quinta-feira, 25 de outubro de 2012

De que falamos quando falamos de alternativa?


(o meu artigo no i de hoje)

É urgente mudar os conteúdos das políticas que nos governam? Sim, é urgente, e no entanto não basta simplesmente mudar os conteúdos.

O artigo que escrevi há duas semanas dirigia críticas à ideia de alternativa que me parece ter sido acalentada em iniciativas como o “Congresso das Alternativas”. Em troca recebi algumas respostas que desde já agradeço.
A questão que pretendi colocar a debate naquele artigo foi: de que falamos quando falamos de alternativas? Julgo importante fazer esta pergunta porque, a meu ver, a actual situação política não exige simplesmente propostas políticas com conteúdos diferentes, mas também outra forma de organização do trabalho político. Esta exigência interpela a chamada esquerda do “arco da governação”, isto é, o PS, que por alternativa tem entendido, sobretudo, alternância governativa, mas também julgo interpelar a restante esquerda que navega na órbita parlamentar. Não esqueço que comunistas e bloquistas sempre exigiram uma mudança de políticas e não simplesmente uma alteração dos políticos, mas, se ontem teria eventualmente bastado o muito que seria substituir políticas económicas liberais por políticas económicas de pendor social-democrata, creio que hoje não só não chegará mudar de políticos como também não bastará mudar de políticas. É também preciso, sim, mudar a política.
Os trabalhos que esta mudança implica não são simples e ninguém garante um final feliz. São várias as hipóteses que estão na ordem do dia.
A primeira é a de uma mudança de orientação tecnocrática. Do ponto de vista tecnocrático, o confronto político entre os partidos no quadro parlamentar é uma espécie de fábrica de mistificações ideológicas que se limita a atrapalhar a eficiência governativa. Haveria, então, que remover o parlamento (ou até mesmo as eleições) para nos aproximarmos da verdade das coisas.
A segunda hipótese é a hipótese populista. Mais do que na ideia da política como um lugar contaminado por ideologias cuja abstracção só atrapalhará o melhor governo do país, esta hipótese assenta na suposição de que a política é hoje um lugar dominado por palavras despidas de emoções, que através de artifícios retóricos acaba por nada dizer ao coração de um povo que por este efeito se vê excluído do sistema.
A terceira hipótese é a que me parece ser alimentada por iniciativas como o “Congresso das Alternativas”. Esta hipótese dirige a sua crítica não ao sistema demo-parlamentar por inteiro mas ao monopólio que dele fariam os partidos políticos. Em alternativa a este monopólio, haveria que procurar um sistema de representação em que, por exemplo, as personalidades teriam maior margem de manobra. É o discurso alimentado por vários independentes de esquerda, de ex-dirigentes partidários a jovens intelectuais cujo brilho é indisputável.
Por que não me agrada esta terceira hipótese? Porque a hipótese que me anima é a da possibilidade de uma experiência democrática além do sistema representativo vigente. Neste sentido, o meu problema com o BE e o PCP não reside no facto de eles monopolizarem a representação parlamentar do famigerado povo da esquerda ou de serem mais ou menos eficazes na sua performance político-institucional. O meu problema reside no facto de a vida político-institucional – e o circuito mediático e a lógica estatal que ela envolve – tender a monopolizar a política desses partidos. Acresce, ainda, que BE e PCP, com os infinitos defeitos que têm, guardam uma vantagem em relação a um "Congresso das Alternativas" que, podendo ter sido uma experiência de construção política colectiva, pouco fez para evitar que se apresentasse em público como uma constelação de protagonismos individuais. Ora, ao culto da liberdade individual e do brilhantismo intelectual dos independentes de esquerda continuarei a preferir o colectivismo dos militantes partidários, com todos os problemas que o colectivismo também suscite.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Quando me dizes "Vem", já eu parti (1943-2012)


Documentário Manuel António Pina from Terra Líquida Filmes on Vimeo.

De algum modo, Maio de 68 aconteceu dentro do nos­so coração. Era aí que, também nós, nos barricávamos então con­tra a pequenez do nosso tempo e do nosso lugar. E, sim, também nós (conselhistas, anarquistas, guevaristas, trotskistas, enragés de todas as espécies), dentro do coração nos sentíamos, mansamente embora, la pègre e la chienlit.  [...]
Amávamos sem regras, escrevíamos poemas, cantávamos can­ções, saíamos à noite para pintar afrontas nas paredes («Abaixo a Guerra Colonial», ou, mudando duas letras, transformando o «Droga = loucura, morte» governamental em «Tropa = loucura, morte») ou lançávamo-nos em correria pelas ruas da Baixa ape­drejando as montras de bancos e dispersando antes da chegada da Polícia. Para nós eram tão risíveis os fatos escuros dos minis­tros como a sisudez operária do PC e dos maoistas.
Manuel António Pina, via Rui Bebiano

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Uma aquisição para sempre


 Há uns anos João Galamba recomendava-nos a leitura de uma obra de Marx que só ele conhecia, O idealismo alemão. É agora a vez de Pedro Picoito se colocar em bicos de pés para recomendar a terceiros a leitura do 18 de Brumário de Luís Napoleão. Seria trágico, se não fosse simplesmente ridículo, ver alguém a exibir na mesma frase o seu pedantismo e a sua boçalidade, sem nunca correr o risco de ser confrontado com uma e outra coisa.
São estas pessoas que a esquerda moderna e a direita assim-assim nos oferece como intelectuais orgânicos, gente que gosta de se ler a si própria a citar os clássicos, a dar conselhos e lições, a emitir sentenças. E para quê? Para a profundidade do seu pensamento, para o rigor com que observam a realidade, para o interesse do que têm a dizer acerca do que quer que seja, citar as páginas do Correio da Manhã ou da Men's Health chegaria perfeitamente. Mas nada disso lhes parece suficiente e, uma vez que frequentam sobretudo salões de chá e copos de água onde este tipo de parvoíces passa por erudição e profundidade, eis que se abalançam a comentar a história do nosso tempo como se ela já tivesse acabado. 
Que não se pense, porém, ser tudo isto desprovido de significado. Citação por citação, eis uma que lhes encaixa como uma luva:
O domínio da história era o memorável, a totalidade dos acontecimentos cujas consequências se manifestariam durante muito tempo. Era inseparavelmente o conhecimento que deveria durar e ajudaria a compreender, pelo menos parcialmente, aquilo que aconteceria de novo: «uma aquisição para sempre», diz Tucídides. Por isso, a história era a medida duma novidade verdadeira; e quem vende a novidade tem todo o interesse em fazer desaparecer o meio de a medir. [...] Acreditava-se saber que a história tinha aparecido, na Grécia, com a democracia. Pode verificar-se que ela desaparece do mundo com ela. É preciso porém acrescentar a esta lista de triunfos do poder, um resultado para ele negativo: um Estado, em cuja gestão se instala duravelmente um grande défice de conhecimentos históricos, já não pode ser conduzido estrategicamente.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Porque narciso acha feio o que não é espelho

o meu artigo no i de hoje


Junto a muitos outros e outras, temos vindo a apelar a que o descontentamento individual face à actual situação política dê lugar ao protesto colectivo. No último mês e meio, por obra e graça de milhares de factores, o protesto tomou conta das cidades. Multidão atrás de multidão, manifestação atrás de manifestação, as pessoas saíram à rua, protestaram contra a actual situação e a onda ameaça avolumar-se. Neste cenário, há quem continue a dizer que protestar não chega e que é preciso, sim, construir alternativas. É um erro, porque ou a alternativa nasce do interior do protesto ou não terá força para vencer.
A ideia de que a alternativa é uma fórmula que, trabalhada por um comité de dirigentes ou por uma elite de peritos, conferirá ao protesto a clarividência que dele estaria ausente, ideia que animou todas as vanguardas, falhou redondamente uma e outra vez. E falhou por duas razões. Em primeiro lugar, porque quem protesta também é clarividente e não gosta de se ver simplesmente na pele de um cavalo selvagem à espera de ser domado por um qualquer cavaleiro. Em segundo lugar, falhou porque os cavaleiros que acham que vêm de fora, por mais lúcidos e decididos que se julguem, nem sempre são tão clarividentes quanto o seu espelho lhes faz crer.
Precisamos, pois, de abandonar qualquer espécie de concepção instrumental do descontentamento popular e do protesto colectivo. Não se trata aqui de defender, entenda-se, que todo o protesto tem razão de ser a partir do momento em que é, mas antes de exigir que olhemos para os gestos e as palavras que fazem os protestos com o mesmo cuidados que devotamos à análise dos gestos e palavras dos dirigentes que se situam do lado esquerdo ou direito do hemiciclo parlamentar e dos peritos que os assessoram.
Como modificar o nosso olhar? Não é fácil, mas, de novo, a crítica é a única forma de ir apurando a alternativa. Critique-se a forma de escrever de um dos mais acutilantes cronistas dos nossos média, Daniel Oliveira, exemplo tanto mais útil porque grande parte das posições do cronista em relação ao actual governo não merecem a nossa discordância. Nos seus textos, Daniel tem-nos falado sobre o “desespero popular”, sobre um “povo furioso” ou ainda, entre outros exemplos possíveis, acerca da “raiva em que as pessoas estão”. Tudo isto parece incontestável, mas haveria que perguntar duas coisas: em primeiro lugar, se este tipo de representação do descontentamento não acaba por fazer desse povo de que nos fala uma entidade tanto mais potente quanto mais embrutecida, isto é, um corpo politicamente inimputável, sofrível mas incapaz de pôr cobro, por si só, ao seu sofrimento; e, segunda pergunta, se não é justamente esta suposição de um tal estado de descontrolo por parte da população que leva o nosso cronista, juntamente com outras boas almas da nossa esquerda cuja generosidade e voluntarismo não discutimos por um momento que seja, a entender que protestar não basta e que é preciso oferecer uma alternativa aos desesperados.
É também nas formas de elogio ao povo que protesta que se encontra, por vezes, a atribuição de uma deficiência a esse mesmo povo, deficiência que só poderia ser resolvida com o auxílio de seres dotados de uma razão política superior. Coisa importante para que este esquema funcione é que dirigentes e peritos, partidos e individualidades, denotem grande confiança nas suas próprias competências racionais. Poderão os leitores mais humildes julgar que tamanho nível de confiança é simplesmente inatingível, mas, na verdade, basta uma boa dose de ignorância quanto ao facto de a nossa própria racionalidade política ser também ela moldada por emoções e feitios que só em parte devem à razão. É tamanha ignorância, aliás, que tem permitido que algumas figuras à esquerda estejam sempre prontas a criticar os dirigentes dos partidos de esquerda em nome da unidade dos partidos da esquerda, supondo que estão a falar em nome do interesse geral das esquerdas e não já do seu legítimo mas próprio interesse.