quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Não, o povo não é uma massa brutal e ignorante (Jacques Ranciére)





Não passa um dia sem que alguém decida denunciar os riscos do populismo. Não é por isso fácil identificar aquilo que a palavra designa. O que é um populista? Atráves de todas as flutuações do termo, o discurso dominante parece caracterizá-lo a partir de três traços essenciais: um estilo de interlocução dirigido directamente ao povo por cima dos seus representantes e notáveis; a afirmação de que os governos e as elites dirigentes cuidam melhor dos seus interesses do que a coisa pública; uma retórica identitária que exprime o medo e a rejeição dos estrangeiros.
É por isso claro que nenhuma necessidade liga estes três traços. Que existe uma entidade chamada povo, que é a fonte de todo o poder e o interlocutor prioritário do discurso político, era a convicção profunda dos oradores republicanos e socialistas de outrora. Não lhe é associada qualquer forma de sentimento racista ou xenófobo. Que os nossos políticos pensam mais nas suas carreiras do que no futuro dos seus concidadãos e que os nossos governos vivem em simbiose com os representantes dos grandes interesse financeiros, pode ser proclamado sem se ser necessariamente um demagogo. A mesma imprensa que denuncia as derivas «populistas» oferece-nos quotidianamente os testemunhos mais detalhados. Por sua vez, certos chefes de Estado e de governo ditos «populistas», como Sílvio Berlusconi ou Nicolás Sarkozy, estão longe de propagar a ideia «populista» que elites são corruptas. O termo «populismo» não serve por isso para caracterizar uma força política concreta. Não designa uma ideologia nem sequer um estilo político coerente. Serve simplesmente para desenhar a imagem de um certo povo.
Porque «o povo» não existe. Aquilo que existe são imagens diferentes, por vezes antagónicas, do povo, imagens construídas privilegiando certas formas de pertença, certos traços distintivos, certas capacidades ou incapacidades. A noção de populismo constrói um povo caracterizado pela atroz aliança entre uma capacidade - a potência bruta do grande número - e de uma incapacidade - a ignorância atribuída a esse mesmo grande número. Por isso, o terceiro traço, o racismo, é essencial. Trata-se de mostrar aos democratas, sempre suspeitos de ingenuidade «angelical», o que é na verdade o povo profundo: uma turba habitada por uma pulsão primária de rejeição que visa simultaneamente os governantes que declara traidores, incapaz de compreender a complexidade dos mecanismos políticos, e os estrangeiros que receia devido ao seu apego atávico a um quadro de vida ameaçado pela evolução demográfica, económica e social. A noção de populismo recoloca em cena uma imagem do povo elaborada no final do século XIX por pensadores como Hyppolite Taine e Gustave Le Bon, aterrados pela Comuna de Paris e pelo crescimento do movimento operário: a das massas ignorantes impressionadas pelas palavras sonantes dos «agitadores» e dadas à violência extrema pela circulação de rumores incontroláveis e de pânicos contagiosos.
Esses tumultos epidémicos das massas cegas manipuladas pelos líderes carismáticos estarão verdadeiramente na ordem do dia entre nós? Quaisquer que sejam os preconceitos expressos todos os dias relativamente aos imigrantes, e nomeadamente aos «jovens da periferia», eles não se traduzem em manifestações populares de massa. Aquilo a que hoje em dia chamamos racismo no nosso pais é essencialmente a conjunção de duas coisas. Por um lado, as formas de discriminação no emprego ou no local de residência que se exercem na perfeição dentro de gabinetes assépticos. Por outro, medidas de Estado que não resultam de todo de movimentos de massa: restrição à entrada no território, recusa de conceder documentos a gente que trabalha e paga impostos em França há anos, recusa do direito de cidadania a quem nasce dentro do país, dupla penalização, leis contra o foulard e a burqa, metas obrigatórias de deportação ou o desmantelamento de acampamentos de nómadas. Essas medidas têm como principal objectivo precarizar uma parte da população quanto aos seus direitos de trabalhadores ou de cidadãos, constituir uma população de trabalhadores que podem a qualquer momento ser reenviados para o seu destino e de franceses que não têm a certeza de o continuar a ser.
Essas medidas são apoiadas por uma campanha ideológica, justificando essa diminuição de direitos pela evidência de uma não-pertença aos traços característicos da identidade nacional. Mas não foram os «populistas» da Frente Nacional que desencadearem essa campanha. Foram os intelectuais, de esquerda ao que se diz, que encontraram o argumento imparável: essas pessoas não são verdadeiramente francesas porque não são laicas.
A recente «derrapagem» de Marine Le Pen é instrutiva a esse respeito. Não faz efectivamente senão condensar numa imagem concreta uma sequência discursiva (muçulmano = islamita = nazi) que se insinua um pouco por toda a prosa dita republicana. A extrema-direita «populista» não exprime uma paixão xenófoba específica que emana das profundezas do corpo popular; ela é um satélite que utiliza a seu favor as estratégias do Estado e as campanhas intelectuais mais sofisticadas. O Estado alimenta um permanente sentimento de insegurança que funde os riscos da crise e do desemprego com os do gelo na estrada ou os do ácido fórmico, para fazê-los culminar a todos na suprema ameaça do terrorismo islamita. A extrema-direita coloca as cores da carne e do sangue sob o retrato robô delineado pelas medidas ministeriais e pela prosa dos ideólogos.
Assim, nem os «populistas» nem o povo projectado pelas denunciações rituais do populismo correspondem verdadeiramente à sua definição. Mas isso pouco interessa aos que agitam o seu fantasma. O essencial, para esses, é amalgamar a própria ideia do povo democrático à imagem da turba perigosa. E de retirar daí a conclusão que todos nos devemos entregar a quem nos governa e que qualquer contestação da sua legitimidade e da sua integridade é a porta aberta ao totalitarismo. «Antes uma república das bananas do que uma França fascista», dizia um dos mais sinistros slogans anti-Le Pen em Abril de 2002. A actual campanha em torno dos perigos mortais do populismo procura converter em teoria a ideia de que não temos outra escolha.

Tirado daqui e traduzido sem conta peso e medida por este que vos escreve. Uma versao inglesa consultada sempre que houve dúvidas está disponível aqui.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Mapa das Ligações Portuárias


(o meu artigo no i de hoje)
De passagem por uma cidade do Norte de Inglaterra, fui levado por amigos locais a uma rua em que dezenas de restaurantes indianos e paquistaneses deixavam no ar aquele aroma que sempre me traz à memória a infância passada ao lado da minha avó. Como querendo regressar ao mesmo sítio no dia seguinte, pedi que me assinalassem o local no pequeno mapa de turista que tinha comigo. Disseram-me “a rua não vem no mapa…” Essa mesma frase tinha eu ouvido pela última vez há cerca de dois anos, numas breves férias de Verão realizadas um pouco mais a sul, para o sudoeste alentejano. À procura de um caminho de terra batida, por onde havia passado e cujo rasto perdera, perguntei pelo troço junto de um aldeão que caminhava à beira da estrada e pacientemente me explicou o que fazer, no fim rematando, ele também, que o caminho “não vinha no mapa…”
Do que fica relatado concluo, em primeiro lugar, que não são poucos os lugares que existem mas que os mapas desconhecem. Dizem que a falha nem terá grande remédio. Todos os mapas enfrentam o dilema da escolha entre a maior extensão da área coberta e a atenção aos detalhes que infinitamente dividem todo e qualquer espaço. Em segundo lugar, conclui-se ainda do que acima se expôs que os mapas não reflectem apenas a realidade que cartografam, mas que simultaneamente delineiam a forma futura dessa realidade. Quando um habitante local nos diz que o seu sítio “não vem no mapa…”, partilha connosco, é certo, um pedaço de terra ainda por muitos desconhecido, mas faz jásoar, também, um lamento pelo futuro que se aproxima, mau agoiro de quem intui que cedo ou tarde se acabará por dar sumiço ao que não vem no mapa.
Esta conversa de geógrafo de segunda vem a propósito do ano que vem. Então começaremos, muito provavelmente, a olhar com redobrada atenção para os mapas, as suas formas e os seus feitios. O estado da crise cada vez mais convidará a que coloquemos no centro da agenda a questão da escala em que temos vindo a ser administrados. Até agora são dois os mapas que nos têm sido disponibilizados como ferramentas para analisar e superar a crise: um mapa que nos fala de um mundo global, plano e liso, onde todos circulariam com o mesmo à-vontade; e um mapa que divide o mundo aos quadrados nacionais, como um puzzle de estados encaixados uns nos outros, cada macaco no seu galho.
Ambos os mapas têm problemas que os tornam cada vez mais insuportáveis. O primeiro mapa, tendo a vantagem de querer ignorar os sectarismos nacionais, supõe que não existam clivagens de outro tipo, por exemplo relativas a diferenças entre classes sociais. O mapa das nações, por sua vez, se admite a existência de clivagens, fá-lo conotando-as com identidades nacionais, desde logo secundarizando as diferenças sociais internas e transversais às próprias nações.
Contra ambos os mapas, há quem venha sugerindo a hipótese de um mapa universal (por contrário às identificações nacionais e patrióticas que ameaçam medrar a partir das linhas do segundo mapa) e antagonista (por contrário à ilusão de uma paz social liberal que obedece ao sonho do primeiro mapa). O trabalho de Sandro Mezzadra, autor de “Direito de Fuga” (recentemente publicado em português), tem justamente apelado à capacidade de elaborarmos mapas capazes, por um lado, de diagnosticar o de-senvolvimento a um tempo diferenciado e combinado de uma economia contemporânea que cria terceiros mundos no interior do primeiro e vice-versa; e mapas capazes, por outro lado, de mobilizar as forças e vontades susceptíveis de vencer essa economia. Neste sentido, mais que de um território global ou de mil e um territórios nacionais, precisaríamos de um mapa que tanto desse conta das ligações que fazem circular e fixar coisas e pessoas ao ritmo dos lucros privados e dos interesses estatais, como iluminasse relações determinadas por outras morais que não a do capitalismo e a do nacionalismo.
Quando o governo português refreia a sua intenção de avançar para um processo de requisição civil dos estivadores de Portugal porque os estivadores de outros países avisam que em retaliação boicotariam a descarga das embarcações vindas dos portos portugueses, é já um tal mapa que a luta dos estivadores delineia.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A internacional dos estivadores


Bem sei que não é Kornakkis, mas foi o que se conseguiu arranjar. O texto que escrevi para o Passa Palavra a propósito da manifestação internacional de estivadores está disponível aqui.
Após um curto discurso do presidente do Sindicato, Vítor Dias, seguido da leitura de mensagens de apoio e solidariedade vindas de diversos portos europeus e sul-americanos, uma delegação entrou no edifício para reunir com a Presidente da Assembleia da República. Cá fora o entusiasmo não esmoreceu e, ao fim de uma hora, o convívio entre trabalhadores portuários de toda a Europa culminou num comboio aos círculos ao som de Quim Barreiros, enquanto estivadores suecos defrontavam os seus congéneres cipriotas na mesa de matraquilhos e estivadores belgas e dinamarqueses procediam a uma degustação de cerveja portuguesa, contrariando cabalmente aqueles que dizem que a greve nos portos afecta o escoamento da produção nacional.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Cenas dos próximos capítulos II – Sonhar na Totalidade


 
Voltando a pegar nas discussões necessariamente incompletas que foram surgindo nos debates que a Unipop organizou na Achada. Num ponto já adiantado da última conversa, em torno do dossier «Futuro» do nº 2 da revista Imprópria, o Nuno Ramos de Almeida evocava a frase de Jameson (tantas vezes citada por Zizek) de que é mais fácil imaginar a destruição total do nosso planeta do que o fim do capitalismo, para argumentar em seguida (parafraseio): «venderam-nos» a ideia de um fim das grandes narrativas, e com isso perdemos capacidade de acção transformadora. É preciso voltarmos a sonhar na (com a?) Totalidade. Ou seja, procurarmos formas de combate que apontem para uma verdadeira transformação sistémica, e não se limitem a ir aplicando remendos. Esta ideia suscitou uma reacção virulenta da Golgona Anghel, mas não chegou a ser discutida. Pessoalmente, há muito que estou desconfortavelmente dividido entre, por um lado, uma insistência no carácter sistémico da dominação capitalista e na consequente necessidade de “mapas” que retratem essa Totalidade e que nos permitam desse modo formas de transformação mais articuladas e sustentadas e, por outro, uma enorme desconfiança das chantagens que nos vão sendo feitas em nome desta articulação, que muitas vezes redundam num programatismo redutor, num apelo em última instância conservador à paciência (temos que ter calma, perceber o sistema no seu todo antes de encetar as nossas lutas) e em sistemas organizativos hierarquizados, etc. De qualquer forma, parece-me certo que temos, como o próprio Jameson sugere na sequência da frase que o Nuno Ramos de Almeida citou, um défice de imaginação. Parece-me igualmente certo que o indispensável exercício da nossa imaginação política, tanto na teoria como na prática, dispensa uma escolha esquemática entre o culto do Programa e o culto da Espontaneidade.
Alguém se chega à frente para esta discussão?

E uma citação do Jameson, para dar o mote:


a utopologia reaviva partes da mente que há muito estão dormentes, órgãos da imaginação política, histórica e social quase atrofiados por falta de uso, músculos da praxis que há tanto tempo deixámos de exercitar, gestos revolucionários que perdemos o hábito de ensaiar, mesmo subliminarmente. Este reavivar da futuridade, da postulação de futuros alternativos, não é em si mesmo um programa político, nem mesmo uma prática política: mas é difícil ver como uma acção política duradoura ou efectiva poderia emergir sem ele.”

Fredric Jameson Valences of the Dialectic


Cenas dos próximos capítulos I – A vida nua


O dia de convívio e debate que a Unipop organizou na Achada deixou, como sempre, várias pontas soltas que idealmente mereceriam atenção futura. Destaco duas, de entre muitas linhas de discussão. A primeira foi levantada pelo Nuno Nabais no debate em torno do Direito de Fuga de Sandro Mezzadra, ecoando discursos e práticas que circulam desde há bastante tempo mas que ganharam agora porventura uma urgência renovada: pode o empobrecimento ser visto como potenciador de novas formas de agência política? Qual a relação entre o despojamento (forçado ou voluntário) – que Nabais tratou invocando o conceito devida nua, de Agamben – e a criação de novas redes de solidariedade, e mesmo novos horizontes para a fuga às linhas com que o capitalismo nos coze (algo que teve eco, por exemplo, na invocação da “economia da dádiva” por José Luís Garcia, na última sessão do dia)? Será que a figura do “pobre” tem algo para nos oferecer de um ponto de vista político, ou seja, para lá das categorias sociológicas ou da denúncia das desigualdades? Ou, porventura, a figura do desempregado (no sentido de um desemprego do tempo, de uma desvinculação da nossa identidade enquanto trabalhadores? Esta matéria exige instrumentos subtis de análise, que ganham em ser pensados colectivamente e em voz alta. A linha por vezes pouco nítida que separa o assistencialismo das novas formas de solidariedade, partilha e vida comunitária, a celebração problemática da pobreza e mobilidade ou o moralismo de alguns ideais do decrescimento, entre muitas outras coisas, merecem um debate que já se vem fazendo, mas que importa renovar a cada passo.


Deixo uma citação de Roland Barthes que, embora coloque a questão em termos um pouco anacrónicos e seguramente discutíveis, pode ainda assim servir de mote à discussão.



«É precisamente porque Charlot dá corpo a uma espécie de proletário em bruto, ainda exterior à Revolução, que a sua força representativa é imensa. Nenhuma obra socialista conseguiu ainda exprimir a condição humilhada do trabalhador com tanta violência e generosidade. Apenas Brecht, porventura, entreviu a necessidade para a arte socialista de capturar o homem na véspera da Revolução, isto é, o homem só, ainda cego, à beira de se abrir à luz revolucionária pelo excesso «natural» dos seus infortúnios.»

Roland Barthes, «Le pauvre et le prolétaire»



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Da violência gratuita: um excurso.


Ou: do fogo cruzado entre “os profissionais da desordem e da provocação” e o “profissionionalismo”, “serenidade”, “firmeza” e “inevitabilidade” da intervenção policial. E mais umas botas.
 



As forças «da lei e da ordem» e os media aplicam muitas vezes a fórmula “violência gratuita” aos actos de uma série de «elementos perigosos», como quem faz soar um alarme. Alguns comentadores, mesmo em solidariedade com os "indignados", e com muitas reticências, ecoam variações desta mesma cantiga, ao mesmo tempo que a arremessam à Polícia e ao aparelho de Estado, para sinalizar epidódios de abuso no seu regular uso da força, que geralmente têm como legítimo. Os movimentos sociais institucionais, organizados e ordeiros, usam-na para designar quer o esquerdismo irresponsável de uns quer o fascismo insidioso dos outros – embora no caso de ontem impere o silêncio sobre a investida da Polícia. Em todos estes casos, assinala-se um desvio em relação a uma norma de bom senso, a quebra de um contrato implícito. Mas é mais do que isso: a ideia de gratuitidade aponta uma perda de sentido. É gratuito o gesto que se desviou do que tem ou faz sentido. É, desfiando um pouco esta ideia, aquilo que não tem causa aparente, que não decorre das circunstâncias, que é desnecessário, inútil, ocioso, supérfluo. O que é injustificado, e até injustificável. Significa isto que a acusação de “violência gratuita”, mais do que apontar uma mero excesso ou falha de legitimidade, é um atestado de exclusão do razoável – um terreno certamente vago, mas defendido com unhas e dentes. E, não raro, cassetetes. Importa, pois, examinar a distribuição de competências não só no que toca o exercício legítimo da violência, mas na definição do espaço de uma comunidade política, fora do qual se perde a razão.

Mas, acima de tudo, não nos devemos deixar iludir pela aparente simetria, excesso contra excesso, dos dois lados da barricada. O jogo de espelhos entre ordem e desordem esconde grandes diferenças no significado, peso e efeito do termo «violência gratuita», dependendo de onde é enunciado. Enquanto a gratuitidade da violência policial parece ser vista como um desajuste em relação a uma posição tida como legítima, a mesma fórmula aplicada aos manifestantes designa a própria posição que eles ocupam: não o desvio de uma posição, mas a sua posição enquanto desvio. Dito de outro modo, nos confrontos, tanto individuais como colectivos, entre a Polícia e cidadãos, reconhece-se por vezes um excesso de força por parte da Polícia, mas qualquer uso da força por parte de um cidadão é, em si mesmo, um excesso.

Embora os acontecimentos de ontem nos puxem para uma reflexão mais concreta sobre o papel da violência, tanto no seio dos movimentos de contestação como por parte do Estado, ganhamos em colocar a questão da gratuitidade com maior latitude, para lá da esfera dos tiros, bombas e murros nas trombas. Quando saímos desta zona, o tom de condenação esbate-se, e ao gratuito é dado um lugar à mesa da civilização. A esse lugar é habitualmente dado o nome de estético, onde se goza de uma margem de liberdade em relação ao jugo do necessário, às regras da conveniência, ou aos cálculos de custo/benefício que governam outras esferas. Mas esta ligeireza do gratuito é mantida dentro de uma reserva protegida, os seus efeitos contidos e, de preferência, reencaminhados para os domínios menos vagos do trabalho e do valor. Ou seja, a liberdade do gratuito deve ser um mero intervalo na injunção de produtividade, quando não é produtividade por outros meios. Isto porque a aparente inocência do gratuito contém em si mesma uma certa violência, que irrompe enquanto tal quando sai deste lugar que lhe foi atribuído e se espalha. Nesse caso, parecem pressentir os guardiões do estado das coisas, passa a ameaça ao círculo mágico de produção e reprodução das relações sociais existentes. Já lá vamos.

O problema da “gratuitidade” toca num dos fundamentos da ordem política, o monopólio da violência legítima por parte do Estado. Acontece – e não por acaso – que, no contexto da crise e austeridade, se torna mais difícil aos agentes da violência tida como legítima apontar com naturalidade e força de evidência para a sociedade do “bem estar” que lhes competeria defender de perturbações. Perante as cada vez mais óbvias linhas de fractura no tecido social, multiplicam-se também os pontos de antagonismo que precisam de ser defendidos pela força. À medida que o Estado recua ou demite-se das suas funções sociais, o terreno polariza-se, e a fronteira entre a Polícia e os cidadãos ganha maior ferocidade. Pense-se não só na carga policial de ontem, mas na cada vez maior banalização do “estado de excepção”, ou da “tolerância zero”, nas intervenções de legalidade dúbia, no número desproporcionado de polícias chamado a intervir em manifestações, na presença habitual do Corpo de Intervenção, ou na destruição de bens na sequência do desalojamento de casas ocupadas.Tanta gratuitidade junta, é de desconfiar.
 
 
Todos esses gestos, aparentemente desproporcionados, serão demonstrações de força, e nessa medida, ou seja, nos seus propósitos dissuasores, estarão longe do supérfluo que o termo “gratuito” encerra (fazendo lembrar as palavras de Nixon, que avisava os inimigos dos Estados Unidos que os americanos eram “loucos e imprevisíveis, com uma força destruidora extraordinária nas nossas mãos”).

Se a violência, por oposição à violência gratuita, é de tal modo constitutiva do que nos rodeia que ganha foros de naturalidade, de tal modo presente que se torna imperceptível enquanto violência, a gratuitidade assinala aqui a incapacidade de manter as pessoas no seu lugar por via mecanismos de controlo mais subtis e subterrâneos. Iluminam-se os vasos comunicantes entre os cordões policiais e o entrançado de exploração e dominação que compõe a violência sistémica do capitalismo – também ele cada vez mais visível.
 
 
 
 
A gratuitidade da violência policial assinala o quão difícil é, neste contexto, manter uma noção da “justa medida” - a fronteira entre a norma e o excesso, entre o uso legítimo e gratuito da violência, está mais difusa. Em suma, assinala uma quebra na normalidade: extremando um pouco o argumento, os dipositivos da ordem não perderam o controlo num momento de exaltação passageira, antes perderam a capacidade de manter o controlo senão pela violência. Mas há ainda um outro nível, porventura mais importante, que é o facto de, como é próprio em tempos de crise, e quebradas que foram as promessas inscritas no contrato social, se começar a vislumbrar a gratuitidade do próprio sistema, no sentido em que este parece ter-se esvaziado de conteúdos. Cada vez mais parece não ter um fim para lá da sua própria sobrevivência. E é cada vez mais difícil apontar para a brutalidade como algo exterior ao sistema.

É preciso perceber bem a dificuldade em manter as pessoas no seu lugar, trabalho que pertence ao sistema como um todo, e só em última instância à polícia. 
 
 
A crise não é apenas financeria, mas de reprodução social. Isto significa que são cada vez mais os que se desencontram com o lugar que supostamente deviam ocupar: o de trabalhadores, úteis, ou o de cidadãos, responsáveis. Quer voluntariamente quer empurrados, há muitos que não servem nem rendem: são supérfluos, gratuitos. É neste quadro que devemos entender o modo como a acusação de gratuitidade é lançada ao outro lado da barricada, a tudo aquilo que é frequentemente apelidado de puro vandalismo, de exaltação “sem conteúdo” (a violência no seu “estado de natureza”, para usar um termo hobbesiano). A expressão vai de par com a criminalização do protesto, que é o mesmo que dizer, com o seu afastamento do terreno político. Mas acontece que é cada vez mais difícil, por um lado, catalogar e identificar os “arruaceiros”, isolando-os do “cidadão comum” e, por outro, colar a ideia de violência ao tipo de acções de que as ocupações são o modelo - e que, por sinal, nem sequer encaixam na ideia de protesto. O espectro de hostes desordeiras, capazes de transformar a cidade num palco de “violência gratuita” mantém-se. E isto porque paira aqui um espectro mais lato, ou uma gratuitidade mais vasta: a ausência de programa, a não ocupação de um lugar reconhecido na topografia política corrente. Em suma, aquilo que escapa à representação e às mediações institucionais.




Ao mesmo tempo que os problemas da luta se confundem com os problemas muito materiais “da vida”, que nada têm de gratuito – o que comer, onde ficar, como partilhar, como exercer a igualdade – devemos, num certo sentido, aceitar a acusação de 'gratuitidade'. Que caminho se abre? Não temos um trilho ou um enredo que possa transportar um “Nós” estável de A a B, de projectar um curso, de colonizar o futuro. Mas na gratuitidade algo se produz, algo se organiza, algo constrói. Não é que não conheçamos a não-gratuitidade – a violência disciplinada do trabalho, a rosca moída da cidadania responsável, a negociação paciente com as instituições. Conhecemo-la bem demais: foi-nos de tal modo martelada que nos tornámos brutos, insensíveis aos seus chamamentos e à sua ideia de progresso. Quando podemos, sempre que podemos, tomamos distância e distraímo-nos dos seus propósitos. Podemos até dizer que, para além de uma esterilidade, caímos numa forma imbecilidade, se o imbecil é o que não percebe. Dispersámo-nos, e desperdiçámos os nossos talentos. Esquecemo-nos até, pelo caminho, de nos manifestarmos como deve ser. E assim pusemos, aparentemente, o pé fora da arena política. Será isto uma viragem? É difícil de saber: ocupamos por agora um espaço definido enquanto gratuito, enquanto esperamos que o termo perca o seu sentido, ou pelo menos a sua força coerciva. Não quer dizer que é apenas uma “roda livre”, ou uma máquina de movimento perpétuo. Não sabemos o que esta máquina produz. Não produz cidadãos nem trabalhadores.




 


sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Uma história «normalizada»?



Muito se escreveu em Setembro acerca da História de Portugal coordenada por Rui Ramos. Para quem não teve a gentileza de adquirir o Le Monde Diplomatique de Outubro, deixo aqui o texto lá publicado a propósito do assunto.



 A polémica a propósito da História de Portugal coordenada por Rui Ramos teve o mérito de trazer para o espaço público um debate acerca dos usos do passado e do seu impacto político. Não é casual que se tenha concentrado no tempo mais próximo e diga sobretudo respeito à interpretação do século XX português: trata-se de uma disputa em torno do balanço histórico da modernidade, dos seus principais acontecimentos, problemas e protagonistas. Também não é uma novidade a divergência em torno da caracterização do Estado Novo e da sua identificação com outros regimes ditatoriais de matriz nacionalista, antiliberal e anticomunista formados na Europa entre guerras. Foi esse o tema dos artigos assinados por Manuel Loff (Público, 02/08/2012 e 16/08/2012), à luz dos seus trabalhos recentes, que sugerem a formação de um campo político internacional na década de 30, genericamente denominado como «fascismo», atravessado por tensões e confluências, mas partilhando um horizonte histórico comum de superação dos regimes liberais e de combate à ameaça subversiva do movimento operário. Seria em todo o caso redutor resumir o alcance político do texto escrito por Rui Ramos a esse debate, ao qual aliás pouco acrescenta. Mais importante, e porventura mais interessante, é compreender se esta abordagem, inevitavelmente contaminada pelos debates políticos do presente se revela útil para iluminar um período mais longo. A opção seguida neste texto parte de alguns dos termos em que foi enunciada a polémica, concentrando-se sobretudo na interpretação da segunda metade do século XX.

Identificar inimigos na história
Quando saiu a terreiro em defesa deste livro, António Barreto atribuiu-lhe o mérito de vir «normalizar», com «serenidade académica» e sem «ajustes de contas», um século XX «marcado por rupturas e exibindo feridas profundas» (Público, 02/09/2012). Ora é precisamente o postulado segundo o qual Ramos se afasta de uma «tradição que cultiva e identifica inimigos na história» (idem) que se vê desmentido pela leitura crítica deste texto. Percorre-o uma indistinção entre o ponto de vista do autor e as citações que o ilustram, num exercício frequentemente desequilibrado - enquanto alguns dos protagonistas históricos são chamados a falar na primeira pessoa, outros são examinados com distanciamento e as suas posições e ideias sintetizadas pelo narrador, sem que essa variação siga um critério historiográfico claro - e que tende a substituir o rigor analítico pelas impressões, mais ou menos superficiais e fragmentárias, de observadores coevos.
A economia literária de Rui Ramos revela-se generosa para com os que se opõem a rupturas e a transformações acentuadas. Esta é uma história organizada em função de ideias como «estabilidade», «continuidade», «equilíbrio» e «moderação», cujo subtexto investe determinados mecanismos da ordem social de propriedades naturais - como se a propriedade, a desigualdade ou a autoridade não fossem fenómenos em disputa, mas factos incontornáveis - transformando as motivações de diversos actores históricos em elementos exóticos e os seus pontos de vista em caricaturas.
Acerca da I República, por exemplo, recorre frequentemente ao termo «radical», com e sem aspas, para qualificar um sujeito de contornos nebulosos, inicialmente definido como uma «cultura política» (p.585), depois esticado em diversas direcções para assinalar a natureza extremista e intolerante do “domínio do Estado pelo facciosismo da esquerda radical” (p.619), como contraponto a posições mais conservadoras ou simplesmente conciliatórias, descritas como «moderadas», muitas das quais se encontrarão depois no forjar do Estado Novo. Nesta tendência para estabelecer empatia com determinadas posições, remetendo outras para o campo da dissimulação e da encenação, Rui Ramos dedica-se precisamente, com assinalável serenidade académica, a cultivar e identificar inimigos na história. O enredo do seu texto sugere uma leitura positiva do Estado Novo, à luz de um período precedente assinalado pelo radicalismo e de um período posterior assinalado pela agitação revolucionária. Em qualquer um desses tempos turbulentos, Ramos salienta a acção de uma minoria empenhada em transformar abruptamente a sociedade, contrapondo-a à «ditadura de cátedra» de Salazar, que se distinguiria pela moderação das suas pretensões e pelo reconhecimento de equilíbrios sociais, hábitos e tradições tidas como inamovíveis.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Os gestos mais insignificantes



«Desde há seis dias», escrevia Juan Goytisolo em Para vivir aquí (1960), «que não havia um minuto de repouso. O ritmo da vida da cidade tinha-se bruscamente alterado e no rosto dos homens e das mulheres que percorriam os passeios lia-se um sinal seguro de decisão, de esperança. Uma muda solidariedade unia-nos a todos. Tínhamos descoberto que não estávamos sós e, depois de tantos anos de vergonha, aquela descoberta enchia-nos de estupefacção. Os nossos olhares cruzavam-se e eram olhares de cumplicidade. Os gestos mais insignificantes da vida de todos os dias, o simples facto de caminhar, assumiam um carácter insólito e quase miraculoso. As pessoas faziam o seu trajecto de todos os dias em silêncio e este silêncio não intimidava».
Citado em Classe, de Andrea Cavaletti (Trad. António Guerreiro, Lisboa, Antígona: 2010)

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

De que falamos quando falamos de alternativa?


(o meu artigo no i de hoje)

É urgente mudar os conteúdos das políticas que nos governam? Sim, é urgente, e no entanto não basta simplesmente mudar os conteúdos.

O artigo que escrevi há duas semanas dirigia críticas à ideia de alternativa que me parece ter sido acalentada em iniciativas como o “Congresso das Alternativas”. Em troca recebi algumas respostas que desde já agradeço.
A questão que pretendi colocar a debate naquele artigo foi: de que falamos quando falamos de alternativas? Julgo importante fazer esta pergunta porque, a meu ver, a actual situação política não exige simplesmente propostas políticas com conteúdos diferentes, mas também outra forma de organização do trabalho político. Esta exigência interpela a chamada esquerda do “arco da governação”, isto é, o PS, que por alternativa tem entendido, sobretudo, alternância governativa, mas também julgo interpelar a restante esquerda que navega na órbita parlamentar. Não esqueço que comunistas e bloquistas sempre exigiram uma mudança de políticas e não simplesmente uma alteração dos políticos, mas, se ontem teria eventualmente bastado o muito que seria substituir políticas económicas liberais por políticas económicas de pendor social-democrata, creio que hoje não só não chegará mudar de políticos como também não bastará mudar de políticas. É também preciso, sim, mudar a política.
Os trabalhos que esta mudança implica não são simples e ninguém garante um final feliz. São várias as hipóteses que estão na ordem do dia.
A primeira é a de uma mudança de orientação tecnocrática. Do ponto de vista tecnocrático, o confronto político entre os partidos no quadro parlamentar é uma espécie de fábrica de mistificações ideológicas que se limita a atrapalhar a eficiência governativa. Haveria, então, que remover o parlamento (ou até mesmo as eleições) para nos aproximarmos da verdade das coisas.
A segunda hipótese é a hipótese populista. Mais do que na ideia da política como um lugar contaminado por ideologias cuja abstracção só atrapalhará o melhor governo do país, esta hipótese assenta na suposição de que a política é hoje um lugar dominado por palavras despidas de emoções, que através de artifícios retóricos acaba por nada dizer ao coração de um povo que por este efeito se vê excluído do sistema.
A terceira hipótese é a que me parece ser alimentada por iniciativas como o “Congresso das Alternativas”. Esta hipótese dirige a sua crítica não ao sistema demo-parlamentar por inteiro mas ao monopólio que dele fariam os partidos políticos. Em alternativa a este monopólio, haveria que procurar um sistema de representação em que, por exemplo, as personalidades teriam maior margem de manobra. É o discurso alimentado por vários independentes de esquerda, de ex-dirigentes partidários a jovens intelectuais cujo brilho é indisputável.
Por que não me agrada esta terceira hipótese? Porque a hipótese que me anima é a da possibilidade de uma experiência democrática além do sistema representativo vigente. Neste sentido, o meu problema com o BE e o PCP não reside no facto de eles monopolizarem a representação parlamentar do famigerado povo da esquerda ou de serem mais ou menos eficazes na sua performance político-institucional. O meu problema reside no facto de a vida político-institucional – e o circuito mediático e a lógica estatal que ela envolve – tender a monopolizar a política desses partidos. Acresce, ainda, que BE e PCP, com os infinitos defeitos que têm, guardam uma vantagem em relação a um "Congresso das Alternativas" que, podendo ter sido uma experiência de construção política colectiva, pouco fez para evitar que se apresentasse em público como uma constelação de protagonismos individuais. Ora, ao culto da liberdade individual e do brilhantismo intelectual dos independentes de esquerda continuarei a preferir o colectivismo dos militantes partidários, com todos os problemas que o colectivismo também suscite.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Quando me dizes "Vem", já eu parti (1943-2012)


Documentário Manuel António Pina from Terra Líquida Filmes on Vimeo.

De algum modo, Maio de 68 aconteceu dentro do nos­so coração. Era aí que, também nós, nos barricávamos então con­tra a pequenez do nosso tempo e do nosso lugar. E, sim, também nós (conselhistas, anarquistas, guevaristas, trotskistas, enragés de todas as espécies), dentro do coração nos sentíamos, mansamente embora, la pègre e la chienlit.  [...]
Amávamos sem regras, escrevíamos poemas, cantávamos can­ções, saíamos à noite para pintar afrontas nas paredes («Abaixo a Guerra Colonial», ou, mudando duas letras, transformando o «Droga = loucura, morte» governamental em «Tropa = loucura, morte») ou lançávamo-nos em correria pelas ruas da Baixa ape­drejando as montras de bancos e dispersando antes da chegada da Polícia. Para nós eram tão risíveis os fatos escuros dos minis­tros como a sisudez operária do PC e dos maoistas.
Manuel António Pina, via Rui Bebiano

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Uma aquisição para sempre


 Há uns anos João Galamba recomendava-nos a leitura de uma obra de Marx que só ele conhecia, O idealismo alemão. É agora a vez de Pedro Picoito se colocar em bicos de pés para recomendar a terceiros a leitura do 18 de Brumário de Luís Napoleão. Seria trágico, se não fosse simplesmente ridículo, ver alguém a exibir na mesma frase o seu pedantismo e a sua boçalidade, sem nunca correr o risco de ser confrontado com uma e outra coisa.
São estas pessoas que a esquerda moderna e a direita assim-assim nos oferece como intelectuais orgânicos, gente que gosta de se ler a si própria a citar os clássicos, a dar conselhos e lições, a emitir sentenças. E para quê? Para a profundidade do seu pensamento, para o rigor com que observam a realidade, para o interesse do que têm a dizer acerca do que quer que seja, citar as páginas do Correio da Manhã ou da Men's Health chegaria perfeitamente. Mas nada disso lhes parece suficiente e, uma vez que frequentam sobretudo salões de chá e copos de água onde este tipo de parvoíces passa por erudição e profundidade, eis que se abalançam a comentar a história do nosso tempo como se ela já tivesse acabado. 
Que não se pense, porém, ser tudo isto desprovido de significado. Citação por citação, eis uma que lhes encaixa como uma luva:
O domínio da história era o memorável, a totalidade dos acontecimentos cujas consequências se manifestariam durante muito tempo. Era inseparavelmente o conhecimento que deveria durar e ajudaria a compreender, pelo menos parcialmente, aquilo que aconteceria de novo: «uma aquisição para sempre», diz Tucídides. Por isso, a história era a medida duma novidade verdadeira; e quem vende a novidade tem todo o interesse em fazer desaparecer o meio de a medir. [...] Acreditava-se saber que a história tinha aparecido, na Grécia, com a democracia. Pode verificar-se que ela desaparece do mundo com ela. É preciso porém acrescentar a esta lista de triunfos do poder, um resultado para ele negativo: um Estado, em cuja gestão se instala duravelmente um grande défice de conhecimentos históricos, já não pode ser conduzido estrategicamente.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Porque narciso acha feio o que não é espelho

o meu artigo no i de hoje


Junto a muitos outros e outras, temos vindo a apelar a que o descontentamento individual face à actual situação política dê lugar ao protesto colectivo. No último mês e meio, por obra e graça de milhares de factores, o protesto tomou conta das cidades. Multidão atrás de multidão, manifestação atrás de manifestação, as pessoas saíram à rua, protestaram contra a actual situação e a onda ameaça avolumar-se. Neste cenário, há quem continue a dizer que protestar não chega e que é preciso, sim, construir alternativas. É um erro, porque ou a alternativa nasce do interior do protesto ou não terá força para vencer.
A ideia de que a alternativa é uma fórmula que, trabalhada por um comité de dirigentes ou por uma elite de peritos, conferirá ao protesto a clarividência que dele estaria ausente, ideia que animou todas as vanguardas, falhou redondamente uma e outra vez. E falhou por duas razões. Em primeiro lugar, porque quem protesta também é clarividente e não gosta de se ver simplesmente na pele de um cavalo selvagem à espera de ser domado por um qualquer cavaleiro. Em segundo lugar, falhou porque os cavaleiros que acham que vêm de fora, por mais lúcidos e decididos que se julguem, nem sempre são tão clarividentes quanto o seu espelho lhes faz crer.
Precisamos, pois, de abandonar qualquer espécie de concepção instrumental do descontentamento popular e do protesto colectivo. Não se trata aqui de defender, entenda-se, que todo o protesto tem razão de ser a partir do momento em que é, mas antes de exigir que olhemos para os gestos e as palavras que fazem os protestos com o mesmo cuidados que devotamos à análise dos gestos e palavras dos dirigentes que se situam do lado esquerdo ou direito do hemiciclo parlamentar e dos peritos que os assessoram.
Como modificar o nosso olhar? Não é fácil, mas, de novo, a crítica é a única forma de ir apurando a alternativa. Critique-se a forma de escrever de um dos mais acutilantes cronistas dos nossos média, Daniel Oliveira, exemplo tanto mais útil porque grande parte das posições do cronista em relação ao actual governo não merecem a nossa discordância. Nos seus textos, Daniel tem-nos falado sobre o “desespero popular”, sobre um “povo furioso” ou ainda, entre outros exemplos possíveis, acerca da “raiva em que as pessoas estão”. Tudo isto parece incontestável, mas haveria que perguntar duas coisas: em primeiro lugar, se este tipo de representação do descontentamento não acaba por fazer desse povo de que nos fala uma entidade tanto mais potente quanto mais embrutecida, isto é, um corpo politicamente inimputável, sofrível mas incapaz de pôr cobro, por si só, ao seu sofrimento; e, segunda pergunta, se não é justamente esta suposição de um tal estado de descontrolo por parte da população que leva o nosso cronista, juntamente com outras boas almas da nossa esquerda cuja generosidade e voluntarismo não discutimos por um momento que seja, a entender que protestar não basta e que é preciso oferecer uma alternativa aos desesperados.
É também nas formas de elogio ao povo que protesta que se encontra, por vezes, a atribuição de uma deficiência a esse mesmo povo, deficiência que só poderia ser resolvida com o auxílio de seres dotados de uma razão política superior. Coisa importante para que este esquema funcione é que dirigentes e peritos, partidos e individualidades, denotem grande confiança nas suas próprias competências racionais. Poderão os leitores mais humildes julgar que tamanho nível de confiança é simplesmente inatingível, mas, na verdade, basta uma boa dose de ignorância quanto ao facto de a nossa própria racionalidade política ser também ela moldada por emoções e feitios que só em parte devem à razão. É tamanha ignorância, aliás, que tem permitido que algumas figuras à esquerda estejam sempre prontas a criticar os dirigentes dos partidos de esquerda em nome da unidade dos partidos da esquerda, supondo que estão a falar em nome do interesse geral das esquerdas e não já do seu legítimo mas próprio interesse.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Que se vayan todos?


( o meu artigo no i de hoje)
Na manifestação que terça-feira, em Madrid, cercou o congresso, uma das tarjas levadas pela multidão dizia simplesmente “Que se vayan todos”. A fórmula tem origem, creio, nos protestos populares da Argentina deste início de século. E diz alguma coisa sobre a dificuldade de legitimação que, hoje, enfrenta todo e qualquer líder político.
A este compete calcular, é sabido, o tempo para entrar e sair de cena. Deverá proteger-se em terra quando a tempestade vai forte, deverá atirar-se ao mar quando a corrente joga a seu favor. As águas, porém, andam de tal modo agitadas por estes dias que não é fácil apurar com exactidão o estado do mar.
Comecemos pelo actual governo. Escreveu-se já que o presente estado de decomposição governativa tem levado os ratos a posicionar-se habilmente de modo a abandonarem o navio num futuro próximo. Todavia, o lance não tem saído com a facilidade do costume. Mesmo Paulo Portas, que sempre procurou alcançar aquele “óptimo de irresponsabilidade” que lhe permitiu garantir que as suas deserções seriam suficientemente discretas para não passarem por oportunismo e suficientemente vistosas para sinalizarem uma ruptura efectiva que abrisse espaço a um futuro retorno, encontra-se hoje a espernear no meio do pântano.
Esta situação de crise no governo poderia facilitar a vida à oposição, mas também não é aí que estamos. Veja-se António José Seguro. Líder de um partido que escolheu estar do lado da troika, ameaçou agora com uma moção de censura que, afinal, depois retirou; se já tínhamos o clássico líder da oposição que, chegado ao governo, não cumpre as suas promessas, temos agora o líder da oposição que não as cumpre antes mesmo de chegar ao governo.
Estas dificuldades poderiam, por sua vez ainda, abrir o caminho a um outro líder da oposição, caso de António Costa. Sucede, porém, que durante largos meses, no programa televisivo em que semanalmente participa, Costa se viu, não raro, ultrapassado à esquerda por José Pacheco Pereira e não será com facilidade, estimo bem, que agora conseguirá finalmente atirar-se ao ar e aí ser catado por ventos que soprem a seu favor. Se é para irmos nessa onda, neste momento talvez seja mesmo preferível apostarmos em Pacheco Pereira…
A esquerda à esquerda do PS talvez retire algum proveito de toda esta situação. É justo que assim seja e podem contar com o meu voto. Mas não nos iludamos. Mesmo as lideranças que sempre contestaram a troika acusam dificuldades de navegação. No caso do PCP, é verdade que poderá acabar por registar uma subida de votos porque, nestes tempos que correm, sadia e ironicamente, a sua falta de jeito para o oportunismo eleitoral (que alguns insistem em tomar como testemunho de ortodoxia…) tal permitirá. Porém, de um ponto de vista sociológico, o partido parece cada vez menos capaz de sair do quadrado em que, nas manifestações, os seus próprios serviços de ordem tendem a encerrar os próprios militantes comunistas.
No caso do BE, o problema parece ser o inverso. A facilidade com que procura colar-se a todo e qualquer tipo de protesto, sobretudo no momento em que uma câmara de TV se aproxima da cena, poderá facilmente virar-se contra si. Que o diga Catarina Martins. No episódio televisivo em que, falando em nome dos manifestantes, se viu interrompida por dois ou três cidadãos que a maldisseram, a deputada sentiu bem na pele o novo “ar do tempo”, que é o da crise acelerada das lideranças políticas.
Sobre esta crise, e como este episódio com a provável futura líder do BE denota, abre-se uma janela de oportunidade que deixa à vista, pelo menos, dois caminhos. O primeiro guarda um sentido antidemocrático e aponta a uma transição de um regime baseado em lideranças políticas para um regime de lideranças pretensamente antipolíticas de pendor tecnocrático e ou populista. O segundo abre a porta a formas de acção, discussão e deliberação políticas estranhas aos mecanismos de liderança que nos têm governado, libertando a democracia do fardo da representação.
A esquerda, creio, deverá saber trilhar este segundo caminho. Que não julguemos, por isso, que o que está em causa hoje é apenas Passos Coelho ou sequer a troika. A questão não é simplesmente inverter o ciclo económico de modo a aumentar o poder de compra da população ou mudar de governo de forma a minorar o ataque ao Estado social. A questão é também, e já, a da sede de poder político que muitos dos que não estão nos cargos de liderança e representação sentem. A sua repartição é tão urgente como a partilha do pão.

sábado, 22 de setembro de 2012

Doa a quem doer

 
Têm surgido em órgãos de comunicação social diversas referências ao RDA69, que atribuem a esta associação e aos seus associados qualificativos como “radicais violentos”, “activistas anarquistas” ou “militantes perigosos”.
É nomeadamente o caso das peças assinadas por Valentina Marcelino no Diário de Notícias a 27 de Março e a 13 de Setembro, bem como as que foram publicadas no Correio da Manhã, a 21 de Maio, por Henrique Machado, Miguel Curado e Sara Carrilho, e a 17 de Setembro, com a assinatura de João C. Rodrigues e Miguel Curado.
Este conjunto de peças jornalísticas veicula várias informações falsas, com o intuito de criar um clima alarmista e permitir uma escalada de criminalização da contestação social.
Cumpre por isso esclarecer os seguintes aspectos:
  1. O RDA69 não organiza nem organizou estas ou outras manifestações. É um espaço onde acontecem jantares, projecções de filmes, concertos, festas e debates. A programação é pública e está no nosso blog, as actividades estão abertas a todas as pessoas, militantes partidárias ou não. O RDA69 não joga nem pretende jogar o jogo das identidades, sejam elas da esquerda radical ou dos anarco-libertários.
  2.  A PSP, através dos seus porta-vozes na imprensa, pretende fazer-nos acreditar que há um comité oculto, que coordena todos os confrontos e actos de desafio às autoridades nas manifestações, de maneira a mais facilmente poder isolar, espancar e prender os que não aceitam as medidas de empobrecimento generalizado em curso e se mobilizam para as contestar. É com esse objectivo que avançam a enorme mistificação segundo a qual quatro pessoas detidas na manifestação de 15 de Setembro estariam ligadas ao RDA69. Embora estejamos solidários com todas e todos as/os que saíram à rua no passado Sábado, desconhecemos a identidade dos detidos, com os quais não possuímos qualquer relação.
  3. Estas reportagens fazem parte de uma estratégia de isolamento dos grupos ditos «radicais» relativamente ao resto da população. Cada vez mais gente vê cada vez mais claramente que a crise e a austeridade são excelentes oportunidades de negócios para uns poucos, enquanto a maioria da população se vê constrangida a empobrecer ou emigrar. O Governo está prestes a cair, com os seus membros a serem vaiados e contestados onde quer que se desloquem. Vivemos tempos excepcionais, em que o medo e o desespero começam a dar lugar à revolta e à contestação. Com esta estratégia, a PSP arrisca-se a ver o seu cerco cercado, enquanto se distrai a vigiar jantares e conversas. É apenas natural que se multipliquem os «incidentes» e os «excessos», sem que haja um centro ou uma direcção a coordená-los. É inútil procurarem um quartel-general da revolta porque a revolta está em todo o lado.
  4. O RDA69 é um espaço de debate e encontro, um lugar de crítica, de partilha, do comum. Naturalmente que isso nos torna perigosos aos olhos de quem tem o poder. Não negamos que as actividades que promovemos têm como horizonte um mundo construído por pessoas livres e iguais, onde, entre outras coisas, não haja lugar para polícias ou prisões. Comunicados policiais assinados por jornalistas não mudarão a nossa determinação. Este vai continuar a ser o sentido do que fazemos, doa a quem doer.
Cópias e ligações para as notícias referidas estão disponíveis aqui.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Políticas da História


Deixo aqui o meu contributo em torno da actual polémica historiográfica, hoje publicado no "Público".

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POLÍTICAS DA HISTÓRIA
por José Neves 

Os trabalhos de Rui Ramos e de Manuel Loff constituem dois contributos importantes para o conhecimento do Portugal Contemporâneo e a ambos devemos uma crítica despida de elogios fáceis e de insultos gratuitos. Da minha parte, contem com estes cinco pontos.  

1. Se é por de mais evidente que um historiador procura conhecer o passado, menos assumido é que nesse processo também conta o presente em que o historiador se situa. Com efeito, o meio político-ideológico em que se move todo e qualquer historiador marca inelutavelmente o seu trabalho científico. Por isso, quando António Barreto elogia a “História de Portugal” coordenada por Rui Ramos porque a obra teria finalmente permitido vencer «o duopólio fanático estabelecido há muito entre as Histórias ditas “da esquerda” e da “direita”», é a uma ilusão de imparcialidade que estamos a ser atraídos. O primeiro obstáculo ao debate surge aqui, nesta suposição de Ramos como um historiador neutral, que ignora o facto do próprio Ramos ter já assumido – e bem – que o seu olhar historiográfico não é estranho ao seu percurso político.  

  

2. Esta relação entre a agenda historiográfica e os interesses político-ideológicos do historiador desenvolve-se de um modo complexo, pouco directo e nada linear. Desde logo, a relação não é unívoca. Isto é, a agenda historiográfica do historiador é sensível aos interesses políticos do historiador, mas estes também a reflectem. Na sua crítica, Loff observa a afinidade entre a política de Ramos e a historiografia de Ramos, mas, a meu ver, dá um passo abusivo, sugerindo que o trabalho historiográfico de Ramos estaria ao serviço de um propósito político. Nesta sugestão de instrumentalização tem tido origem parte dos equívocos do debate que Loff em boa hora lançou.

3. Uma outra parte dos equívocos tem origem na leitura que Ramos fez das críticas que lhe foram dirigidas. Esta leitura produziu mais do que uma distorção, como expôs Mário Moura. Por exemplo, se Loff escreveu que para Ramos “o salazarismo era ‘uma espécie de uma monarquia constitucional’”, Ramos acusou Loff de ter dito que ele, Ramos, consideraria o Estado Novo “um regime absolutamente idêntico à monarquia constitucional do século XIX”. Se Loff escreveu que o Salazar de Ramos não tem “‘nada de uma personagem ditatorial’ como a dos líderes da Europa fascista do tempo, Ramos acusou Loff de ter dito que o Salazar de Ramos “não era uma personagem ditatorial”. E se Loff escreveu que o texto de Ramos apresenta “uma ficção sinistra e intelectualmente cínica sobre a ditadura salazarista”, Ramos acusou Loff de o “tachar de fascista “cínico” e “sinistro””. Em suma, Ramos terá que cuidar um pouco melhor da sua própria criatividade hermenêutica.

4. O maior problema que encontro na actual polémica reside, porém, no facto de deixar na sombra um conjunto de questões que não implicam directamente o debate sobre a natureza política do Estado Novo (em que tendo a concordar com a posição de Loff) ou o modo como Ramos dá conta da repressão salazarista (já criticado por Rosas, Costa Pinto ou Lucena) e da Guerra Colonial (desconstruído por Ramada Curto). A primeira destas questões tem que ver com a ideia de política subjacente ao olhar de Ramos. Procurando contrariar o que entende ter sido uma tendência historiográfica para a sobrevalorização do económico, do social e das estruturas, e para a desvalorização do político e da acção, o esforço de Ramos tem acusado dois vícios: tende a circunscrever o poder à esfera da política e, como sublinhou Francisco Bethencourt, a confinar o domínio da acção política às atitudes e comportamentos do que chama de elites. A esta luz, teria sido porventura mais ajustado, no que à parte contemporânea diz respeito, que se tivesse optado por um título como “História Política de Portugal” ou “História Elitista de Portugal”.

5. A segunda questão que não tem sido debatida é a da escrita da história. Existem factos para quase todos os gostos, o que, não querendo dizer que não há risco de um historiador simplesmente inventar acontecimentos que não sucederam, exige que também foquemos não apenas o modo de selecção mas também a forma de enunciação dos factos. A título de exemplo, chamo a atenção para a relação que na escrita de Ramos se tece entre a sua voz de narrador e a fala das fontes por ele citadas. Na negociação destes discursos, essa escrita tende, frequentemente, a criar uma indefinição entre a fala do narrador e a fala dos documentos que cita, deste corpo-a-corpo nutrindo-se, em parte, a ilusão de neutralidade que ampara o entusiasmo pueril de um Barreto. Ora, se é bem verdade que o risco de ilusão jamais poderá ser completamente eliminado, podemos pelo menos exigir que ela não seja objecto de um uso instrumental. Infelizmente, é tal instrumentalização que me parece ocorrer na resposta que Ramos dirige a Loff. Se percebo que critique Loff por este citar partes do seu livro como se fossem fala do próprio Ramos e não, como em alguns casos sucede, fala de terceiros que Ramos teria simplesmente citado (“a expressão não é minha, mas de Massis”, diz Ramos); não posso entender a que propósito, ao defender-se de uma outra crítica de Loff, Ramos opta por citar em seu abono a fala de uma das fontes por ele convocada, agora pedindo-nos que a aceitemos como reveladora do seu próprio ponto de vista (“cito uma carta impressionante de José Marinho, de 1937, que bem revela o peso opressivo da ditadura salazarista”, diz Ramos a Loff). Tal como os que apontei a Loff, estes são erros admissíveis, de que ninguém está a salvo, incluindo nós próprios, é claro. A única coisa inadmissível em toda esta polémica é o apelo de Filomena Mónica ao silenciamento de Manuel Loff.