quarta-feira, 31 de agosto de 2011

“Estudar vale a pena para poder ganhar mais dinheiro”.




Uma primeira tentativa de interpretação desta frase poderá levar-nos a assumi-la como um erro. Como se tratava de um evento pouco sério (uma universidade de verão partidária), Crato tentou mandar umas patacoadas para fazer rir uns tantos. Um elemento que ajuda qualquer apresentação, ainda mais num contexto em que uma boa parte dos assistentes deve estar com a ressaca das suas vidas.

Ou não. Crato é um ministro e um ministro não se engana. Mais do que isso, fala de forma circunspecta, sempre conforme o objectivo que se lhe assiste. E, então, vemo-nos forçados a analisar a coisa de forma séria, partindo do pressuposto afirmado por Crato: a relação directa entre educação e dinheiro.

Se nos reportarmos aos últimos dez, vinte anos, esta relação é inexistente. Uma grande parte da gente rica, proprietária de terras e de empresas, era pouco qualificada (vamos, por agora, partir do princípio que educação e qualificação são a mesma coisa), distante das últimas novidades na gestão de empresas, nas tecnologias produtivas e nas teorias do capital humano. O salário era, geralmente, baixo e o cacete mais usado que a cenoura.

Porém, se avançarmos um pouco no tempo, a frase é verdadeira. Provavelmente.

Qual então o problema com o discurso de Crato, se a mesma se limite a constatar o que se tornou óbvio? Em algo bastante simples: no que não está lá e lá poderia estar. Crato poderia ter estabelecido uma relação directa entre educação e muita outra coisa, mas não o fez. O que nos leva a concluir que o problema não reside na frase por si só, mas na ordem discursiva em que se insere, a qual tende, demasiadas vezes, a insinuar uma relação umbilical entre os dois conceitos, ou seja, que a educação que não dá dinheiro não é educação. É outra coisa qualquer. E como a outra coisa qualquer que é, não é importante. Porque se fosse importante, não era uma outra coisa qualquer, condenada a permanecer encerrada no reino do não dito, para sempre ausente de discursos ministeriais. Mesmo naqueles proferidos em universidades de verão.

Depois de conhecido o plano de tragédia orçamental estão reunidas as condições objetivas e subjetivas para correr com a ESCUMALHA

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O comum em revolta

 To argue that there are – according to the criteria of Western democracy – radical differences between the representativeness of Ben Ali’s Tunisia and Cameron’s Tottenham or Brixton, is simply to denying the evidence: life has in both cases been so violated and plundered that it cannot but explode in a movement of revolt. Not to talk of mechanisms of repression, which are bringing England back to the times of primitive accumulation, to the jails of Moll Flanders and the factories of Oliver Twist. To the mugshots of youth in rebellion posted on the walls and the screens of England’s cities one should really juxtapose large sized prints of the swinish faces (a variant of the PIGS?) of the bankers and financial corporate bosses that have turned entire communities to that condition, and keep fattening their profits out of this crisis.
Let’s go back to the newspaper’s trivia. Some would thus be legitimate, as in the Maghreb countries, because there the corruption of dictatorial regimes has led to miserable conditions; the protests of the Italian students or the Spanish “indignados” would still be understandable because “precarity is bad”; the revolts of the English or the French proletariat are, instead, “criminal” as they are allegedly marked by mere looting of other people’s property, hooliganism and racial hatred.
All this is largely false, because these revolts tend – with all the differences among them, which we don’t deny – to have a common nature. They are not “youthful” revolts, but revolts that understand social and political conditions that increasingly large layers of the population consider entirely unbearable. The degradation of the working and social wage has gone beyond the threshold identified by classical economists and by Marx with the level of workers’ reproduction, which they called a “necessary wage”. And now, we dare the journalists to argue that these struggles are produced by excesses of consumerism!
Judith Revel e Antonio Negri, The common in revolt

No tempo em que o Peyroteo ripava na rapaqueca era bumba prá baliza!


E diga-se desde já do Peyroteo que, capricho à parte, foi o maior, maiorzíssimo que o Eusébio, esse aparecido providencialmente na era do marketing. Eis a comparação segue a história (...).
Pois toma, foi mesmo ó quê. A Académica a marcar golos, o Peyroteo a empatar de cada vez que o seu (de verde-escuro) guarda-meta Azevedo chupava mais um. Assim: avança a Académica, enleia o adversário, troca a chincha de um para outro jogador, aproxima-se da baliza, pode marcar, pooode marcar maaarqué gooolo! E logo a seguir: avança o Peyroteo, faz uma finta, aplica uma gambeta, dribla um, dribla dois, volta atrás e dribla-os novamente, arranca, marca, não marca, ainda não marcou, agòraèqué  agòraèqué ó minhamãe e bumba, foi. Ajudem-me quantos se lembram – FORAM CINCO, NAO FORAM? Pasmai, ó miúdos de hoje, e repasmai, e contrapasmai se quiserdes, que aquilo parecia um pasma de guarda a um galinheiro. Do lado de cá onze em preto viúvo, do lado de lá o Peyroteo e, a ajudar o Peyroteo, dez manos jeitosos, mas nem por isso (os manos que me desculpem – isto na memória embrulha-se a cada passo e acontece sermos menos verdadeiros) (...)
Vidas de craque. Pois na segunda parte a máquina carburou ainda melhor, aplicou desconhecidas novas gambetas na malta, fingiu que corria, driblava, não driblava, e sempre bumba, bumba, bumba prà baliza da Académica, cujo nº1 (neste século recuado não havia números) se punha a rezar a um deus desconhecido, como o protagonista do John Steinbeck. Cinco a cinco! Há lá resultados destes no futebolinha coisa pouca de 1972?
 
Fernando Assis Pacheco, «Memórias de um craque»

domingo, 21 de agosto de 2011

Antes uma aporia que um consenso

Ao interrogar-se sobre “o que é o roubo de um banco, comparado com a criação de um novo banco” Brecht baralha as evidências a respeito do que seja um crime. Michael Moore parece ter interpretado a tirada praticamente à letra e rodeou o New York Stock Exchange com uma fita em que constava a frase «Crime scene do not cross»... Até aí, permanece-se no campo da denúncia de carácter mais ou menos anedótico. Seja como for, mutatis mutandis, as evidências que se baralham são as que andam de mãos dadas com a hipocrisia que consiste em condenar como crimes actos de violência subjectiva, fechando simultaneamente os olhos à violência objectiva/sistémica – como lhes chama Zizek – que amiúde está na origem daqueles.


Não obstante, ao pensarmos nos acontecimentos da semana passada em Inglaterra, não está apenas em jogo a problematização da fronteira entre o que releva ou não de um crime, mas a dinâmica e a lógica das práticas que decorreram da suspensão temporária dessa fronteira; não que apenas actos norteados por ideais, cientes das razões que os norteiam, mereçam o titulo de “políticos” – como se só gestos subversivos que obedecessem a palavras de ordem o fossem –, mas reconhecer a amplitude do político não nos obriga a saudar – com um zelo revolucionário excessivamente lesto – actos em que o poder de quem não tem nada a perder se confunde com a arbitrariedade de quem já não crê ter algo a ganhar.


De resto, que sentido faria aqui saudar os amotinados? Ou – ao invés, mas pelas mesmas razões – condenar? Se não, vejamos: se há um consenso tácito entre os “durões” e os “moles” – para utilizar as expressões do Zé Neves –, ou seja, entre os que pretendem, sem contemplações, punir os amotinados, e os que, contextualizando os seus actos de revolta, apenas corrigi-los, há um outro entre os “durões” que, podendo, não hesitariam em atirar os amotinados à água e os não menos durões de sinal contrário que, por eles, lançariam chamas sobre tudo o que pudesse arder. No fundo, tudo se resumiria a saber – e assim se entendem uns e outros “durões”, ambos reféns da lógica da vingança –, quem pôr borda fora, sendo que não é claro que a lógica do kierkegaardiano “ou sim ou sopas”, quando não só não há nada a perder como também não há nada a ganhar, possa ser boa conselheira.


Note-se que, pondo as coisas nestes termos, não situamos a discussão noutro plano que não o dos amotinados (ou seja, discute-se em termos políticos, e não em termos policiais). A aporia que subsiste, e que é a nossa, pode formular-se a partir da seguinte dificuldade – que é também um desafio: como não condenar hipocritamente actos de violência, sem ter de aprovar a arbitrariedade de que possam revestir-se, ou, em termos talvez mais substantivos, como não advogar uma visão idealista da política sem ter de saudar acriticamente toda e qualquer revolta, por mais desesperada que seja a sua manifestação.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Música para metralhar ouvidos e incendiar corações

Como a música pop é um assunto demasiado sério para ser tratado num post de um dia de verão, sugiro que falemos de um estilo musical que se auto-propôs incendiar o planeta. Refiro-me à Fire Music, um termo cunhado pelo saxofonista Archie Shepp, que se tornou o cognome do Free Jazz. Nomes como Albert Ayler, Cecil Taylor, Frank Wright, Alan Silva, Peter Brotzmann, entre outros, são representativos dessa corrente, que se distinguiu por apresentar o lado mais abrasivo e incendiário do Jazz.

O Jazz em Agosto, que para gáudio da multidão já chegou à fundação do magnata arménio, apresenta anualmente o melhor que se faz no campo da «música transidiomática com vocação cósmica», como Jorge Lima Barreto a catalogou. Este ano não é excepção. Para além do trio Fire! de Mats Gustafsson, e da formação que junta as guitarras da banda punk The Ex a Ken Vandermark e Paal Nilssen Love, temos ainda o quarteto de Peter Brotzmann, «Hairy Bones», que promete calar os aviões que sobrevoarem o auditório ao ar livre à hora do concerto.

No tempo em que a música ainda não se tinha entregue à indulgência da retromania, Brotzmann & sus muchachos ousaram transpor o som das metralhadoras para música, gravando o álbum «MachineGun» (1968) . Um disco ruidoso, agressivo e vigoroso que é um verdadeiro assalto sónico para os ouvidos mais desprevenidos. Não admira que desde então Brotzmann tenha sido classificado de terrorista e comunista, insígnias que só abonam a favor da sua música catártica e revolucionária. Eis uma pequena amostra do poder dinamitador de Brotzmann a tocar o tema da dupla Brecht/Eisler, «United Front Song»



sábado, 6 de agosto de 2011

Pedro Mota Soares, o fornecedor de drogas mil

Dear pharmacist use your mind
You better stock me up for the wintertime
Mr pharmacist

Hey mr pharmacist
Words cannot express
Feeling I suggest

Oh mr pharmacist I can plead
Gimme some of that powder I need
Mr pharmacist

Dear pharmacist I’ll be back
With a handful of empty sack
Mr pharmacist

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Palavras que nos governam - o caso do "interesse nacional"

A fórmula "interesse nacional" tem ocupado a linha da frente das palavras que nos governam. A expressão é de uso recorrente por quem subscreve as medidas de austeridade implementadas ao longo do último ano. Para estes, o "interesse nacional" é quem mais ordena. Em seu nome justificam-se medidas tidas como as menos desejáveis pela população que habita o território do país por cujo interesse se pretende zelar. O poder da fórmula "interesse nacional" é, porém, especialmente assinalável por fundamentar o próprio discurso de muitos dos actores políticos que têm combatido as medidas de austeridade.



o resto da minha crónica no jornal i pode ser lido aqui.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Quem não teme o mar não teme os patrões


O abastecimento de Lisboa e de grande parte do país está hoje nas mãos de um poderoso grupo, em que se entrelaça, por meio de participações mútuas no capital, a Companhia Portuguesa de Pesca, a SNAPA, a Doca Pesca e a GELMAR. Possuem em conjunto frotas de dezenas de navios, estaleiros, fábricas de gelo, frigoríficos e uma grande rede de venda de peixe. O negócio é tão bom ou tão mau que o capital das empresas do Grupo tem estado a ser elevado sucessivamente e orça hoje pelos 750 mil contos. A Companhia Portuguesa de Pesca queixa-se de ter tido só dois mil contos de lucros no ano passado; mas distribuiu pelos administradores, em ordenados e gratificações, 2364 contos.
E quem está à testa do monopólio? O tubarão das pescas não era só Tenreiro, legionário. Esse foi preso e bem preso, mas os outros que não caíram na asneira de se fazerem legionários continuam a encher-se à custa dos pescadores e dos consumidores...
Controla do alto este negócio a família dos Quinas, através do Banco Borges & Irmão. O sector das pescas, como quase toda a economia nacional, está dominado pelo capital monopolista. A sua determinação cega em arranjar a máxima taxa de lucro, o seu poderio financeiro, as suas ligações e influências junto do Estado – tudo isso lhes permite manter uma férrea ditadura sobre os trabalhadores, mesmo depois de ter caído o fascismo. O fascismo são eles. [...] Mantendo a sua greve, os pescadores e tripulantes do arrasto não estão só a conquistar melhores condições de vida; estão a golpear o maior inimigo da classe operária – o capital monopolista.
A Voz do Povo, 13/08/1974

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Estamos todos no mesmo buraco

Agora que o (serviço) público está prestes a ser enviado para o museu de antiguidades e o comum (no comunismo) ainda não saiu da incubadora, porque não ver uma série televisiva que mapeia o capitalismo, tomando a cidade de Baltimore como exemplo. Para complementar o visionamento, a Criticism publica um número exclusivamente dedicado à série The Wire. Ao fim de contas estamos todos no mesmo buraco...