(o meu artigo no i de hoje)
De
passagem por uma cidade do Norte de Inglaterra, fui levado por amigos locais a
uma rua em que dezenas de restaurantes indianos e paquistaneses deixavam no ar
aquele aroma que sempre me traz à memória a infância passada ao lado da minha
avó. Como querendo regressar ao mesmo sítio no dia seguinte, pedi que me
assinalassem o local no pequeno mapa de turista que tinha comigo. Disseram-me
“a rua não vem no mapa…” Essa mesma frase tinha eu ouvido pela última vez há
cerca de dois anos, numas breves férias de Verão realizadas um pouco mais a
sul, para o sudoeste alentejano. À procura de um caminho de terra batida, por
onde havia passado e cujo rasto perdera, perguntei pelo troço junto de um
aldeão que caminhava à beira da estrada e pacientemente me explicou o que
fazer, no fim rematando, ele também, que o caminho “não vinha no mapa…”
Do que fica relatado concluo, em
primeiro lugar, que não são poucos os lugares que existem mas que os mapas
desconhecem. Dizem que a falha nem terá grande remédio. Todos os mapas
enfrentam o dilema da escolha entre a maior extensão da área coberta e a
atenção aos detalhes que infinitamente dividem todo e qualquer espaço. Em
segundo lugar, conclui-se ainda do que acima se expôs que os mapas não
reflectem apenas a realidade que cartografam, mas que simultaneamente delineiam
a forma futura dessa realidade. Quando um habitante local nos diz que o seu
sítio “não vem no mapa…”, partilha connosco, é certo, um pedaço de terra ainda
por muitos desconhecido, mas faz jásoar, também, um lamento pelo futuro que se
aproxima, mau agoiro de quem intui que cedo ou tarde se acabará por dar sumiço
ao que não vem no mapa.
Esta conversa de geógrafo de
segunda vem a propósito do ano que vem. Então começaremos, muito provavelmente,
a olhar com redobrada atenção para os mapas, as suas formas e os seus feitios.
O estado da crise cada vez mais convidará a que coloquemos no centro da agenda
a questão da escala em que temos vindo a ser administrados. Até agora são dois
os mapas que nos têm sido disponibilizados como ferramentas para analisar e
superar a crise: um mapa que nos fala de um mundo global, plano e liso, onde
todos circulariam com o mesmo à-vontade; e um mapa que divide o mundo aos
quadrados nacionais, como um puzzle de estados encaixados uns nos outros, cada
macaco no seu galho.
Ambos os mapas têm problemas que os
tornam cada vez mais insuportáveis. O primeiro mapa, tendo a vantagem de querer
ignorar os sectarismos nacionais, supõe que não existam clivagens de outro
tipo, por exemplo relativas a diferenças entre classes sociais.
O mapa das nações, por sua vez, se admite a existência de clivagens, fá-lo
conotando-as com identidades nacionais, desde logo secundarizando as diferenças
sociais internas e transversais às próprias nações.
Contra ambos os mapas, há quem
venha sugerindo a hipótese de um mapa universal (por contrário às
identificações nacionais e patrióticas que ameaçam medrar a partir das linhas
do segundo mapa) e antagonista (por contrário à ilusão de uma paz social
liberal que obedece ao sonho do primeiro mapa). O trabalho de Sandro Mezzadra,
autor de “Direito de Fuga” (recentemente publicado em português), tem
justamente apelado à capacidade de elaborarmos mapas capazes, por um lado, de
diagnosticar o de-senvolvimento a um tempo diferenciado e combinado de uma
economia contemporânea que cria terceiros mundos no interior do primeiro e
vice-versa; e mapas capazes, por outro lado, de mobilizar as forças e vontades
susceptíveis de vencer essa economia. Neste sentido, mais que de um território
global ou de mil e um territórios nacionais, precisaríamos de um mapa que tanto
desse conta das ligações que fazem circular e fixar coisas e pessoas ao ritmo
dos lucros privados e dos interesses estatais, como iluminasse relações
determinadas por outras morais que não a do capitalismo e a do nacionalismo.
Quando o governo português refreia
a sua intenção de avançar para um processo de requisição civil dos estivadores
de Portugal porque os estivadores de outros países avisam que em retaliação
boicotariam a descarga das embarcações vindas dos portos portugueses, é já um
tal mapa que a luta dos estivadores delineia.