemã. E, no entanto, olhando para o último congresso de Sócrates e para este primeiro de Seguro, tudo parece necessariamente mais elementar: na vida do PS sobrelevam os sinais de que em curso está um simples ajuste de contas entre novas, velhas e futuras lideranças. Infelizmente, a desastrosa troca de cadeiras entre Seguro e António Costa é mais do que um simples episódio tragicómico. E o problema que se mantém no meio da sala do congresso, como o elefante que ninguém quer ver, é se pode um partido socialista ter medo do socialismo?
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