o meu artigo de hoje no jornal i:
Em nome de um realismo supostamente incolor, que condicionaria a política em tempos de crise, o horror à noção de ideologia parece hoje generalizado da direita à esquerda.
Várias razões ajudam a compreender tamanha aversão. Mencionemos pelo menos uma dessas razões: ao longo do século XX, sob pretexto da necessidade de manter a fidelidade às suas ideologias, poucos não foram os que simplesmente recusaram a possibilidade de um livre debate ideológico. Nestes casos, as ideologias tornaram-se simples catequeses que o missionário deveria pregar às suas ovelhas, punindo as que insistissem em saltar fora do rebanho. Na Europa, desde cedo no século que os fascismos quiseram impor as suas convicções através de censura, prisão e tortura, igualmente praticadas por inúmeros democratas europeus nos seus impérios coloniais.
Mesmo ideologias que se empenharam na denúncia de todas as explorações e opressões acabaram por ser convertidas em razão de Estado: sob a chancela de governos ditatoriais, o comunismo tornou-se nome de um dogmatismo preservado à lei da força. Em suma, o livre debate ideológico, ideia para a qual a prática militante de Rosa Luxemburgo contribuiu como poucas outras, redundou, a leste, em doutrinarismo musculado. Não estranhem pois que o dicionário do meu computador, quando lhe peço que me dê um sinónimo para endoutrinar, me sugira simplesmente o termo enchouriçar…
Com a queda do muro de Berlim, muitos foram os que rapidamente procuraram livrar-se da má fama da ideologia. Destaco os casos dos dirigentes políticos e o dos historiadores, duas espécies de que julgo conhecer alguma coisa. Quanto aos historiadores, veja-se como, quando querem desqualificar o trabalho de um colega, facilmente utilizam como primeira pedra de arremesso o qualificativo ideológico. Assim, trabalho de fulano é mau porque é ideológico, ao que fulano responde que ideológico é, isso sim, o trabalho do outro, até que finalmente vem alguém dizer que ideológicos são os historiadores de esquerda e os de direita, ao passo que os de centro são naturalmente científicos.
No caso dos dirigentes políticos, e no contexto actual de crise, temos por um lado os governos tecnocratas que não gostam de debates políticos: o tecnocrata não estima a retórica parlamentar, com a sua parada e resposta, sem tempo para a tabuada, e tão pouco simpatiza com as contendas eleitorais, com as marés de jornalistas, peixeiras e militantes cujo ruído invade o recato do seu gabinete. Enfim, se a muitos de nós parece fazer tempo que a política se evaporou tanto do espaço parlamentar como dos períodos eleitorais, para o tecnocrata, ao invés, esses ainda serão terrenos excessivamente politizados. O tecnocrata governa por leis científicas e mezinhas técnicas, por manuais de instruções que considera tanto mais eficazes na medida em que julga não estarem contaminados por qualquer tipo de ideologia política.
Diga-se que esta ascensão tecnocrática é tanto mais preocupante na medida em que os críticos dos tecnocratas pouco se têm distinguido da lógica dos próprios criticados. Se o tecnocrata abomina a ideia de ideologia, boa parte dos seus críticos não a tem em melhor conta. Se os neoliberais acham que foi a ideologia socialista que fez com que nas últimas décadas tivéssemos sido submetidos a uma governação que dizem pouco realista, os críticos dos neoliberais acham que são estes que acusam um défice de realismo em razão da sua alienação neoliberal. Ora, quando uma grande parte da esquerda diz que as actuais políticas económicas são pouco realistas e são o fruto de uma obsessão ideológica, sabemos que a tecnocracia já venceu.
Quando, em nome do realismo, se exige uma suspensão das clivagens ideológicas; e quando esta reclamação é feita tanto pelos que à direita se arvoram em defensores da unidade patriótica como pelos que à esquerda pedem que se suspendam as diferenças ideológicas em nome de uma política de unidade de que se julgam os paladinos, é o ar do tempo que começa a tornar-se irrespirável nesta latrina.
Não é a exposição à ideologia que é um problema, mas o facto de tantos crerem ou pretenderem fazer crer que a sua política é a realidade e que a política de quem os critica pertence ao inferno das ideologias.
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