(o meu artigo no i de quinta-feira passada)
Se a política é a arte do possível, quem determina o que é não é possível?
Em política devemos desconfiar das pessoas moderadas. São as menos atentas ao seu próprio extremismo. Vou restringir-me ao campo político que me é mais familiar, o da esquerda. De quando em vez grassa por estas bandas um surto de apelos à moderação. Um primeiro apelo pega-se a outro apelo. Que depois leva a outro e a outro e a outro, até que ao fim do dia há uma correia de moderação que a todos nos atrela. Se aconteceu a alguém acordar com a certeza de que outro mundo era possível, deitar-se-á provavelmente conformado com o menor dos males.
Nos tempos que correm, a correia dos moderados começa por ganhar a forma à direita. É quando o líder do partido da direita pede ao líder do maior partido da esquerda que modere as suas posições em nome do realismo necessário à salvação nacional. Depois o líder do maior partido da esquerda passa o testemunho aos críticos internos desse mesmo partido apelando a que moderem as suas posições em nome do realismo necessário. Estes críticos internos, por sua vez, apelam ao líder do segundo maior partido de esquerda para que também ele modere as suas posições em nome de um realismo igualmente necessário, receita que o líder do segundo maior partido igualmente prescreverá aos críticos internos do seu próprio partido, que, finalmente, fundarão um novo partido que replicará no seu interior a lógica de que inicialmente pretendia excluir-se.
É certo que há quem simplesmente chame realismo a esta escalada de moderação. Mas o que está em jogo não é tanto uma clivagem entre realistas e irrealistas. E sim entre diferentes formas de ver a realidade. Veja-se o que acontece no debate em torno da questão da violência, que frequentemente serve para que se classifique uma parte da esquerda como moderada e uma outra como não-moderada. Do que neste debate se trata, não é tanto de uma oposição entre moderados não-violentos e imoderados violentos. Se perguntarem a um moderado não-violento – um daqueles que rapidamente se apresta a condenar as pedras atiradas por manifestantes atenienses contra a polícia grega porque encontra aí o gesto que inicia o caminho da sociedade rumo ao totalitarismo –, se lhe perguntarem se é contra a existência de forças policiais, ele muito provavelmente dirá que não. Ou seja, o nosso moderado não-violento não é contra a violência, mas sim a favor do monopólio estatal da violência, no qual surpreendentemente não vislumbra indício de qualquer perigo totalitário.
Um outro debate onde a divisão entre moderados e não-moderados tem feito caminho é o que se dá em torno da unidade ou não entre os partidos de esquerdas. Neste debate há os que, em nome de um realismo que seria necessário a fim de derrotar a direita, apelam à moderação dos que consideram imoderados. Aqui os moderados serão os que falam em nome do interesse geral das esquerdas contra a lógica dos interesses particulares que motivaria o núcleo dirigente dos partidos. Funcionam para a esquerda como os “independentes” funcionam para o todo do sistema partidário. Em ambos os casos é como se alguém, por falar em nome do interesse geral, deixasse de dar voz ao seu interesse particular. Não surpreende, por isso, que os adeptos da unidade de esquerda, do líder Gil Garcia ao politólogo André Freire, não acusem qualquer contradição quando decidem apelar à criação de um novo partido de modo a combater a… fragmentação partidária da esquerda.
Em suma, deveríamos não ter medo de começar a falar de realidade no plural. Existe a realidade tal como a observam os moderados e a realidade tal como a entendem os não-moderados. Tentar descobrir qual é a mais verdadeira não só resulta num exercício de ilusionismo como escamoteia o essencial da democracia: a disputa entre convicções diversas, cada qual implicando uma verdade, cada verdade implicando o seu realismo.
Ah, é verdade, o título desta crónica é uma homenagem ao vereador Nunes da Silva, um um moderado homem de esquerda, eleito nas listas de Helena Roseta e António Costa e que, segundo o jornal Público, pretende impedir taxistas sem boa apresentação (com mangas à cava e calção, exemplifica um bastonário de taxistas) de trabalharem na praça de táxis do aeroporto de Lisboa.
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