quarta-feira, 2 de novembro de 2011

«Agora é cada um por si e Deus contra»

«Agora é cada um por si e Deus contra», a frase podia ser um dos motes dos fundamentalistas que nos governam, mas não é. Ela foi retirada do filme de Joaquim Pedro de Andrade, Macunaíma, uma alegoria fantástica sobre o Brasil, adaptada do romance homónimo de Mário de Andrade, publicado em 1928, que foi uma seta no coração da linguagem bacharelesca e postiça dos literatos que dominavam as letras brasileiras.
O filme é uma adaptação psicodélica, ao estilo de «Os Mutantes» («são demais», como diria Caetano Veloso antes de se entregar às lamechices de voz e violão), da história de um herói preguiçoso, safado e sem nenhum carácter. Macunaíma nasce homem feito, mas só fala pela primeira vez aos seis anos de idade, para dizer: «Ai, que preguiça!». Uma fala que ecoou nos quatro cantos do mundo e pôs ao rubro os lafargueanos, uma facção marxista que por destino, ou necessidade, tem cada vez mais seguidores. O filme estreou em 1969, ano erótico, segundo Gainsbourg, mas também ano de ditadura militar, guerrilha urbana, peace and love e uso de substâncias psicotrópicas. São essas substâncias que operam uma transformação decisiva na vida de Macunaíma, que nasce preto retinto, «filho do medo e da noite», e se transforma num príncipe branco e «lindo». Quem o diz é a sua cunhada, Sofará, a mesma que lhe oferece a substância transfiguradora, presumivelmente maconha, ou erva do diabo, como é conhecida no lado de cá do atlântico. Inicia-se aqui uma bela amizade que se materializa numa série de «brincadeiras» entre cunhados na densa floresta de Uraricoera.
Entre tanta fanfarronice e safadeza não há lugar para mitos de democracia racial, nem fábulas sobre a acomodação plástica das três raças no Brasil. Aqui o racismo é uma realidade latente, como demonstra a metamorfose de Macunaíma, que uma vez branco passa a ser objecto de desejo feminino, abandonando de vez a «feiura de sua raça» e o menosprezo social. O mesmo não acontece com o seu irmão negro, Jinguê, o eterno preterido pelas mulheres. As transas de Macunaíma, das quais se destacam as «brincadeiras» com Ci, a guerrilheira urbana que arrebata o coração do nosso anti-herói, vão ser uma constante na sua vida. É, aliás, por falta de «brincadeira» que o personagem principal bate a bota, o que acontece quando Macunaíma se dirige ao lago para refrear o seu desejo com água fria. No lago Macunaíma depara com uma moça encantadora, Uiara de seu nome, a comedora de gente, que deglute o nosso anti-herói, tal como Saturno tinha devorado os seus filhos. Foi o último mergulho de Macunaíma, que pela libertinagem viveu pelo vício morreu.
Para os que gostam de mergulhar nas águas profundas do «inconsciente político» o filme dá pano pra mangas. Nos seus múltiplos episódios o filme revela-se uma fonte prodigiosa de «alegorias do subdesenvolvimento» e significados ocultos, encerrados debaixo da superfície e à espera que o seu «inconsciente político» seja decifrado. Trocando por graúdos, Macunaíma morre com uma jaqueta verde, semelhante à usada pelos militares, que se transforma numa poça de sangue, naquela que é uma alegoria às mortes causadas pela ditadura militar e através da qual se entrevê o fim do regime sanguinário. Em tempos de capitalismo realista e de prédicas diárias sobre a austeridade talvez nos faltem alegorias deste tipo, que antecipem o futuro através de sugestões, analogias e onde o poder da imaginação possa estabelecer pontos de fuga ao universo empírico que nos constrange. É que num país cada vez mais rendido ao desespero, medo e desolação não podemos «fingir escolarmente que não aconteceu nada – e escrever poemas cheios de honestidades várias e pequenas digitações gramaticais, com piscadelas de olho ao real quotidiano. Aqui, o autor diz: desculpe, sr. dr. mas: merda!», Herberto Helder dixit («movimentação errática», Photomaton &Vox, p.131).
Voltando ao filme. Joaquim Pedro de Andrade, um dos impulsionadores do Cinema Novo, e autor do belíssimo «Garrincha, Alegria do Povo», apresenta-nos um compêndio da inversão em que a maior parte dos mitos e lendas do Brasil se encontram «fora do lugar», para parafrasear Roberto Schwarz. Sem paraíso tropical, destino nacional, nem heroísmo ou carácter. Neste quadro não falta o retrato dos danados da terra a bordo de um camião sobrelotado a caminho da cidade, que chegados ao destino são avisados que agora «é cada um por si e Deus contra». Apesar da advertência, a cidade é um palco aberto para a luta de classes, onde até um herói sem carácter, como Macunaíma, assume por uma vez o papel de sujeito da história, travando uma luta final com o gigante capitalista Venceslau Pietro Pietra, que tinha ficado com o amuleto da sua amada, o muiraquitã. Mesmo não sendo por razões altruístas, Macunaíma, munido de arco e flecha, acaba por matar o gigante capitalista com uma seta no traseiro. Talvez equipados com arcos e flechas, e com a pontaria afinada, possamos abreviar este tempo sem nenhum carácter e de antropofagia recauchutada.

2 comentários:

  1. O filme é bom, o realizador também, já aquele que assina com o nome do subcomandante tenho dúvidas que consiga fazer grandes posts. Em todo caso «brigadu», como diria o kamba Paulo Flores

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