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sábado, 25 de junho de 2011

Do fosco e do estremecido: exercícios de aproximação ao povo

Parte III do folhetim em farrapos "À farinha não se faz festinhas, que é uma porcaria. Ao povo também não" (Parte I aqui e Parte II aqui)


No que toca à aproximação ao povo, que foi onde ficámos, não há um consenso entre os estudiosos. Ainda assim, a maioria dos manuais disponíveis aconselha o uso de uma faca e um espelho. Idealmente, uma coisa em cada mão, para maior liberdade de movimentos.

Aqui, como adivinharão os sabidos leitores, começam logo os problemas.

É preciso muita ginástica.

Haverá mil maneiras de esfolar um gato, mas esfolá-lo em movimento é dos diabos. Ainda por cima os gatos são manhosos. Pode não parecer, mas isto tem tudo a ver com o povo.

É muito pouco provável, mas ponhamos a hipótese de até aqui não ter sido suficientemente claro. A este propósito, convém lembrar que  o objectivo da ciência não é o de tornar o obscuro claro, mas o de perceber as razões da obscuridade. A obscuridade é. Nós somos. Portanto, vamos lá espreitar. Uma coisa é certa, é preciso passar algum tempo em sítios muito escuros, e fazer tantas festinhas ao opaco que a pele na ponta dos dedos começa a descamar. Há muita gente que prefere usar luvas, mas pessoalmente acho que perde a piada. E é pela piada que cá estamos.

O meu conselho: vão habituando os olhos. Ao escuro, por um lado, e à ciência, por outro.

Do que se trata, no fundo (e isto talvez já tenha dado para perceber), é de anatomia. Diga-se que a anatomia, aparentemente a arte da transparência (de uma certa transparência), da exactidão (de uma certa exactidão), e da quietude (uma certa quietude), seria difícil sem um certo amor – inconfessado, claro - pelo fosco e pelo estremecido. Sem o estremecido não se percebia nada, sem o fosco – que pode até ser apenas aquela mancha minúscula num traço aparentemente limpíssimo – faz doer muito os olhos. É aliás fácil perceber isto se pensarem que uma visão demasiado clara, como um aparelho de raio-X demasiado poderoso, é das coisas mais inúteis que se pode ter, porque não se vê nada. O fosco é onde pára a transparência. Do que se trata, no fundo, é do fosco. E, claro, da sua relação com a transparência. Só esclarecendo esta questão é que podemos abordar o povo com o rigor que merece.

Deixemos portanto de parvoejar e vamos ao que interessa.

sábado, 18 de junho de 2011

KRSCHRRRSHKRR. É, no fundo, do que se trata.

Do folhetim "À farinha não se faz festinhas, que é uma porcaria. Ao povo também não." (Continua daqui




Ficha 2

Retomemos o fio à meada. Falava de coisas sérias e difíceis. Vejamos como nos aproximarmos.

Tenho queda para circunlocuções. São como as pastilhas elásticas coladas debaixo das mesas dos cafés: têm uma utilidade perversa. E dão tonturas. Um bocado como quando temos que atar os atacadores mas não há maneira do nó ficar direito e entretanto distraímo-nos, ou temos um nódoa na parte de baixo das calças e pomo-nos a esfregar para ver se sai e... Ou como quando nos pomos a pensar numa coisa e damos uma volta a mais na rosca reflexiva e faz aquele barulho parecido com os cabos de alta tensão quando chove. Ou quando vemos uma rapariga gira – ou um rapaz giro, conforme - e ficamos assim muito quietinhos e muito calados a fazer força subtilmente naqueles músculos da cara que sugerem um mundo interior faustoso, uma paisagem doce e agreste onde a melancolia e o humor, a inteligência e a ternura, a superioridade natural e a modéstia zelosamente adquirida se fundem num caldo de romantismo, inocência viril e espanto. E depois ouve-se assim: pffffsssst. 

Mas falava de ciência. Enfim, do povo, de padarias, mas sobretudo de ciência.

Vejam!, dizem as pessoas. Ou: vê lá que... e por aí fora. É disso, no fundo, que se trata. As pessoas não sabem bem do que falam quando dizem estas coisas. É para isso que há a ciência. Quando alguém não sabe bem do que fala, é aí que entra a ciência.

Isso e quando certas pessoas chegam à conclusão que não bastam os efeitos, é preciso as causas. As causas. Toda a espantosa e ruminante e espantosa papa em que mergulham as pernas muito fininhas das causas. Toda a tristeza das causas. Mas já estou a perder outra vez o fio à meada.

Traduzindo isto por miúdos: quando não basta – e não basta, de facto – olhar para a superfície dos detergentes da louça. É preciso ir mais fundo. Por isso falei do cerne.

Mas adiante.

O sem senso tem sempre, como o velcro,
uns ganchos pequeninos a que nos podemos agarrar.

KRSCHRRRSHKRR: isto podia ser o som do velcro, o som da nossa atenção a tentar agarrar-se aos pêlos do .... E dos cabos de alta tensão quando chove.

Mas não é disto que queria falar.

Ainda não, pelo menos. Ainda não.

É sempre bom começar por nos aproximarmos, ainda que com cautela. Vá! dizem as pessoas. E coisas como: meu amor, meu amor. E: em casa de ferreiro, nao sei quê. E: arranca-me lá isto que dói como o caraças! E aí percebe-se que a ciência faz muita falta. A questão do cerne, outra vez. A questão é: como perceber isto tudo.

E é disso, no fundo, que se trata.

No que toca ao povo, a aproximação é quase sempre a parte mais difícil.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

À farinha não se faz festinhas, que é uma porcaria. Ao povo também não

Contribuições metodológicas para o estudo do povo e da sua relação com as padarias. Mais ou menos.



 Ficha I


Uma primeira aproximação a um tema que nos preocupa a todos, que é o da relação entre nós, as pessoas, por um lado, e as padarias e o povo, por outro. Mais cedo ou mais tarde, alguém tinha que falar nisto.  Digamos que é o meu pequeno contributo para a ciência.

Os leitores de blogues, quando vêm assim muitas palavras juntas por aí abaixo, sem fim à vista, têm tendência para ficar com comichões em sítios esquisitos. Isso passa. Lembrem-se: é tudo em nome da ciência. Ainda assim, para facilitar, vou seguir a lição de Jack o Estripador e fazer a coisa por partes.  

Enfim. Apesar do meu desejo ardente de ir direitinho ao cerne da questão (e é com o cerne das questões que se ocupa, afinal de contas, a ciência – o que vai florescendo em volta do cerne é antes do domínio dos apetites, do palavreado, ou da palhaçada, conforme),

portanto, como dizia, apesar do meu desejo de ir direitinho ao cerne da questão, em relação a esta matéria, não há, e nisto estaremos todos de acordo, um ponto de entrada óbvio.

Um portão, por assim dizer, que nos conduzisse do desconforto ruidoso, cheio de correntes de ar e pêlos e mais não sei quê, do desejo e mais não sei o quê

até ao sossego almofadado e quentinho que caracteriza o cerne e que lhe dá o seu encanto. E que nos dá, é preciso admiti-lo, um certo medo.

Deus sinistro, assustador, impassível, disse o Baudelaire. Era sobre relógios, mas também se aplica. ‘Onde o branco é desolado e sujo/Onde o branco é a cor que fica onde não há cor/E onde a luz é cinza’. Isto disse a Sophia, mas sobre Hospitais. Agora imaginem isto mas à noite, e de luz apagada.

Desconfio que há ainda muito a descobrir nesta matéria. Pela física, pela metafísica e pela espeleologia.

Por exemplo. Que o cerne é mais húmido do que parece à primeira vista (e a ciência é precisamente aquilo que se atira por cima das primeiras vistas, sem saber bem onde vai aterrar), mais despenteado do que parece (o melhor é usar uma daquelas coisas impermeáveis, que corta o vento). Que amadurece, que se transforma quando estamos distraídos. Que nele há aragens, subtilezas (a subtileza é essencial), barulhos nunca ouvidos.

Como quando nos chegamos muito perto a uma tela do Rembrandt.

Como quando se lê devagar uma descrição de Raul Brandão:

Na ria o ar tem nervos (...) a luz aqui estremece antes de pousar.

Por exemplo. Quando se lê devagar. Por exemplo. Quando nos chegamos muito perto a qualquer coisa depois de um tremendo desgosto.

Para que se ouça a voz do cerne é preciso cantar-lhe a sua própria canção. Isto disse mais ou menos o Marx, a propósito de outra coisa. Mas dizia: é preciso cantar ao cerne a sua própria canção. Só ainda não sabemos qual ela é. Eu vou tentando. Quando conseguir, quando acertar com o tom, terei finalmente a a certeza de que não existe.

Esconjurar, portanto: é disso que se trata.

O cerne é um ponto de emergência. Em ambos os sentidos.

Mas o melhor é não falar destas coisas, que não é para isso que cá estamos.

Falava de ciência. Enfim, do povo, de padarias, mas sobretudo de ciência.

Tudo muito subtilmente, hã. A subtileza é essencial.


PS: Este texto, de que esta é apenas a primeira tranche, foi escrito para ser lido numa intervenção e desbunda colectiva na Padaria do Povo, em Dezembro de 2009. Fiz umas pequenas alterações. Quanto a isto de apresentar a coisa em fascículos, para além da questão prática, digo só o seguinte: se eu não tentar ser o Zola do século XXI, quem tentará?