terça-feira, 27 de março de 2012

Um dia para recordar


Se alguma coisa se tornou evidente com tudo isto é que a incredulidade de quem assiste ao comportamento da polícia em situações deste género corresponde à obstinada recusa em aceitar que esse comportamento é absolutamente rotineiro e habitual, variando apenas consoante a classe social, a identidade étnica ou a localização geográfica das pessoas sobre as quais ele se abate. Aqueles bastões não batem com menos força na Cova da Moura ou na Arrentela ou em Chelas do que no Chiado. Nem a sua ameaça é mais democrática contra os piquetes de greve do que contra os profissionais da informação. Mas foi necessário que tudo acontecesse ali, à vista das estátuas de Pessoa e de Camões, para que circulassem como uma demonstração incontornável do que é a violência do Estado num contexto de austeridade.
Aspirando a uma polícia democrática, vinculada ao primado do Direito e absolutamente transparente, multiplicam-se os apelos de esclarecimento do que aconteceu por parte de diversos sectores e até um inquérito foi aberto pela Inspecção Geral da Administração Interna. Mas esta polícia, que já se tornou célebre por disparar sobre carros em fuga em “operações stop”, por executar crianças de 14 anos com um tiro na cabeça, por espancar cidadãos nas esquadras e por percorrer os bairros pobres como um exército ocupante, sempre pôde contar com a maior das complacências por parte da comunicação social e pelas instituições do Estado que têm a seu cargo fiscalizá-la. A sua violência é proporcional ao seu sentido de impunidade e enquanto se ler nos jornais, como se fosse a verdade mais evidente do mundo, que “a polícia foi obrigada a intervir” nesta ou naquela situação, sem que seja necessário verificar o que a levou a intervir e de que forma interveio, episódios destes continuarão a repetir-se, com ou sem jornalistas à mistura.
Da mesma maneira, todos os esforços para diabolizar exclusivamente os agentes fotografados no momento das agressões, punindo-os disciplinarmente para fazer deles bodes expiatórios de uma situação indesejável, apenas perpetuarão o equívoco que trata como uma excepção aquilo que é efectivamente uma regra. Quando batem indiscriminadamente sobre todos os manifestantes, os agentes da polícia fazem-no integrados num aparelho de violência altamente hierarquizado e segundo as ordens que recebem. Não se trata de abusos que seria desejável corrigir, mas de métodos e funções que se aplicam numa base quotidiana.

segunda-feira, 26 de março de 2012

seminário | Pensamento Crítico Contemporâneo











A Unipop e a Associação de Estudantes do ISCTE-IUL organizam um seminário que pretende promover o debate sobre um conjunto de propostas teóricas que, posicionando-se criticamente face ao estado do mundo, têm procurado pensar as circunstâncias presentes e as alternativas que têm sido desenvolvidas no quadro da actual crise económica, mas também do ciclo de revoltas que, do Cairo a Wall Street, passando por Madrid, têm vindo a marcar o ritmo dos tempos que correm.

Ao longo de cinco sessões, o seminário colocará em confronto sensibilidades teórica e politicamente diversas que, organizando-se em torno de autores ou correntes, têm contribuído para a renovação do pensamento contemporâneo a nível da acção dos movimentos sociais, da pesquisa e investigação científicas ou ainda das práticas artísticas e culturais. Cada sessão contará com duas comunicações a cargo de investigadores que, da antropologia à filosofia, passando pela sociologia ou pela economia, entre outras áreas do saber, apresentarão os principais elementos de reflexão dos autores e correntes em questão, seguindo-se um breve comentário a cargo de um terceiro convidado que dará início a um período de debate entre todos os participantes no seminário.

O seminário destina-se a todas as pessoas interessadas em participar, independentemente da sua especialização profissional ou da sua situação académica.

Organização: UNIPOP e Associação de Estudantes do ISCTE-IUL

Local: ISCTE-IUL (Av. das Forças Armadas, Lisboa; Metro: Entrecampos / Cidade Universitária)

Datas: Dias 26 de Abril, 3, 10, 17 e 18 de Maio, das 18h às 20h30

Inscrições: 15 euros (inclui o acesso a todas as sessões e a todo o material em discussão no seminário).

A inscrição em sessão avulsa está limitada à disponibilidade de lugares, não sendo susceptível de reserva prévia. Nesse caso, o valor da inscrição é de 5 euros.

A inscrição deve ser feita por transferência bancária, através do NIB 0035 0127 00055573730 49, seguida de e-mail com o comprovativo para cursopcc@gmail.com.

Lugares limitados.

No final do curso será emitido um certificado de frequência.


Programa:

26 de Abril

Auditório B103

Gayatri Spivak: a subalternidade sexuada, por Adriana Bebiano

Lila Abu-Lughod e o movimento feminista, por Shahd Wadi

Comentário de Manuela Ribeiro Sanches


3 de Maio

Auditório B103

Daniel Bensaid, cientificidade e contratempo no marxismo, por Carlos Carujo

Possibilidades: anarquismo e antropologia em David Graeber, por Diogo Duarte

Comentário de Miguel Serras Pereira


10 de Maio

Auditório B103

Keynes e keynesianismos, por João Rodrigues

Negri e Hardt: Império, multidão e comum, por José Neves

Comentário de Ricardo Noronha


17 de Maio

Auditório B103

Jacques Rancière e a partilha do sensível, por Manuel Deniz Silva

Axel Honneth e Jürgen Habermas: uso público da razão, luta pelo reconhecimento e crítica do capitalismo, por Gonçalo Marcelo

Comentário de João Pedro Cachopo


18 de Maio

Auditório B104

Alain Badiou e a hipótese comunista, por Bruno Peixe Dias

Giorgio Agamben ou a desactivação, por André Dias

Comentário de Miguel Cardoso


Breve apresentação dos oradores:

Adriana Bebiano é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde é directora dos programas de mestrado e de doutoramento em Estudos Feministas. Doutorada em Literatura Inglesa, trabalha em Estudos Irlandeses, Shakespeare e Estudos Feministas.

Shahd Wadi é doutoranda em Estudos Feministas na Universidade de Coimbra e bolseira da FCT. Está a trabalhar num projecto sobre as representações dos corpos de mulheres palestinianas em produtos culturais e artísticos contemporâneos, como lugar de silenciamento e simultaneamente de resistência no contexto do conflito israelo-palestiniano.

Manuela Ribeiro Sanches é professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde investiga nas áreas dos Estudos Culturais, dos Estudos Pós-Coloniais e dos Estudos Literários, e é membro do Centro de Estudos Comparatistas.

Carlos Carujo é professor e mestre em Filosofia pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa.

Diogo Duarte é formado em Antropologia, investigador do Instituto de História Contemporânea (FCSH-UNL) e doutorando na mesma faculdade com uma tese sobre a história do anarquismo e do Estado em Portugal.

Miguel Serras Pereira é autor, entre outros, de Da Língua de Ninguém à Praça da Palavra e Exercícios de Cidadania. É igualmente tradutor de inúmeros escritores e ensaístas de referência.

João Rodrigues é economista e investigador do CES, onde integra o Núcleo de Estudos sobre Ciência, Economia e Sociedade (NECES).

José Neves é professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e é investigador do Instituto de História Contemporânea da mesma faculdade. Tem trabalhado sobre comunismo, nacionalismo, historiografia e desporto.

Ricardo Noronha é investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.

Manuel Deniz Silva é musicólogo, investigador do Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos de Música e Dança, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Gonçalo Marcelo é doutorando na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, investigador da Unidade Linguagem, Interpretação e Filosofia da Universidade de Coimbra e professor assistente convidado de filosofia social e ética na Universidade Católica Portuguesa (Porto). Em 2011 co-editou o livro Ética, Crise e Sociedade.

João Pedro Cachopo é investigador nas áreas da Filosofia Contemporânea, da Musicologia e dos Estudos Literários, tendo-se doutorado com uma tese sobre o pensamento estético de Adorno.

André Dias é doutorando em Ciências da Comunicação/Cinema na Universidade Nova de Lisboa. Investiga as relações entre cinema e filosofia política. Organizou uma conferência sobre biopolítica e traduziu Giorgio Agamben.

Bruno Peixe Dias é investigador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e da Númena – Centro de Investigação em Ciências Sociais e Humanas. Coordenou, com José Neves, a edição do livro A Política dos Muitos. Povo, Classes e Multidão (2010).

Miguel Cardoso é doutorando em Literatura Inglesa em Birkbeck College, University of London.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Alguém já se lembrou disto em situações semelhantes (por exemplo o Z. Neves)

Ver e assobiar para o lado sempre que o Corpo de Intervenção - os mercenários da paz entre as classes - defende a dominação à bastonada dá que pensar. E dá para pensar nisto:

"Quando os nazis levaram os comunistas, não protestei, porque, afinal, eu não era comunista. Quando levaram os social-democratas, não protestei, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando levaram os sindicalistas, não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando me levaram a mim, já não havia ninguém que protestasse."

Martin Niemölle

quarta-feira, 21 de março de 2012

Mas o que é que essa gente tem para oferecer?



O extremismo dos moderados

(o meu artigo no i de quinta-feira passada)


Se a política é a arte do possível, quem determina o que é não é possível?

Em política devemos desconfiar das pessoas moderadas. São as menos atentas ao seu próprio extremismo. Vou restringir-me ao campo político que me é mais familiar, o da esquerda. De quando em vez grassa por estas bandas um surto de apelos à moderação. Um primeiro apelo pega-se a outro apelo. Que depois leva a outro e a outro e a outro, até que ao fim do dia há uma correia de moderação que a todos nos atrela. Se aconteceu a alguém acordar com a certeza de que outro mundo era possível, deitar-se-á provavelmente conformado com o menor dos males.

Nos tempos que correm, a correia dos moderados começa por ganhar a forma à direita. É quando o líder do partido da direita pede ao líder do maior partido da esquerda que modere as suas posições em nome do realismo necessário à salvação nacional. Depois o líder do maior partido da esquerda passa o testemunho aos críticos internos desse mesmo partido apelando a que moderem as suas posições em nome do realismo necessário. Estes críticos internos, por sua vez, apelam ao líder do segundo maior partido de esquerda para que também ele modere as suas posições em nome de um realismo igualmente necessário, receita que o líder do segundo maior partido igualmente prescreverá aos críticos internos do seu próprio partido, que, finalmente, fundarão um novo partido que replicará no seu interior a lógica de que inicialmente pretendia excluir-se.

É certo que há quem simplesmente chame realismo a esta escalada de moderação. Mas o que está em jogo não é tanto uma clivagem entre realistas e irrealistas. E sim entre diferentes formas de ver a realidade. Veja-se o que acontece no debate em torno da questão da violência, que frequentemente serve para que se classifique uma parte da esquerda como moderada e uma outra como não-moderada. Do que neste debate se trata, não é tanto de uma oposição entre moderados não-violentos e imoderados violentos. Se perguntarem a um moderado não-violento – um daqueles que rapidamente se apresta a condenar as pedras atiradas por manifestantes atenienses contra a polícia grega porque encontra aí o gesto que inicia o caminho da sociedade rumo ao totalitarismo –, se lhe perguntarem se é contra a existência de forças policiais, ele muito provavelmente dirá que não. Ou seja, o nosso moderado não-violento não é contra a violência, mas sim a favor do monopólio estatal da violência, no qual surpreendentemente não vislumbra indício de qualquer perigo totalitário.

Um outro debate onde a divisão entre moderados e não-moderados tem feito caminho é o que se dá em torno da unidade ou não entre os partidos de esquerdas. Neste debate há os que, em nome de um realismo que seria necessário a fim de derrotar a direita, apelam à moderação dos que consideram imoderados. Aqui os moderados serão os que falam em nome do interesse geral das esquerdas contra a lógica dos interesses particulares que motivaria o núcleo dirigente dos partidos. Funcionam para a esquerda como os “independentes” funcionam para o todo do sistema partidário. Em ambos os casos é como se alguém, por falar em nome do interesse geral, deixasse de dar voz ao seu interesse particular. Não surpreende, por isso, que os adeptos da unidade de esquerda, do líder Gil Garcia ao politólogo André Freire, não acusem qualquer contradição quando decidem apelar à criação de um novo partido de modo a combater a… fragmentação partidária da esquerda.

Em suma, deveríamos não ter medo de começar a falar de realidade no plural. Existe a realidade tal como a observam os moderados e a realidade tal como a entendem os não-moderados. Tentar descobrir qual é a mais verdadeira não só resulta num exercício de ilusionismo como escamoteia o essencial da democracia: a disputa entre convicções diversas, cada qual implicando uma verdade, cada verdade implicando o seu realismo.

Ah, é verdade, o título desta crónica é uma homenagem ao vereador Nunes da Silva, um um moderado homem de esquerda, eleito nas listas de Helena Roseta e António Costa e que, segundo o jornal Público, pretende impedir taxistas sem boa apresentação (com mangas à cava e calção, exemplifica um bastonário de taxistas) de trabalharem na praça de táxis do aeroporto de Lisboa.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Índios metropolitanos


Toda a gente sabe o que aconteceu aos habitantes do continente americano após a chegada dos europeus. Quando não foram massacrados durante a conquista ou dizimados pelas doenças e pela escravatura, enfrentaram sucessivas vagas de colonizadores que acabaram com o seu modo de vida, cercando as planícies e abatendo sistematicamente a sua caça. Para os mais inconformados, sobrou a cavalaria e um combate tão desesperado quão desigual contra a morte lenta a que foram condenados.
Olhamos hoje em dia com simpatia para o que resta da sua memória e somos capazes de reconhecer dignidade na sua insubmissão, para além do fascínio exercido pela sua cultura. Mas é preciso recordar que estes foram durante muito tempo encarados como “selvagens” que se opunham ao progresso e que era necessário pacificar. Toda uma civilização (esta) pode fazer recuar a sua genealogia a esse momento original de genocídio e barbárie.   
Salvaguardadas as devidas (e importantes) diferenças, é um processo semelhante que vivemos hoje. Uma nova ordem se desenha, na qual não sobrará espaço para outros modos de vida que não os da produção e do consumo, da resignação encolhida e do silêncio obediente. Culturas e valores incompatíveis com este futuro alucinante serão “pacificadas”, espoliadas dos seus territórios e colocadas em reservas. Para os mais inconformados, sobrará a cavalaria, como não se cansam de nos repetir. Todos sabemos o que aconteceu e é por isso mesmo que, a poucos dias de uma greve geral, os “selvagens” que povoam o território metropolitano devem ter noção do que está em causa. Está na altura de desenterrar o machado de guerra.  

quinta-feira, 15 de março de 2012

Um ano depois


Perfaz hoje um ano que milhares de pessoas saíram à rua, numa manifestação que passou à história como a da “geração à rasca”. Convocada através das redes sociais e ampliada pelo destaque que recebeu na comunicação social, a manifestação converteu-se num pólo aglutinador de todos os descontentamentos e ambições, juntando na mesma avenida precários e reformados, recém-licenciados no desemprego e dirigentes da JSD, homens da vida e mulheres da luta.
O que mudou desde então está bem à vista. O vento quente que soprava do Norte de África alastrou a várias partes do globo e as imagens de manifestações, ocupações, confrontos, motins e turbulências várias tornaram-se banais nos ecrãs de televisão. O inconfundível odor da anarquia difunde-se pelas ruas de diversas cidades, como se de um desodorizante se tratasse.
Por cá, a coisa também não esteve parada. Primeiro as assembleias do Rossio, depois a manifestação de 15 de Outubro, seguida de uma manifestação em dia de greve geral e muitas outras mobilizações. Perdeu-se muito da inocência inicial e “o movimento” ganhou consistência à medida que foi confrontado com clivagens e forçado a fazer escolhas. Vários candidatos a dirigentes apareceram e desapareceram sem deixar vestígios. Já não se ouve ninguém a mandar os manifestantes sentarem-se quando a coisa aquece e a coisa aquece cada vez mais. Quando pretendem esconjurar os seus fantasmas, os comentadores televisivos garantem-nos que Portugal não é a Grécia.
Um ano depois, existe um grande caos debaixo dos céus. A situação é excelente.

segunda-feira, 12 de março de 2012

11 de Março





Montagem que inclui a reportagem do 11 de Março feita e narrada por Adelino Gomes

domingo, 11 de março de 2012

«Brothers, sisters, can’t you see? The future’s owned by you and me»

É oficial, Jarvis Cocker tem livro. Intitulado «Mother, Brother, Lover» (Faber and Faber, 2011), o livro reúne as letras que o vocalista dos Pulp escreveu entre 1983 e 2009. Nelas identificamos a faceirice, a flama e o fulgor que caracterizam os grandes escritores de canções. Mas panteões não são os melhores lugares para arrumar aquele que pretende viver a sua vida como gente comum e escrever canções sobre os aspectos mais triviais da vida quotidiana. Imbuído do espírito de Henri Lefebvre, Jarvis sugere que o homem deve sê-lo na vida diária, por isso aconselha-nos a acasalar o «mudar o mundo» de Marx com o «mudar de vida» de Rimbaud, transformando esses dois princípios num só. Segundo as contas do Godard, que nunca foi bom a matemática, one plus one daria Rolling Stones.

Contrariamente à maioria dos escritores de canções, Jarvis tem algo a dizer. Owen Hatherley percebeu isso e resolveu editar o ensaio «Uncommon. An essay on Pulp» (Zero Books, 2011), que é um livro bem jeitoso, sobretudo porque encontra na obra dos Pulp a resposta para três problemas da vida diária. A saber: sexo, urbanismo e classe.

Sexo: Jarvis é um dos melhores criadores de personagens femininas do universo pop, superando claramente Bryan Ferry, que devia ser estudado nos seminários de Lacan, tal o número de fantasias que Ferry produziu sobre o segundo sexo. Confiram-se as suas letras sobre mulheres intocáveis, pins-ups embalsamadas e capas de disco dos Roxy Music que se assemelham a calendários de camionista, mas para gente aprumada. Neste compêndio de fantasias, as mulheres personificariam o «objet petit a», um objecto de desejo sempre inalcançável e inatingível, como se Bryan Ferry temesse que o seu ideal de beleza se desvanecesse caso se corporizasse, ver por exemplo a canção «Beauty Queen». Jarvis, por seu turno, manda os idealismos às urtigas, como comprovam os gemidos, uivos e suspiros que abundam nas suas canções. As quais optam por relatar os pormenores mais sórdidos e mundanos da vida comum, como a virgindade («do you remember the first time»), adultério («acrylic afternoons»), voyeurismo («i spy»), etc.

Urbanismo: os subúrbios de Sheffield como nunca antes os vimos e as vicissitudes de uma cidade pós-industrial, cheia blocos, torres, tédio, frustração e desemprego.

Classe: em meados da década de 1990 os Pulp lançaram o mote: «I’m common». Segundo Marx, o comum seria a «expressão positiva da abolição da propriedade privada» (para mais informações ver artigo de Michael Hardt, «O comum no comunismo», no número 1 da sensacional revista Imprópria). Os Pulp sempre pertenceram a uma «classe diferente», como comprova a canção «Mis-Shapes» que, além de ser a melhor canção de intervenção da história da pop, é um convite expresso para entrarmos na luta de classe contra classe, até à vitória final, viva a classe operária, abaixo o capital. Pondo em termos cockerianos: «they think the’ve got us beat but revenge is going to be so sweet».

Embora as aspirações à totalidade estejam patentes nas letras de Jarvis Cocker, ele autoavalia a sua obra de forma mais modesta. No prefácio de «Mother, Brother, Lover», Jarvis realiza o habitual exercício de falsa modéstia, dizendo que a pop não é ópera, e que o comum dos mortais está-se cagando, para citar o ex-presidente do benfas Vilavinho, para as letras das canções. Para nos alertar para a inutilidade das letras, Jarvis veste a farda de historiador, contando-nos a história do clássico rock, «Louie, Louie» que, segundo rezam as crónicas, foi objecto de investigação do FBI porque um ouvinte mais fantasioso terá ouvido o seguinte verso na canção: «i felt my boner in her hair». Após longa investigação, o FBI afirmou que não estava habilitado para interpretar o significado da letra, dado que ela era demasiado obscura. Jarvis retirou os seguintes ensinamentos deste episódio: se nem o FBI descobre sobre o que é que tu estás a cantar para quê escreveres canções? Por outro lado, se ninguém ouve as tuas letras, e se estas não interessam a ninguém, porque não escreveres sobre tudo o que te der na telha, documentando a história da tua vida, real e imaginária, com canções pop? Foi isso que Jarvis decidiu fazer. E decidiu bem, penso eu de que...



quinta-feira, 1 de março de 2012

O fim da festa



Imagine o leitor o salão de festas da paróquia ou o gimnodesportivo da freguesia, numa dessas noites animadas em que há qualquer coisa a celebrar. Canta-se e dança-se ao som de uma música que é mais ritmo do que melodia, bebe-se e come-se, acordam-se os vizinhos e lançam-se todos os foguetes. E no final, quando a música acaba e os convivas começam a desaparecer furtivamente, uns quantos ficam para o fim, a fazer contas e a esvaziar garrafas.
De manhã, o pessoal da limpeza depara-se com os despojos da noite, uns quantos corpos inertes, casas de banho inundadas e um inconfundível aroma a fim de festa. Nada a que não estivessem habituados, não fosse o facto de lhes ter sido também deixada a factura, que só encontram uma vez completa a limpeza, com todas as despesas e uma nota pessoal a lamentar o facto de a festa ter chegado ao fim. É necessário, explica-se, que todos assumam agora as suas responsabilidades.
Relembram então o sorriso enigmático e o olhar comprometido nos rostos dos últimos convivas. Os mesmos que lhes haviam garantido que era necessário que alguns se divertissem à vontade para que os outros tivessem o que limpar. Que juraram que aqueles que limpassem melhor poderiam um dia vir a ser convidados ou até vir a ter a sua própria festa.
Foi por isso com inevitável tranquilidade que os últimos foliões apagaram a luz antes de sair. Algures noutros lados, novas festas os aguardam. E os mesmos do costume continuarão a levar baile. Até que a música seja outra, para eles restará sempre o fim da festa.
Artigo do iOnline.

Ideologia é a tua tia?

o meu artigo de hoje no jornal i:


Em nome de um realismo supostamente incolor, que condicionaria a política em tempos de crise, o horror à noção de ideologia parece hoje generalizado da direita à esquerda.

Várias razões ajudam a compreender tamanha aversão. Mencionemos pelo menos uma dessas razões: ao longo do século XX, sob pretexto da necessidade de manter a fidelidade às suas ideologias, poucos não foram os que simplesmente recusaram a possibilidade de um livre debate ideológico. Nestes casos, as ideologias tornaram-se simples catequeses que o missionário deveria pregar às suas ovelhas, punindo as que insistissem em saltar fora do rebanho. Na Europa, desde cedo no século que os fascismos quiseram impor as suas convicções através de censura, prisão e tortura, igualmente praticadas por inúmeros democratas europeus nos seus impérios coloniais.

Mesmo ideologias que se empenharam na denúncia de todas as explorações e opressões acabaram por ser convertidas em razão de Estado: sob a chancela de governos ditatoriais, o comunismo tornou-se nome de um dogmatismo preservado à lei da força. Em suma, o livre debate ideológico, ideia para a qual a prática militante de Rosa Luxemburgo contribuiu como poucas outras, redundou, a leste, em doutrinarismo musculado. Não estranhem pois que o dicionário do meu computador, quando lhe peço que me dê um sinónimo para endoutrinar, me sugira simplesmente o termo enchouriçar…

Com a queda do muro de Berlim, muitos foram os que rapidamente procuraram livrar-se da má fama da ideologia. Destaco os casos dos dirigentes políticos e o dos historiadores, duas espécies de que julgo conhecer alguma coisa. Quanto aos historiadores, veja-se como, quando querem desqualificar o trabalho de um colega, facilmente utilizam como primeira pedra de arremesso o qualificativo ideológico. Assim, trabalho de fulano é mau porque é ideológico, ao que fulano responde que ideológico é, isso sim, o trabalho do outro, até que finalmente vem alguém dizer que ideológicos são os historiadores de esquerda e os de direita, ao passo que os de centro são naturalmente científicos.

No caso dos dirigentes políticos, e no contexto actual de crise, temos por um lado os governos tecnocratas que não gostam de debates políticos: o tecnocrata não estima a retórica parlamentar, com a sua parada e resposta, sem tempo para a tabuada, e tão pouco simpatiza com as contendas eleitorais, com as marés de jornalistas, peixeiras e militantes cujo ruído invade o recato do seu gabinete. Enfim, se a muitos de nós parece fazer tempo que a política se evaporou tanto do espaço parlamentar como dos períodos eleitorais, para o tecnocrata, ao invés, esses ainda serão terrenos excessivamente politizados. O tecnocrata governa por leis científicas e mezinhas técnicas, por manuais de instruções que considera tanto mais eficazes na medida em que julga não estarem contaminados por qualquer tipo de ideologia política.

Diga-se que esta ascensão tecnocrática é tanto mais preocupante na medida em que os críticos dos tecnocratas pouco se têm distinguido da lógica dos próprios criticados. Se o tecnocrata abomina a ideia de ideologia, boa parte dos seus críticos não a tem em melhor conta. Se os neoliberais acham que foi a ideologia socialista que fez com que nas últimas décadas tivéssemos sido submetidos a uma governação que dizem pouco realista, os críticos dos neoliberais acham que são estes que acusam um défice de realismo em razão da sua alienação neoliberal. Ora, quando uma grande parte da esquerda diz que as actuais políticas económicas são pouco realistas e são o fruto de uma obsessão ideológica, sabemos que a tecnocracia já venceu.

Quando, em nome do realismo, se exige uma suspensão das clivagens ideológicas; e quando esta reclamação é feita tanto pelos que à direita se arvoram em defensores da unidade patriótica como pelos que à esquerda pedem que se suspendam as diferenças ideológicas em nome de uma política de unidade de que se julgam os paladinos, é o ar do tempo que começa a tornar-se irrespirável nesta latrina.

Não é a exposição à ideologia que é um problema, mas o facto de tantos crerem ou pretenderem fazer crer que a sua política é a realidade e que a política de quem os critica pertence ao inferno das ideologias.