(o meu artigo no i da última quinta-feira)
Já foi assinalada a triste sina
de um governo que, fazendo bandeira da crítica ao facilitismo na educação,
acaba por nos oferecer o percurso educativo do seu homem forte, Miguel Relvas,
como um testemunho exemplar do que é facilitismo. Dito isto, e apesar de por
estas bandas bem podermos com o mal de Relvas, convém deixar claro que o homem
é agora vítima de um sistema que, apesar de alimentado por figuras como ele
próprio, deve ser objecto da nossa crítica por inteiro e não fulanizadamente.
Que sistema é este? É um sistema
político cujo funcionamento está fundado na ideia de que para o mundo não
desabar será necessário dividirmo-nos entre uma elite que governa e uma massa
que deve ser governada. É um sistema que hoje defendendo que essa elite seja
apurada democraticamente, e proclamando o direito de todos a serem não apenas
eleitores mas também eleitos, rapidamente trai este princípio elementar
sobrepondo-lhe a ideia de que nem todos têm as competências intelectuais
necessárias ao exercício da governação. Um sistema que, em suma, acaba por
defender que só os alegadamente mais habilitados deverão ser escolhidos para
governantes.
É no quadro deste sistema que
Relvas, apesar das inegáveis qualidades pastorais evidenciadas ao longo da sua
carreira político-partidária, pressentiu que só depois de ter o carimbo de
doutor na testa é que estaria plenamente habilitado a fazer carreira
governativa. E aqui é importante sublinhar que a universidade surge em palco
como uma poderosa autoridade que legitima a distinção entre os mais e os menos
dotados da capacidade de serem competentes, ou, na nova língua
empresarial-académica, da capacidade de “excelência”. Com efeito, é sabido que
em Portugal a posse de um curso superior é um dos mecanismos de distinção mais
prestigiados. O poder da instituição universitária (mas poderíamos também
alargar às instituições escolares em geral) enquanto entidade legitimadora da
hierarquização das inteligências, que define que ali vai um homem inteligente,
e que acolá ficou um indivíduo incapaz, é desmesurado. Mais importante ainda:
precisamos de começar a questionar o princípio de que são os mais inteligentes
que devem governar; e, sobretudo, devemos começar a questionar o que é isso de
inteligência, de competência, de excelência.
O problema, insisto, não é o
diploma de Relvas, tal como o problema não era o diploma de Sócrates.
Infelizmente, o culto da formação escolar e universitária como prova de
superior inteligência, ou da própria ideia de que a inteligência é coisa para
ser medida e quantificada para depois se estabelecer a lista dos mais e dos
menos desta vida, não é apenas obra dos percursos sinuosos dos homens mais
odiados do momento. O culto está a tal ponto espalhado que se insinua em quase
toda a vida política, mesmo entre aqueles de cujas boas intenções não
duvidaremos. É por exemplo pouco entusiasmante verificar que, na mesma semana
em que assistimos a mais este caso Relvas, tenha proliferado um sentimento de
indignação a propósito do baixíssimo ordenado pago a um grupo de enfermeiros,
como se por serem enfermeiros tivessem direito a um salário mais elevado do que
um trolha. Entendamo-nos: 4€ à hora é de facto um salário miserável e merece a
indignação generalizada mas esta situação não é mais revoltante por se tratar do
salário de um diplomado do que de um não-diplomado.