segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Inevitabilidade, o significante flutuante do momento

Em tempo de inevitabilidades nada como voltar às raízes e reler os clássicos. Ou, como diriam Althea & Donna: «nah pop no style, a strictly roots»

O ponto de partida desta reflexão era na maior parte dos casos um sentimento de impaciência perante o «natural» de que a imprensa, a arte, o senso comum revestem sem cessar uma realidade que, embora sendo aquela em que vivemos, nem por isso é menos histórica: numa palavra, sofria ao ver a cada momento confundidas, na narração da nossa actualidade, a Natureza e a História, e queria captar na exposição decorativa do que se dá como evidente o abuso ideológico que, em meu entender, nele se esconde.

Roland Barthes, Mitologias (1957)


terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Negacionismo e judicialismo histórico

A propósito da mais recente operação de reconhecimento forçado do passado como um "lugar" dogmático e indiscutível, em que a força repressiva da lei se opõe e sobrepõe à violência do próprio negacionismo enquanto posicionamento ideológico, vale a pena ler em jeito de pré-lançamento um parágrafo do livro Passado, modos de uso de Enzo Traverso:

"As tendências apologéticas na historiografia do fascismo e do nazismo devem ser combatidas mas não opondo-se-lhes uma visão normativa da história. É por isso que as leis contra o negacionismo podem revelar-se perigosas. Se o negacionismo deve ser combatido e isolado em todas as suas formas – o de Robert Faurisson e o de David Irving, tal como o, aparentemente mais respeitável, de Bernard Lewis  - vários historiadores (nos quais me incluo) mostraram ter dúvidas sobre a oportunidade de o sancionar pela lei. Isto levaria a instituir uma verdade histórica oficial protegida pelos tribunais com o efeito perverso de transformar os assassinos da memória em vítimas de uma censura, em defensores da liberdade de expressão."


Enzo Traverso, Passé, modes d'emploi - histoire, mémoire, politique, La Fabrique

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Tiago Marques Leite


Já poucas coisa me escandalizam como outrora. Não tenho por isso a capacidade de simular uma indignada surpresa relativamente à distribuição de tachos em curso desde Junho. Mas hoje encontrei, através do Abrupto, um pedaço de realidade sobre a qual não consegui deixar de me debruçar. 
Tiago Leite, director da segurança social de Santarém, achou por bem comunicar a um agregado familiar a redução do respectivo abono para 26,54€. O agregado pode, por sua vez, recorrer desta decisão no prazo de dez dias.Tiago Leite escreve em mau português e fez questão de preencher a carta com alusões a diplomas legais e às suas respectivas alíneas, numa mal-disfarçada estratégia de dissuasão, assente na ilegibilidade da notificação para qualquer pessoa que não conheça em profundidade a legislação em vigor e as suas mais recentes alterações. 
Dar-se-à o caso de um inamovível funcionário escrupuloso se estar a limitar a desempenhar as suas funções com o zelo que o bem público exige? Alguém com muitos anos de Segurança Social e que já se tornou incapaz, à custa de lidar continuamente com situações destas, de expressar qualquer tipo de preocupação ou sensibilidade com as consequências da medida?
A resposta não custa a dar e está ao alcance de um qualquer motor de busca. Tiago Leite é militante do CDS-PP de Alpiarça e, como qualquer bom democrata-cristão, recebeu a justa recompensa pelos seus serviços. Depois de ter sido cabeça de lista do seu partido nas autárquicas de 2009, em Santarém, integrou as listas para a AR no ano passado, sem ser eleito. Foi depois nomeado para chefe de gabinete do Secretário de Estado da Administração Interna, pelo que é possível que tenha sido ele a garantir-nos que não havia qualquer polícia à paisana na manifestação de dia 24 de Novembro. Naturalmente, e porque é preciso reter em Portugal os melhores cérebros, auferia nessas funções a modesta quantia de 3 892,53€, certamente escassa para alguém com este gabarito. Mais informações acerca da sua passagem relâmpago pelo governo podem ser encontradas aqui.
Já em Dezembro, e mesmo a tempo de escrever esta singela carta, foi nomeado director da Segurança Social de Santarém, em consequência da singular reedição do tratado de Tordesilhas que acompanha cada coligação entre o PSD e o CDS. Para demonstrar que não lhes falta bom humor, os dirigentes do CDS da Golegã já tinham feito questão de sublinhar que a  sua nomeação para chefe de gabinete era “um prémio pelo mérito e pelo rigor que sempre pautou a sua vida, quer pelos seus conhecimentos e exemplo profissional, quer pela prática e pela coerência com os princípios e valores da condição humana”.
Coerência que tem agora todas as condições de demonstrar, até à saciedade, começando desde logo pelo valor atribuído às famílias, esse omnipresente ornamento que a direita indígena jamais retira da lapela a não ser, evidentemente, quando é preciso tranquilizar os mercados, aumentar a competitividade e apertar o cinto.  Tiago Leite sabe do que fala quando falamos de sacrifícios. É bem verdade que a vida se pode revelar difícil quando é preciso sustentar uma família com 3 892,53€ ao mês. Tão difícil que nem sequer sobra tempo para empregar um português escorreito na altura de cuspir na cara de alguém através dos CTT. Porque nisto dos cintos que se apertam, alguns há que nunca tiram os seus suspensórios.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O padrinho

Há cerca de seis anos, foi José Manuel Anes, professor universitário, criminalista e presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), que convidou Jorge Silva Carvalho para a Maçonaria. “Ele pediu para ser convidado”, contou Anes que, na altura, instaurou o processo de inquérito normal para o acesso de novos irmãos.

“Ele era uma pessoa séria, humilde e excelente profissional”, era a impressão que Anes tinha de Carvalho, confirmada pelo inquérito elaborado por dois irmãos designados para o efeito. José Manuel Anes conhecia o candidato “dos meios da defesa e segurança” e da revista Segurança e Defesa, a que ambos pertenciam (e pertencem).

Segundo a tradição maçónica, o iniciado tem o dever de prestar informações e pedir conselhos ao seu padrinho (que o convidou). Mas Silva Carvalho cedo deixou de cumprir essa obrigação. “Pelo contrário”, diz Anes. “Ele maltratou o padrinho, dentro e fora da Maçonaria, e começou a fazer o contrário do que eu lhe dizia”.

Afinal o que é o comunismo?

Enquanto alguns continuam entretidos com o concurso de blogues da TVI, uma competição de vida ou morte (severina) para a luta de classes em Portugal, fora desta lusa farronca sem vintém os blogues bons, bonitos e agradáveis, começaram a desaparecer. Tal como o Fernando Assis Pacheco nunca foi «grande espingarda em montarias ao soneto importado» (Ver «Respiração Assitida»), eu também não fui talhado para fazer obituários, mas com tantos blogues a morrer não há palavra muda que aguente. Depois do Mark Fisher ter resolvido pôr o seu blogue a hibernar, e a Nina Power informar os seus leitores que ia entregar os papéis para a reforma, foi a vez de Evan Calder Williams decretar o fim do fenomenástico http://socialismandorbarbarism.blogspot.com/

Caldeirada Williams faz parte do muito cá de casa e, relembre-se, deixou para posteridade o comentário mais apetitoso sobre os motins de Londres: «Carta aberta a todos os que condenam os motins», traduzido pelo operário-poeta Miguel Cardoso, que também se embebeda, ou embebedava, nesta tasca, e publicado nas Edições Antipáticas.

Evan Calder Williams aproveitou o fim do seu blogue para escrever um longo excurso, que uma alminha caridosa podia fazer o obséquio de traduzir, sobre a finitude, a amizade, a efemeridade, os suportes digitais, as lutas, as línguas, Carlo Emilio Gadda, as consequências da dor, o comunismo, etc. Sobre o comunismo, Calder Williams deixou uma pequena nota, colocada entre parêntesis, que me parece bastante produtiva para quem se situa no campo político da igualdade. Como diria Rancière, quem não parte do pressuposto da igualdade das inteligências corre o risco de encontrar a desigualdade em cada esquina. Algo que costuma acontecer com frequência no campo do gosto, que é um terreno profícuo para demarcações simbólicas, hierarquias e desdéns de vária ordem. Por oposição às comunidades do bom gosto, cheias de luminárias, deferências, pancadinhas nas costas e pedagogias bem-intencionadas, não fosse o seu objectivo libertar os plebeus do seu gosto pouco refinado, Calder Wiliams apresenta-nos uma alegoria do «mau gosto». Quem sabe esta não é a alegoria que faltava para o comunismo do século XXI:

Note: as a defender of communism as structurally a project of "bad taste," insofar as it is the flowering of the misuse of things, of going too far, of dwelling at the edges of the underutilized capacity of spaces, techniques, and material, I stand firmly in support of that insane frenzy of available styles. It's no accident that so fucking gauche and far left mean basically the same thing. The last thing we need is to shackle ourselves transhistorically to a cool minimalism. 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O Cognitariado de Mariano Gago

Aumentou nos últimos anos o número de trabalhadores de investigação científica. A questão que hoje se coloca a estes trabalhadores é, no entanto, preocupante: qual será o seu futuro?



A resposta não está escrita no céu e em parte depende da força que os próprios conseguirem fazer valer. Esta força terá que assumir necessariamente uma dimensão colectiva. O tempo das soluções individuais já passou. Se é que essas alguma vez chegaram a ser solução.



O mais urgente, neste preciso momento, parece-me ser construir espaços comuns de discussão que reúnam a comunidade de investigadores. Estes espaços não existem por várias razões. Queria apenas elencar três: docentes e bolseiros reunirem-se separadamente, os primeiros nos seus sindicatos e os segundos nas suas associações; sindicatos de docentes e associações de bolseiros com pouca capacidade de mobilização dos seus representados; e representados em que só raramente estão incluídos docentes sem emprego ou bolseiros sem bolsa.



Uma reunião capaz de colocar ao mesmo nível os diferentes tipos de investigadores será um primeiro passo para um debate que será demorado. Um bom ponto de partida para nesse debate atalhar caminho é o balanço da política científica dos últimos anos, particularmente associada ao legado de Mariano Gago e ao ciclo de investimento europeu subjacente ao protagonismo do seu ministério.



Para colocarmos as coisas de um modo simples, ainda que desajeitado, a pergunta pode ser assim formulada: devemos dizer bem ou dizer mal do legado de Mariano Gago?



Se lermos as notícias que nos chegam de boa parte da comunidade científica, a resposta parece clara: dizer bem de Mariano Gago. E não custa adivinhar, perante o novo governo, e o futuro mais sombrio que com ele se avizinha, que a tendência nos próximos tempos seja para enfatizar ainda mais positivamente aquele passado.



A maior parte dos que elogiam Gago serão, no entanto, investigadores integrados no sistema académico. Dessa posição é mais fácil julgar o tempo de Mariano Gago como uma época de ouro, pois foi então que os investigadores integrados passaram a dispor de um conjunto importante de recursos, o que lhes permitiu dedicar mais e melhor tempo à ciência. Acontece, porém, que entre aqueles recursos se encontravam e encontram não apenas microscópios, bibliotecas e fundos, mas também um número considerável de outras coisas, especificamente nomeadas como bolseiros. E é preciso dizer que muitas vezes tanto o ministério como os investigadores integrados olharam e olham os bolseiros como recursos humanos e não como trabalhadores com direitos ou colegas de profissão.



Não surpreenderá, por isso, se do ponto de vista dos bolseiros os anos de Mariano Gago sejam também tempos de sombra, tratados como mão-de-obra barata, precária e descartável por faculdades, governo e União Europeia, sem direito a contratos de trabalho, sem direito a subsídio de desemprego, sem direito a descontar condignamente para a segurança social e sem direito, em vários casos, a ver a lei ser cumprida – por exemplo a questão da obrigatoriedade de integração dos pós-doutorados nos conselhos científicos. Enfim, é preciso dizer que o progresso da ciência se fez com base num regime de exploração laboral muito pouco civilizado. Se ministros houve cujo sucesso dependeu da aposta numa condição precária, é preciso dizer que Mariano Gago foi um deles.



A expressão comunidade científica, sem dúvida muito elegante, não deixa por isso de ser equívoca neste caso. Pressupõe uma relação horizontal entre os seus membros que está longe de existir num mundo universitário onde os factores de diferenciação se acumulam, do catedrático ao bolseiro, do vínculo definitivo de uns à ausência de vínculo laboral de outros, dos salários elevados às vidas pobres. E é também por isto que hoje nós, trabalhadores da ciência, do mais ou menos graduado, precisamos de saber construir um projecto político capaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo: aumentar o investimento do Estado na ciência e conseguir uma distribuição mais igual dos recursos disponíveis na dita comunidade. Para que tantos não continuem a escrever os artigos para os outros, como os operários que para os outros construíram as cidades onde nunca chegaram a viver.



texto publicado hoje no i