quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Que se vayan todos?


( o meu artigo no i de hoje)
Na manifestação que terça-feira, em Madrid, cercou o congresso, uma das tarjas levadas pela multidão dizia simplesmente “Que se vayan todos”. A fórmula tem origem, creio, nos protestos populares da Argentina deste início de século. E diz alguma coisa sobre a dificuldade de legitimação que, hoje, enfrenta todo e qualquer líder político.
A este compete calcular, é sabido, o tempo para entrar e sair de cena. Deverá proteger-se em terra quando a tempestade vai forte, deverá atirar-se ao mar quando a corrente joga a seu favor. As águas, porém, andam de tal modo agitadas por estes dias que não é fácil apurar com exactidão o estado do mar.
Comecemos pelo actual governo. Escreveu-se já que o presente estado de decomposição governativa tem levado os ratos a posicionar-se habilmente de modo a abandonarem o navio num futuro próximo. Todavia, o lance não tem saído com a facilidade do costume. Mesmo Paulo Portas, que sempre procurou alcançar aquele “óptimo de irresponsabilidade” que lhe permitiu garantir que as suas deserções seriam suficientemente discretas para não passarem por oportunismo e suficientemente vistosas para sinalizarem uma ruptura efectiva que abrisse espaço a um futuro retorno, encontra-se hoje a espernear no meio do pântano.
Esta situação de crise no governo poderia facilitar a vida à oposição, mas também não é aí que estamos. Veja-se António José Seguro. Líder de um partido que escolheu estar do lado da troika, ameaçou agora com uma moção de censura que, afinal, depois retirou; se já tínhamos o clássico líder da oposição que, chegado ao governo, não cumpre as suas promessas, temos agora o líder da oposição que não as cumpre antes mesmo de chegar ao governo.
Estas dificuldades poderiam, por sua vez ainda, abrir o caminho a um outro líder da oposição, caso de António Costa. Sucede, porém, que durante largos meses, no programa televisivo em que semanalmente participa, Costa se viu, não raro, ultrapassado à esquerda por José Pacheco Pereira e não será com facilidade, estimo bem, que agora conseguirá finalmente atirar-se ao ar e aí ser catado por ventos que soprem a seu favor. Se é para irmos nessa onda, neste momento talvez seja mesmo preferível apostarmos em Pacheco Pereira…
A esquerda à esquerda do PS talvez retire algum proveito de toda esta situação. É justo que assim seja e podem contar com o meu voto. Mas não nos iludamos. Mesmo as lideranças que sempre contestaram a troika acusam dificuldades de navegação. No caso do PCP, é verdade que poderá acabar por registar uma subida de votos porque, nestes tempos que correm, sadia e ironicamente, a sua falta de jeito para o oportunismo eleitoral (que alguns insistem em tomar como testemunho de ortodoxia…) tal permitirá. Porém, de um ponto de vista sociológico, o partido parece cada vez menos capaz de sair do quadrado em que, nas manifestações, os seus próprios serviços de ordem tendem a encerrar os próprios militantes comunistas.
No caso do BE, o problema parece ser o inverso. A facilidade com que procura colar-se a todo e qualquer tipo de protesto, sobretudo no momento em que uma câmara de TV se aproxima da cena, poderá facilmente virar-se contra si. Que o diga Catarina Martins. No episódio televisivo em que, falando em nome dos manifestantes, se viu interrompida por dois ou três cidadãos que a maldisseram, a deputada sentiu bem na pele o novo “ar do tempo”, que é o da crise acelerada das lideranças políticas.
Sobre esta crise, e como este episódio com a provável futura líder do BE denota, abre-se uma janela de oportunidade que deixa à vista, pelo menos, dois caminhos. O primeiro guarda um sentido antidemocrático e aponta a uma transição de um regime baseado em lideranças políticas para um regime de lideranças pretensamente antipolíticas de pendor tecnocrático e ou populista. O segundo abre a porta a formas de acção, discussão e deliberação políticas estranhas aos mecanismos de liderança que nos têm governado, libertando a democracia do fardo da representação.
A esquerda, creio, deverá saber trilhar este segundo caminho. Que não julguemos, por isso, que o que está em causa hoje é apenas Passos Coelho ou sequer a troika. A questão não é simplesmente inverter o ciclo económico de modo a aumentar o poder de compra da população ou mudar de governo de forma a minorar o ataque ao Estado social. A questão é também, e já, a da sede de poder político que muitos dos que não estão nos cargos de liderança e representação sentem. A sua repartição é tão urgente como a partilha do pão.

sábado, 22 de setembro de 2012

Doa a quem doer

 
Têm surgido em órgãos de comunicação social diversas referências ao RDA69, que atribuem a esta associação e aos seus associados qualificativos como “radicais violentos”, “activistas anarquistas” ou “militantes perigosos”.
É nomeadamente o caso das peças assinadas por Valentina Marcelino no Diário de Notícias a 27 de Março e a 13 de Setembro, bem como as que foram publicadas no Correio da Manhã, a 21 de Maio, por Henrique Machado, Miguel Curado e Sara Carrilho, e a 17 de Setembro, com a assinatura de João C. Rodrigues e Miguel Curado.
Este conjunto de peças jornalísticas veicula várias informações falsas, com o intuito de criar um clima alarmista e permitir uma escalada de criminalização da contestação social.
Cumpre por isso esclarecer os seguintes aspectos:
  1. O RDA69 não organiza nem organizou estas ou outras manifestações. É um espaço onde acontecem jantares, projecções de filmes, concertos, festas e debates. A programação é pública e está no nosso blog, as actividades estão abertas a todas as pessoas, militantes partidárias ou não. O RDA69 não joga nem pretende jogar o jogo das identidades, sejam elas da esquerda radical ou dos anarco-libertários.
  2.  A PSP, através dos seus porta-vozes na imprensa, pretende fazer-nos acreditar que há um comité oculto, que coordena todos os confrontos e actos de desafio às autoridades nas manifestações, de maneira a mais facilmente poder isolar, espancar e prender os que não aceitam as medidas de empobrecimento generalizado em curso e se mobilizam para as contestar. É com esse objectivo que avançam a enorme mistificação segundo a qual quatro pessoas detidas na manifestação de 15 de Setembro estariam ligadas ao RDA69. Embora estejamos solidários com todas e todos as/os que saíram à rua no passado Sábado, desconhecemos a identidade dos detidos, com os quais não possuímos qualquer relação.
  3. Estas reportagens fazem parte de uma estratégia de isolamento dos grupos ditos «radicais» relativamente ao resto da população. Cada vez mais gente vê cada vez mais claramente que a crise e a austeridade são excelentes oportunidades de negócios para uns poucos, enquanto a maioria da população se vê constrangida a empobrecer ou emigrar. O Governo está prestes a cair, com os seus membros a serem vaiados e contestados onde quer que se desloquem. Vivemos tempos excepcionais, em que o medo e o desespero começam a dar lugar à revolta e à contestação. Com esta estratégia, a PSP arrisca-se a ver o seu cerco cercado, enquanto se distrai a vigiar jantares e conversas. É apenas natural que se multipliquem os «incidentes» e os «excessos», sem que haja um centro ou uma direcção a coordená-los. É inútil procurarem um quartel-general da revolta porque a revolta está em todo o lado.
  4. O RDA69 é um espaço de debate e encontro, um lugar de crítica, de partilha, do comum. Naturalmente que isso nos torna perigosos aos olhos de quem tem o poder. Não negamos que as actividades que promovemos têm como horizonte um mundo construído por pessoas livres e iguais, onde, entre outras coisas, não haja lugar para polícias ou prisões. Comunicados policiais assinados por jornalistas não mudarão a nossa determinação. Este vai continuar a ser o sentido do que fazemos, doa a quem doer.
Cópias e ligações para as notícias referidas estão disponíveis aqui.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Políticas da História


Deixo aqui o meu contributo em torno da actual polémica historiográfica, hoje publicado no "Público".

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POLÍTICAS DA HISTÓRIA
por José Neves 

Os trabalhos de Rui Ramos e de Manuel Loff constituem dois contributos importantes para o conhecimento do Portugal Contemporâneo e a ambos devemos uma crítica despida de elogios fáceis e de insultos gratuitos. Da minha parte, contem com estes cinco pontos.  

1. Se é por de mais evidente que um historiador procura conhecer o passado, menos assumido é que nesse processo também conta o presente em que o historiador se situa. Com efeito, o meio político-ideológico em que se move todo e qualquer historiador marca inelutavelmente o seu trabalho científico. Por isso, quando António Barreto elogia a “História de Portugal” coordenada por Rui Ramos porque a obra teria finalmente permitido vencer «o duopólio fanático estabelecido há muito entre as Histórias ditas “da esquerda” e da “direita”», é a uma ilusão de imparcialidade que estamos a ser atraídos. O primeiro obstáculo ao debate surge aqui, nesta suposição de Ramos como um historiador neutral, que ignora o facto do próprio Ramos ter já assumido – e bem – que o seu olhar historiográfico não é estranho ao seu percurso político.  

  

2. Esta relação entre a agenda historiográfica e os interesses político-ideológicos do historiador desenvolve-se de um modo complexo, pouco directo e nada linear. Desde logo, a relação não é unívoca. Isto é, a agenda historiográfica do historiador é sensível aos interesses políticos do historiador, mas estes também a reflectem. Na sua crítica, Loff observa a afinidade entre a política de Ramos e a historiografia de Ramos, mas, a meu ver, dá um passo abusivo, sugerindo que o trabalho historiográfico de Ramos estaria ao serviço de um propósito político. Nesta sugestão de instrumentalização tem tido origem parte dos equívocos do debate que Loff em boa hora lançou.

3. Uma outra parte dos equívocos tem origem na leitura que Ramos fez das críticas que lhe foram dirigidas. Esta leitura produziu mais do que uma distorção, como expôs Mário Moura. Por exemplo, se Loff escreveu que para Ramos “o salazarismo era ‘uma espécie de uma monarquia constitucional’”, Ramos acusou Loff de ter dito que ele, Ramos, consideraria o Estado Novo “um regime absolutamente idêntico à monarquia constitucional do século XIX”. Se Loff escreveu que o Salazar de Ramos não tem “‘nada de uma personagem ditatorial’ como a dos líderes da Europa fascista do tempo, Ramos acusou Loff de ter dito que o Salazar de Ramos “não era uma personagem ditatorial”. E se Loff escreveu que o texto de Ramos apresenta “uma ficção sinistra e intelectualmente cínica sobre a ditadura salazarista”, Ramos acusou Loff de o “tachar de fascista “cínico” e “sinistro””. Em suma, Ramos terá que cuidar um pouco melhor da sua própria criatividade hermenêutica.

4. O maior problema que encontro na actual polémica reside, porém, no facto de deixar na sombra um conjunto de questões que não implicam directamente o debate sobre a natureza política do Estado Novo (em que tendo a concordar com a posição de Loff) ou o modo como Ramos dá conta da repressão salazarista (já criticado por Rosas, Costa Pinto ou Lucena) e da Guerra Colonial (desconstruído por Ramada Curto). A primeira destas questões tem que ver com a ideia de política subjacente ao olhar de Ramos. Procurando contrariar o que entende ter sido uma tendência historiográfica para a sobrevalorização do económico, do social e das estruturas, e para a desvalorização do político e da acção, o esforço de Ramos tem acusado dois vícios: tende a circunscrever o poder à esfera da política e, como sublinhou Francisco Bethencourt, a confinar o domínio da acção política às atitudes e comportamentos do que chama de elites. A esta luz, teria sido porventura mais ajustado, no que à parte contemporânea diz respeito, que se tivesse optado por um título como “História Política de Portugal” ou “História Elitista de Portugal”.

5. A segunda questão que não tem sido debatida é a da escrita da história. Existem factos para quase todos os gostos, o que, não querendo dizer que não há risco de um historiador simplesmente inventar acontecimentos que não sucederam, exige que também foquemos não apenas o modo de selecção mas também a forma de enunciação dos factos. A título de exemplo, chamo a atenção para a relação que na escrita de Ramos se tece entre a sua voz de narrador e a fala das fontes por ele citadas. Na negociação destes discursos, essa escrita tende, frequentemente, a criar uma indefinição entre a fala do narrador e a fala dos documentos que cita, deste corpo-a-corpo nutrindo-se, em parte, a ilusão de neutralidade que ampara o entusiasmo pueril de um Barreto. Ora, se é bem verdade que o risco de ilusão jamais poderá ser completamente eliminado, podemos pelo menos exigir que ela não seja objecto de um uso instrumental. Infelizmente, é tal instrumentalização que me parece ocorrer na resposta que Ramos dirige a Loff. Se percebo que critique Loff por este citar partes do seu livro como se fossem fala do próprio Ramos e não, como em alguns casos sucede, fala de terceiros que Ramos teria simplesmente citado (“a expressão não é minha, mas de Massis”, diz Ramos); não posso entender a que propósito, ao defender-se de uma outra crítica de Loff, Ramos opta por citar em seu abono a fala de uma das fontes por ele convocada, agora pedindo-nos que a aceitemos como reveladora do seu próprio ponto de vista (“cito uma carta impressionante de José Marinho, de 1937, que bem revela o peso opressivo da ditadura salazarista”, diz Ramos a Loff). Tal como os que apontei a Loff, estes são erros admissíveis, de que ninguém está a salvo, incluindo nós próprios, é claro. A única coisa inadmissível em toda esta polémica é o apelo de Filomena Mónica ao silenciamento de Manuel Loff.  

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

História do presente


 
E subitamente, sem que nada o fizesse prever, uma polémica historiográfica no espaço público, com direito a não poucas acusações, insinuações e insultos, para além de um moderníssimo apelo à censura.
Comecemos pela resposta de Rui Ramos a Manuel Loff, que transfigura notoriamente as acusações que lhe são feitas, de maneira a convertê-las numa caricatura para a qual possuía já, arquivada num qualquer baú, uma resposta tão rápida quanto insatisfatória. Infelizmente, os debates dignos desse nome não costumam travar-se contra as afirmações que se desejaria terem sido proferidas mas não foram. Tudo seria evidentemente mais fácil se o trabalho de cada um se confrontasse apenas com argumentos superficiais e avaliações primárias.
É um facto, desses que os historiadores «objectivos» não dispensam, que ninguém acusou Rui Ramos de ser fascista, mas antes de se empenhar no sentido de negar esse qualificativo ao Estado Novo e a Salazar. É um facto que Loff acusa Rui Ramos de apresentar o Estado Novo como uma «espécie» de monarquia constitucional. E é um facto que Rui Ramos lhe chama caluniador por este o ter acusado de afirmar que o Estado Novo era um regime «absolutamente» idêntico à monarquia constitucional. 
A escolha de palavras é aqui todo um programa, uma vez que o rigor no seu uso é a própria matéria de que se faz o ofício de historiador e, não se negando a Rui Ramos capacidades para o desempenhar, apenas se pode concluir que essa confusão é na verdade uma estratégia argumentativa. Uma «espécie de» não significa – agora como no tempo em que este debate podia levar pessoas à prisão - «absolutamente idêntico a» e neste domínio, como noutros, o diabo habita nos pormenores, pelo que a subtileza não é um aspecto secundário.

O exercício poderia prosseguir, mas teríamos sobretudo mais do mesmo e uma conclusão acabaria por se impor: Rui Ramos procurou furtar o seu trabalho ao debate público e convocar em seu auxílio as numerosas penas da opinião conservadora contra os rigores do «antifascismo». E é essa opinião conservadora que interessa discutir. Ela diz-nos muito mais acerca do século XX em Portugal - o lugar inóspito de onde provêm - do que os escritos de Rui Ramos sobre o assunto. 
A facilidade com que emergiram no espaço público termos como «normalização»,«serenidade académica» ou «consensos mínimos», a forma como se denunciou uma «cultura de guerra civil» ou «algo de doentio e fanático» a propósito dos artigos de Loff, é já um sinal de que se tocou num tema de óbvias ressonâncias conflituais. A dimensão política desta discussão parece ser incontornável. Não será esse um dos menores méritos de quem se pronunciou criticamente acerca do trabalho coordenado por Rui Ramos.